“A saga tropical de William James”

O espírito antropológico, pelo qual um pesquisador consegue relativizar seu próprio etnocentrismo e conhecer, interagir e conviver com outros povos, não se desenvolve com a mera formação acadêmica em Ciências Sociais. De fato, muitos dos que escolheram a Antropologia como carreira já tinham uma predisposição a um pensamento mais humanista, antes de entrar na Academia.

E muitos antropólogos e/ou pensadores que contribuíram para a Antropologia não tinham formação nesta disciplina. Basta lembrar de Michel de Montaigne (filósofo), Karl Marx (economista… na verdade um polímata), Sigmund Freud (psicanalista) e até o “pai da etnografia” Bronislaw Malinowski (formado em Ciências Exatas).

Abaixo trago um texto da revista Carta Capital, de Elias Thomé Saliba, sobre o filósofo norte-americano William James, que em sua obra mostrou possuir um espírito crítico que o permitiu ver além de seu próprio etnocentrismo e do racismo que marcou o pensamento de sua época. O livro de que fala a matéria deve valer a pena ler.

A saga tropical de William James

Elias Thomé Saliba

8 de março de 2011 às 16:07h

William James
O filósofo narra sua viagem ao Brasil e contesta a atitude racista de seu professor. Por Elias Thomé Saliba

Quando chegou ao Rio, em 1865, contraiu a varíola que o deixaria cego por semanas. Depois passou meses coletando espécies de peixes tropicais e convivendo com as populações ribeirinhas da Amazônia. Dormiu em rede, pitou cachimbo, comeu “iguarias de bugres”, como pirarucu seco com farinha de mandioca, e aprendeu português para “conversar acocorado” com índios da Amazônia. Não se trata de um aventureiro caçando borboletas em terras exóticas, mas de William James, um dos filósofos fundadores do pragmatismo, famoso por definir, pela primeira vez, o “fluxo da consciência”, conceito que inspiraria pensadores como Henri Bergson e Sigmund Freud, transmutando-se em técnica literária nos romances de James Joyce, Virginia Woolf, William Faulkner e tantos outros.

Procedente de boa família da Nova Inglaterra, irmão do escritor Henry James, William viajou para cá ainda estudante de Medicina em Harvard. Tinha 23 anos e veio como uma espécie de estagiário na expedição liderada pelo naturalista suíço Louis Agassiz, professor de James e, na época, um dos mais renomados cientistas norte-americanos. A história da expedição era razoavelmente conhecida, sobretudo porque ganhou uma cronista oficial, Elizabeth Agassiz, mulher de Louis, que, três anos após o fim da viagem, publicou seu A Journey in Brazil. James permaneceu por aqui por quase dez meses. Deixou um diário incompleto e inúmeras cartas aos familiares. É esse conjunto precioso e inédito de escritos que chega até nós em O Brasil no Olhar de William James (Edusp, 184 págs., –R$ 60),– edição recheada de fotos da época, com desenhos originais do filósofo e uma densa introdução da organizadora, a historiadora Maria Helena P. T. Machado.

Apesar dos objetivos puramente científicos, comuns a toda expedição oitocentista, a missão tinha o apoio oficial do governo dos Estados Unidos, que se aproveitou da amizade (epistolar) de Agassiz com dom Pedro II para incentivar a abertura da Amazônia à navegação internacional e sondar territórios destinados ao assentamento de populações negras norte–americanas na várzea amazônica. Nada disso vingou, mas, de qualquer forma, tais objetivos velados destoavam da visão paradisíaca com a qual a cultura naturalista representava a Amazônia, mostrando que, em meados do século XIX, proliferavam projetos mais perversos e reacionários em relação aos países tropicais.

Defensor do criacionismo, Agassiz sonhava com uma coleção enciclopédica para o Museu de Zoologia Comparada de Harvard que espelhasse a distribuição das espécies no globo, segundo desígnios divinos. Adepto da teoria da degeneração, que atribuía a decadência biológica das raças à miscigenação ou ao mullatoism (mulatismo), adotou posições racistas, radicais até para a época, como aquela segundo a qual a raça negra havia sido criada para colonizar áreas tropicais, inadequadas à sobrevivência do homem branco. Agassiz contratou fotógrafos para retratar, no Rio e em Manaus, tipos étnicos de negros e índios em posições fixas (de frente, de costas e de perfil), produzindo uma polêmica coleção de imagens de mestiços. De mulheres, preferencialmente.

O que encanta e surpreende nos relatos de James é o quanto ele se afasta e critica as posições de Agassiz. Jovem leitor de Spencer e adepto entusiasta do nascente darwinismo, atenuado pelo legado espiritualista e religioso do pai, James não contraria publicamente seu chefe e professor. Mas seus escritos estão entremeados de observações irônicas, nas quais deixa implícito seu constrangimento com a maneira pouco ética como Agassiz utilizava a autoridade para convencer nativos a se deixar fotografar despidos. James mostra-se sensível à violência presente na relação fotográfica, que produzia a imobilidade do figurante, reduzindo-o a um estado de inferioridade emocional ao posar.

Mero coletor e embalsamador de peixes e outras espécies, ele perdia entusiasmo pelas lições do professor, como registrou em carta: “Tenho me beneficiado muito em ouvir Agassiz falar, pois nunca ouvi alguém pôr para fora uma quantidade maior de bobagens”. Naturalmente, como todo viajante oitocentista no Brasil, James revela preconceitos e observações duras, perdendo a paciência com a “sonolência e a ignorância dos brasileiros”. “Esses índios”, escreveu, “são particularmente enervantes, devido à sua preguiça e indiferença. Seria engraçado (se não fosse tão enfurecedor) perceber o quanto é impossível apressar alguém, não importa quão iminente a emergência.”

Conforme convive mais tempo com os barqueiros, ajudantes, guias, empregados e gente que lhe dá hospedagem, revela invulgar empatia, esforçando-se por aprender o nhengatu (dialeto derivado do tupi, a língua falada indígena) e elaborando um pequeno vocabulário nas duas línguas. No final da viagem, garatuja uma carta em português. O filósofo parece ter apreendido nos trópicos o relativismo dos comportamentos humanos. Registra, em carta à mãe: “Você não tem ideia, minha querida mãe, quão estranha a minha vida de casa me parece, vista das profundezas deste mundo, soterrado como ele é em mera vegetação, necessidades físicas e prazeres. (…) a ideia de pessoas fervilhando por aí, se matando de pensar sobre coisas que não têm nenhuma conexão com circunstâncias externas, estudando ao delírio, perdendo o juízo por causa de religião e filosofia, respirando o perpétuo gás do aquecimento e da excitação, me parece inacreditável e inimaginável”.

Escritas ao sabor das circunstâncias, as cartas divergem dos repetitivos livros de viagens que desde os séculos XV e XVI colocavam tudo na chave do pitoresco, descrevendo aberrações do clima e da topografia, encontros com grifos, amazonas e gente sem boca, terminando tudo com a descoberta de fontes da juventude ou do paraíso terrestre. Sobretudo, as cartas contrariam o olhar naturalista supostamente neutro e cheio de cientificidade que descrevia pessoas como se fossem vegetais e obscurecia qualquer sociabilidade que não se prestasse à notação exótica.

James deixou um testemunho valioso sobre a Amazônia, diferente do olhar distanciado que lançava o manto do paternalismo, da inferioridade ou da vitimização sobre brasileiros infelizes. Infelizes? Nem tanto. Em uma de suas últimas expedições de coleta, hospedado na casa de Urbano da Encarnação, um brasileiro cafuzo, escreveu: “Nunca houve uma classe de pessoas mais decentes do que estas. O velho Urbano é talhado para ser amigo de qualquer homem que exista, não importando quão elevado seja seu nascimento e bens. Não há nem uma gota de nossas amaldiçoadas brutalidade e vulgaridades anglo-saxônicas. Todos conversam com tanta beleza e harmonia (…) sempre num tom suave, baixo e vagaroso, como se a eternidade inteira estivesse à frente deles”. Para o futuro filósofo do pragmatismo, o velho Urbano parecia melhor do que tudo o que viria depois.

Foto: Reprodução do livro O Brasil no olhar de William James

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