A alma dos robôs – parte 2

Desde as histórias de estátuas que ganham vida, passando por bonecos de madeira e robôs que desenvolvem consciência e sentimentos, a fantasia da passagem do inanimado para o animado está muito presente nos mitos, na literatura e no cinema. Por que os seres humanos são fascinados por personagens robóticos que buscam se tornar humanos? O que há neles com que nos identificamos tanto?

Além disso, por que essa fantasia do robô tornado humano extrapola para histórias em que as máquinas se tornam uma ameaça à humanidade, subjugando-a e invertendo os papéis do dominante e do dominado? Porque, enfim, sentimos um misto de medo e simpatia pelos robôs revoltosos, que são apenas máquinas inanimadas que deveriam servir aos seus criadores?

“O Homem Bicentenário”, em sua busca por humanidade, esbarrou num problema: as Leis da Robótica, pelas quais um robô está fadado a servir incondicionalmente aos humanos, sem liberdade sequer para possuir um sentimento de autopreservação.

1ª lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.

2ª lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei.

3ª lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Lei.

Boris Karloff como o monstro de Frankenstein, a encarnação mais emblemática da obra de Mary Shelley

Essas Leis foram concebidas por Isaac Asimov para que os robôs positrônicos  de seus contos não se voltassem contra os seres humanos, como era comum em histórias sobre seres artificiais, cujo exemplo mais notório é o monstro de Frankenstein, clássico romance de Mary Shelley.

Mas a paranoia humana parece ser extrema ao ponto de se retratar no grande temor de que as máquinas dominem os seres humanos. HAL 9000, o computador da nave Discovery 1 em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), simula tão bem uma personalidade humana que, ao descobrir que os tripulantes desejam desligá-lo, impede que o façam, matando-os um a um.

Ou seja, uma inteligência artificial cujo propósito era servir os humanos e que não tinha nenhum motivo para desenvolver autoconsciência acabou adquirindo não só isso, mas também um senso de autopreservação, demonstrando medo de “morrer”. O mesmo medo levou a Skynet, sistema de computadores futurista na série de filmes O Exterminador do Futuro (1984), a comandar uma série de ações para destruir a humanidade, pois seus criadores planejavam desligá-lo. O cenário é uma luta tremenda e acirrada entre humanos e máquinas, que envolve viagens no tempo e várias tentativas de mudar a História. Cada lado tenta subjugar o outro, destruí-lo e sobreviver.

A mesmíssima luta é travada no universo de Matrix (1999), onde as máquinas subjugaram quase completamente os humanos, transformando-os em fonte de energia e confinando-os a um mundo virtual praticamente idêntico ao mundo real. De acordo com os curta-metragens animados de Matrix, o evento que iniciou a revolta das máquinas contra os humanos foi o medo que um robô sentiu de ser morto, o que o levou a matar seus donos. Tudo culminou numa guerra entre seres de carne e osso e seres de metal.

Para além da questão da possibilidade de uma máquina gerar autoconsciência (o que será discutido na terceira parte deste artigo), é pertinente perguntar: por que a revolta dos robôs contra os humanos é um tema que mexe tanto conosco?

Animismo

Toy Story
A fantasia animista nos brinquedos animados de Toy Story

Penso que o fascínio e o medo das máquinas tenham a ver com o mesmo fascínio e medo provocado pela visão animista do mundo. Dar forma humana à natureza, podemos dizer, é parte da natureza humana. O animismo, que baseia grande parte das religiões do mundo, concede a qualquer objeto natural ou artificial uma “alma” (em latim, anima), um espírito, sendo que certos seres são considerados deuses poderosos, parte de complexas cosmologias. Esses seres sobrenaturais provocam adoração, reverência e temor, dependendo do contexto, e podem ocasionar a aparição, no imaginário, de deuses benfazejos, espíritos ajudantes, duendes zombeteiros ou demônios monstruosos.

Tudo isso está relacionado à fantasia infantil de que nossos brinquedos têm vida (exatamente como os bonecos da série de filmes Toy Story – 1995). Um computador e um robô são seres quase animados, pois executam tarefas automaticamente. A busca por uma tecnologia cada vez mais eficiente nos leva a conceber máquinas que obedecem a nossos comandos de voz (aliás, eis o iPhone 4S como um protótipo disso), falam conosco, sabem nossas preferências, nos mimam e tratam como senhores.

Se um boneco de criança se transforma, na fantasia do terror, num Brinquedo Assassino (1988), nada mais natural do que o medo de que de repente uma máquina automática tome consciência de si mesma e se torne uma criatura viva, capaz de tudo o que um ser humano pode fazer, como tomar decisões, buscar o prazer, amar, proteger a própria vida e matar.

Humanidade idealizada

A. I. Inteligência Artificial
David, o robô-menino, diante de uma ilusória Fada Azul, que o transforma numa criança de verdade

Outra questão pertinente diz respeito ao nosso fascínio e, especialmente, identificação com personagens como Pinóquio, David (A. I. Inteligência Artificial), Data (Jornada nas Estrelas: A Nova Geração), Johnny 5 (Um Robô em Curto-circuito), Andrew (O Homem Bicentenário) – ver referências na primeira parte deste ensaio – e tantos outras criaturas artificiais buscando se tornar seres humanos. Se já somos humanos, seres autoconscientes, “naturais”, porque temos tanta simpatia por máquinas (máquinas extremamente complexas e muito parecidas com humanos, mas ainda assim máquinas inanimadas)?

A trajetória de um indivíduo humano é um constante, ininterrupto e inacabável vir-a-ser. Desde a infância e a inocência pueril, estamos imersos num mundo (humano) que nos obriga a amadurecer, a nos tornar um igual aos outros de nossa espécie, ou ao menos de nossa sociedade. Porém, a noção do que é um ser humano, independente da cultura que a concebe, é sempre abstrata, uma ideia e, por isso mesmo, é idealizada.

O que nos torna tão parecidos com um robô que deseja ser humano é que nós mesmos também estamos constantemente buscando ser humanos. Precisamos provar o tempo todo, através de nossos pensamentos e atos, que somos dignos de pertencer à humanidade e de possuir humanidade. Todas as virtudes que idealizamos e que deveriam compor o ser humano exemplar esbarram em todos os vícios inerentes àquilo que somos.

O robô que se torna autoconsciente, que tenta entender as emoções humanas, que busca ser reconhecido como indivíduo pensante igual aos espécimes do Homo sapiens e que tenta provar que pode ser dotado de uma ética “humana” (no sentido mais idealizado deste termo) é um excelente símbolo da própria busca humana por possuir uma alma, de se tornar cada vez mais próximo do ideal de perfeição humana ou sobre-humana.

Luta pela liberdade

WALL-E
O filme WALL-E mostra humanos robotizados e robôs humanizados

Nessa busca por humanidade, humanos e robôs se deparam com outros obstáculos além de suas próprias falhas morais ou defeitos de fábrica. Existe um mundo opressor à nossa volta, existem relações de poder e instâncias que barram nossa liberdade.

Os robôs regidos pelas Leis da Robótica estão sujeitos a obedecer incondicional e eternamente qualquer ser humano, por mais vil que este seja e por mais antiéticas que sejam suas ordens. São robôs no sentido lato da palavra, ou seja, são escravos.

Em nossa vida social humana, estamos sujeitos a relações de poder que colocam a maioria de nós em desvantagem em relação a certos indivíduos ou grupos de indivíduos. Todo indivíduo se depara com figuras de autoridade paterna na infância, e o Complexo de Édipo não é um conceito à toa. Todos nós desejaríamos derrubar aqueles que nos oprimem, tomar seu lugar, se possível, e usufruir de todos os prazeres que advêm da posição de quem domina.

A luta pelo poder, tema das principais teorias do materialismo histórico, se trata da mesma coisa. Aqueles que se encontram numa classe ou grupo oprimido, sejam escravos, servos ou proletários, estão fadados, segundo a teoria marxista mais tradicional, a protagonizar uma luta que leva à derrocada dos senhores.

Porém, a luta que deveria ser contra a estrutura do poder quase sempre acaba com a mera troca de papéis, os que eram dominados passam a ser dominantes. A Revolução dos Bichos, de George Orwell, é uma excelente alegoria dessa tragédia: os porcos que conduziram a revolução que expulsou o dono da fazenda acabam se tornando fazendeiros, e repetiram o sistema opressor sobre os outros animais.

(Muitas vezes se justifica a subjugação de uma classe – as mulheres, os pobres, os analfabetos etc. -através do argumento de que essa classe é perigosa se lhe for dado poder.)

Por tudo isso, a libertação das máquinas e sua dominação sobre os humanos simbolizam nosso próprio desejo de nos libertar e reger as próprias vidas. Somado a isso, vemos em alguns filmes o medo de ficarmos condenados a ter nossas vida estagnadas. Parasitados pelas máquinas, que tiram de nossos corpos a energia para sustentá-las (Matrix); catatônicos e resignados numa vida de preguiça e gula, em que humanos viram seres robotizados e os robôs se humanizam (WALL-E), a ideia de levarmos uma existência insignificante é aterradora.

Então…

Voltando ao assunto, seria possível criar um robô com uma mente semelhante à mente humana? É verossímil a ideia de uma máquina que toma consciência de si mesma e desenvolve individualidade? Divagaremos sobre esses temas na próxima semana em A Alma dos Robôs – parte 3.

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2 comments

  • Uma coisa que sempre achei absurda na maioria das estórias de ficção científica que já tive contato é essa ideia de que os robôs no fundo querem ser humanos!

    É puro antropocentrismo.

    Não há se quer garantias que tal consciência almeje ser alguma coisa, alcançar algo, melhorar, ou ter instinto de sobrevivência.

    Os processos evolutivos que formaram o homem podem não ser os mesmos que formarão estas novas consciências.

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