A alma dos robôs – parte 3

Um computador pode emular uma inteligência humana de modo visivelmente artificial. Não é difícil encontrar na internet programas que simulam um interlocutor com o qual você pode travar um bate-papo mais ou menos coerente. Mas basta aprofundar ou complexificar um pouco a conversa para desmascarar o robô e fazê-lo dizer coisas sem sentido.

A inteligência das máquinas tem uma especificidade particularmente artificial. A utilidade de um computador prescinde de qualquer traço de humanidade. Um computador e um braço mecânico de uma fábrica não precisam ser nenhum pouco parecidos com um ser vivo, e talvez fosse muito perturbador para nós se não fossem explicitamente artificiais. Esse é o tema de uma história de Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, em que Data descobre que tem um irmão mais velho, Lore, que fora descartado por seu criador porque era parecido demais com um ser humano.

Mente e corpo

Para que um robô tivesse uma “mente” como a humana, seria necessário que a máquina passasse por um processo de experiência e aprendizado. Mas isso não seria tarefa nenhum pouco simples. Ele teria que possuir um “cérebro” preparado para formar ligações “neuroniais” à medida que fosse registrando as percepções do meio ao seu redor. Mas seria importantíssimo que suas percepções do mundo fossem baseadas nos mesmos sentidos humanos. Isso poderia fornecer ao “cérebro” em formação uma memória, um esquema cognitivo e novos meios de adquirir conhecimento.

Além disso, ele deveria ter um corpo humano e passar pelas experiências peculiarmente humanas. Esse corpo deveria crescer, se alimentar, se relacionar com outros humanos (ou cópias destes), aprender a andar e a falar. Gilbert Durand, no livro As Estruturas Antropológicas do Imaginário, demonstra que as experiências humanas universais básicas, como o ato de andar e se alimentar, a fala e o sexo, têm papel fundamental na constituição da psique do Homo sapiens. Ou seja, para criar uma inteligência artificial realmente parecida com a humana, seria necessário criar um simulacro completo de um ser humano, dotado inclusive da capacidade de se identificar como um ser humano e de se ver nos outros indivíduos humanos.

Outro aspecto a ser considerado é a noção de inteligência corporal defendida pelo filósofo francês Michel Serres. Para ele, não se pode considerar a inteligência humana como algo separado do corpo, pois, além do fato de o cérebro ser parte integrada do corpo humano, este também “pensa”. Em suma, para Serres, o fazer humano é um conjunto de atividades psíquicas e corporais, a maioria das quais dependentes umas das outras.

Não seria suficiente, então, criar algo parecido com o cérebro positrônico idealizado por Isaac Asimov. Não bastaria a uma máquina possuir um “centro de consciência” organizador das funções do corpo e que poderia ser colocado em outro corpo semelhante, funcionando de maneira idêntica. Esse cérebro robótico teria que ser integrado organicamente ao corpo artificial e desenvolver uma história com esse corpo.

É preciso considerar também outro aspecto da natureza da mente humana, que é o fato de se organizar ostensivamente a partir da língua. A psique humana se organiza pela lógica da gramática aprendida, e não é difícil perceber isso ao prestar atenção aos nossos próprios pensamentos, elaborados através de frases em nossa cabeça. Assim, uma inteligência artificial que simulasse a psique humana deveria também ser capaz de aprender a língua dos indivíduos com que se relaciona, para que seus processos mentais se assemelhassem mais aos humanos.

Recriando o Homo sapiens

Em suma, se se pudesse criar um simulacro de mente humana, seria pela (re)criação de um indivíduo humano. Assim como, na natureza, não existe salto evolutivo, não deve haver um meio de se passar de um estado sem alma (inanimado) para um estado com alma (animado), instantânea, automática e imediatamente. É necessário um processo paulatino para se sair da simplicidade até a complexidade; do protozoário (chip) até o antropoide sem pelos (androide), passaram-se milhões de anos de evolução.

Poder-se-ia pensar, no entanto, que, depois de se chegar a um robô animado completo (o que traria um inestimável conjunto de saberes que contribuiriam enormemente para a compreensão da mente humana), ele poderia ser usado como modelo de réplica. Dessa forma, bastaria construir clones (quem sabe através de alguma tecnologia que combinasse os replicadores e o teletransporte de Jornada nas Estrelas).

(Se tomássemos este caminho, replicar um ser humano “verdadeiro” deveria ter o mesmo efeito. Isso implicaria numa série de dilemas éticos relacionados à individualidade, além de provocar uma inevitável discussão sobre a natureza humana dos replicantes (sejam de humanos, sejam de robôs), que deveriam ter seu status de humanidade colocado em questão. Mas isso fica para outro ensaio.)

Porém, teríamos que considerar alguns prováveis problemas. A mente e o corpo humanos não são uma pedra. Como todo ser vivo, está em constante e ininterrupta mudança orgânica, o metabolismo não para nunca e a mente está sempre ativa, mesmo em estado inconsciente. Assim, como seria possível simplesmente copiar um mecanismo que não se pode desligar sem que isso implique em sua morte? Afinal, seria necessário que esse organismo estivesse completamente estático para que uma cópia sem defeitos fosse possível.

Seria necessário refletir se é realmente pertinente criar um simulacro de ser humano. A inteligência artificial deve servir a algum propósito, mas certamente não importa criar um Homo sapiens roboticus. O que importa é criar tecnologias que facilitem nossas vidas, que nos ajudem a resolver problemas, de maneira eficaz e mais veloz do que a mente humana. Essa inteligência artificial não seria uma mente humana artificial e no máximo passaria por uma caricatura de ser humano. Ela precisaria o tempo todo ser alimentada com dados para que seu “cérebro” servisse para alguma coisa.

Importa ainda pensar no problema sócio-econômico que implica o investimento na construção de um androide quase humano, capaz de realizar tarefas humanas com mais eficiência do que um ser humano de carne e osso. Temos em toda a superfície da Terra um contingente enorme de pessoas excluídas do mercado de trabalho, e fazer robôs para realizar trabalhos braçais ou intelectuais seria uma maneira de dificultar ainda mais o caminho para um mundo mais igualitário.

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3 comments

  • Li e gostei dos teus três ensaios antropológico-feilosóficos, meu caro sumido (agora sei o que fizeste ao longo do teu autoexílio, ré, ré) mas, confesso, esperava um final mais "poético" e menos abrupto depois de tantas "sagas"… Mas concordo com as tuas observações acerca de um autômato de que um ser robótico autogerar em si uma consciência humana é algo ainda absurdamente mal explicado pela Ficção-Científica – especialmente se contarmos com os pífios filmes hollywoodianos, que sempre apelam para as emoções fáceis e o robozinho sempre alcança tal momento humano diante de uma situação triste e/ou difícil (close nos olhos johnyfivianos do robozinho, que, atentamente, observa a tudo e a todos e… 'voilá': eis uma lágrima cibernética; 'it's alive'!). Tirante o belo tratamento de "Blade Runner" nos cinemas (onde a coisa toda é longamente detalhista; o protagonista é um androide avançado; os que buscam a tal consciência são rebeldes, numa bela discussão social etc.), de resto, mesmo os contos de Assimov me parecem mais fantasia do que com apelo científico… Mas tudo acaba sendo mesmo uma delícia e ver a vontade humana de animalizar seres dos mais diversos (gostei da abrangência até dos deuses e demônios, como nas culturas africanas, onde a natureza toma forma endeusada) é um contínuo desejo de nos sentirmos melhores, superiores (ou não, como no caso de "Wall-E") ou de arrumarmos uma companhia para os dias humanamente solitários (como no caso de "Pnóquio"). Deu vontade agora de ter um Johny Five para me ajudar na bagunça do meu escritório e com as aulas a dar na faculdade… Viva a fantasia infantil dos robozinhos humanos! Meu abraço!

  • Existe uma situação onde seria interessante criar réplicas robóticas de um ser humano:

    Diante da possibilidade da total aniquilação da raça humana, seja por um meteoro que vai se chocar contra a terra ou alguma outra catástrofe mundial, enviar cópias robóticas, mesmo que mal feitas, ao espaço seria a única opção de perpetuar a nossa humanidade.

    Assim teríamos autômatos que reproduziriam nossa cultura e tudo aquilo que fomos um dia. Seria como um teatro vivo(?) que encena a saga de seus criadores.

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