A loteria do mérito

Ao ler Jogos Vorazes (Hunger Games), de Suzanne Collins, refleti bastante sobre os mecanismos pelos quais as relações de poder são mantidas e justificadas em nossa sociedade. Especialmente marcante é a própria instituição dos jogos vorazes sobre os quais se centra a história do livro, uma espécie de circus maximus romano adaptado a um cenário futurista.

Todos os anos, cada um dos doze distritos habitados pelos trabalhadores braçais da nação de Panem (“pão” em latim, referência à expressão “pão e circo”) sorteia dois jovens, um garoto e uma garota, para representar sua comunidade nos jogos. Quase como acontecia na Ilha de Creta, onde jovens eram colocados dentro de um labirinto para ser caçados pelo Minotauro, os vinte e quatro jovens são colocados dentro de uma arena para matar uns aos outros, sendo o último sobrevivente, o vitorioso, agraciado com riqueza, fama e uma oportunidade de melhorar as condições de sua família no distrito do qual saiu.

Esses jogos são um mecanismo muito eficaz para arrefecer qualquer ânimo de revolta dos habitantes dos distritos contra as autoridades que exploram sua força de trabalho. A promessa de uma vida melhor motiva esses jovens a dar tudo de si nos jogos, pois estes são o único meio instituído que têm à mão para sair da condição de exploração imposta pela Capital. No entanto, o sucesso de um (e sua família) se dá às custas do fracasso de vinte e três, e todo ano cada distrito perde crianças no combate mortal da arena.

Na série de quadrinhos Fábulas, um tema me fez remeter aos jogos vorazes de Panem. Contextualizando a série, trata-se da história épica de um grupo de personagens de contos de fadas que saíram de seu mundo fantástico para a Terra, fugindo de um poderoso inimigo (o Adversário). Eles se estabeleceram num bairro da cidade de Nova Iorque para tentar viver uma vida tranquila. Porém, várias das fábulas têm aparência não-humana e ficaram confinadas na Fazenda, uma comunidade rural longe da metrópole, onde animais, plantas e objetos falantes não chamariam atenção dos humanos “mundanos”.

Depois de uma guerra que levou à derrocada do Adversário e de um conflito contra outro vilão, as fábulas começaram a reorganizar suas vidas. Porém, em meio às tomadas de decisão sobre quem iria ficar na Fazenda, quem iria continuar morando na Cidade das Fábulas e quem retornaria às Terras Natais, um grupo de fábulas não humanas começaram a reivindicar uma das promessas do prefeito eleito: feitiços de glamour grátis para todos o que quisessem assumir forma humana e perambular livremente pela Terra.

O problema é que o candidato a prefeito não consultou os feiticeiros responsáveis antes de fazer essa promessa, e agora a verdade veio à tona: não será possível realizar tantos feitiços. A solução encontrada é a criação de 5 feitiços de glamour que podem ser usufruídos e repassados, de modo que todos poderão ter a chance de experimentar por um curto período de tempo a transformação. E assim se institui uma loteria do glamour.

É por essa mesma via que George Orwell imaginou, no livro 1984, que a sociedade oprimida pelo Partido teria como religião a Loteria. Esta seria uma forma de distrair os trabalhadores, de fazê-los sonhar com dias melhores enquanto enfrentam a labuta extenuante imposta por seus opressores. Essa relação entre a Loteria e a Religião explicita para nós o caráter arbitrário das crenças religiosas, que podem mudar ao longo da História, segundo os interesses de quem está no Poder.

John Hurt a versão cinematográfica de 1984 (1984)
John Hurt na versão cinematográfica de 1984 (1984)

Por um lado, as noções de recompensa e punição estão sujeitas aos caprichos de quem escreve e de quem aplica a Lei, representando sua vontade; por outro lado, do ponto de vista de quem participa dessa loteria, a sorte é o que impera, e todos não fazem senão apostar na aleatoriedade.

Mas o que todas essas alegorias fictícias e fantásticas nos revelam, acima de tudo, sejam os Jogos Vorazes (“Que a sorte esteja sempre a seu favor”), seja a loteria do glamour ou a religião imposta pelo Grande Irmão, é que, por trás da ideia de que algum mérito pode ser aferido daqueles que são sorteados, estamos na verdade vivenciando uma sociedade onde o que impera é a sorte. No jogo da meritocracia, aqueles que vencem não o fazem por mérito, e sim por nascerem com um bilhete premiado ou por se encontrar no lugar certo na hora certa em que seu nome foi chamado pela Fortuna. É essa a realidade social mascarada pela ideologia da meritocracia.

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