Afrofuturismo em cinco pequenos gestos

Pode-se dizer que o Afrofuturismo é uma reinvenção do futuro das pessoas negras vivendo na cultura racista ocidental. Seja concebendo a presença dos descendentes de africanos nas narrativas fictícias futuristas, seja representando-os como pertencentes ao mundo da alta tecnologia (e não só de uma certa cultura pautada num passado “primitivo”), seja os negros se apropriando da Ficção Científica para contar histórias pertinentes a sua existência enquanto minoria, o Afrofuturismo se compõe de uma gama de manifestações que atualizam a cultura pop/nerd/geek/futurista segundo um ideal igualitário ainda difícil de ser concretizado, tanto na vida cotidiana quanto nas artes e na ficção.

Em artigo anterior, eu discorri sobre potenciais releituras afrofuturistas de temas recorrentes da Ficção Científica, baseando-me nas ideias de Ytasha Womack em seu livro Afrofuturism: The World of Black Sci Fi and Fantasy Culture, mostrando como os diversos temas e tropos do gênero podem ser reinterpretados como metáforas da tragédia dos afrodescendentes no Atlântico Negro. Mas essas releituras não resultam necessariamente em produtos afrofuturistas e podem não radicalizar suficientemente a proposta. Para que isso seja feito, penso, é preciso que as manifestações de reinvenção afrofuturista da cultura seja protagonizada por negros. Aliás, esse é necessariamente um pré-requisito para se considerar certas iniciativas como autenticamente afrofuturistas.

Isso foi feito por seus principais expoentes, como Sun Ra, na música, Octavia Butler, na literatura, e Spike Lee, no cinema. As grandes obras desses artistas são por si só instrumentos de inspiração. Mas há alguns pequenos gestos, iniciativas e atitudes que fizeram e fazem grande diferença e cujo significado é bastante contundente, não só por terem sido empreendidos por pessoas negras, mas porque ajudaram a mudar certos paradigmas ou, no mínimo, chamaram atenção para certas falhas na representatividade negra na mídia.

1. Nichelle Nichols: where no black woman has gone before

1966 testemunhou o advento de uma grande franquia de Ficção Científica na televisão estadounidense. Em Jornada nas Estrelas (Star Trek), Gene Roddenberry visualizou um futuro de alta tecnologia onde estava presente uma significativa diversidade humana. E entre os principais componentes da ponte de comando da nave estelar Enterprise estava Uhura, oficial de comunicações, uma mulher negra.

Embora a concepção da personagem em si não tenha sido feita pela própria Nichelle Nichols, atriz que a interpretou, há um detalhe interessante a respeito do seu nome. Uhura é derivado de uhuru, palavra suaíli que significa “liberdade”. De acordo com Nichols, o nome da personagem foi concebido por ela junto a Gene Roddenberry, que se basearam no nome de um romance popular na época (Uhuru, de Robert Ruark).

Isso é significativo porque representa a participação de uma atriz negra na construção de uma personagem que viria a ser um ícone muito significativo na cultura pop, além de trazer uma óbvia referência à luta contra a escravidão e à emancipação dos negros como um ideal a ser perseguido e plenamente realizado num futuro utópico.

Podemos perceber que a própria personalidade de Nichols influenciou Uhura, muito notadamente em sua caracterização como uma cantora e dançarina apaixonada que canta e dança por um ímpeto pessoal e não por demanda de uma plateia branca.

A mera presença Nichols/Uhura na tripulação principal de uma série de televisão popular foi tão influente que inspirou muitas crianças negras a seguir carreiras de difícil acesso à população racialmente discriminada. Mae Jemison é uma física e astronauta da NASA que se sentiu encorajada pela atriz/personagem a realizar seu sonho e foi a primeira mulher negra a viajar ao espaço (ela também viria a fazer uma ponta na série Jornada nas Estrelas: A Nova Geração). Whoopi Goldberg relembra que em sua infância, ao ver Uhura pela primeira vez, correu para avisar sua família:

Acabei de ver uma mulher negra na televisão, e ela não é uma empregada!

Goldberg não apenas veio a ser uma renomada e versátil atriz como fez um papel semirrecorrente em Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, a misteriosa Guinan.

2. Martin Luther King aposta em Uhura

A história contada acima não estaria completa se deixássemos de mencionar o gesto de encorajamento que manteve Nichelle Nichols na franquia Star Trek. A atriz, por considerar seu papel na série como de pouca importância, havia decidido não renovar o contrato para a segunda temporada.

Nichols conta que um dos principais motivadores para que ela se mantivesse na série foi uma rápida conversa com ninguém menos do que Martin Luther King, grande ativista negro que, segundo ela, fez questão de lhe pedir pessoalmente que não abandonasse Star Trek, pois a presença dela na televisão representava um grande incentivo para jovens negras e negros dos EUA, em plena luta pelos direitos civis e contra o segregacionismo racial.

O gesto de Martin Luther King pode ser dividido em duas atitudes encorajadoras. Primeiro, ele se declarou fã de Star Trek e de Uhura, quebrando de forma contundente a ideia preconceituosa de que os negros não se interessam por Ficção Científica ou por ideias futuristas. Puro Afrofuturismo. Segundo, ele foi corresponsável por manter na televisão uma das grandes referências e influências da representatividade negra (e feminina) da cultura pop. Nichelle Nichols não apenas ficaria nas duas temporadas seguintes da série original, como participaria da Série Animada e de todos os seis filmes com a tripulação clássica.

3. Michael Jackson caminha na Lua

Michael Jackson pode ser considerado uma das grandes figuras do Afrofuturismo na música. Ele era um verdadeiro nerd, gostava de quadrinhos e video games. Parte de suas maiores composições musicais, performances coreográficas e videoclipes tem referências a temas da Ficção Científica, do Fantástico e do Terror.

Em 1983, no festival Motown 25: Yesterday, Today, Forever, Jackson executou em público pela primeira vez e de forma espetacular o passo de dança que ele batizou de moonwalk, “caminhada na Lua”. Veja no vídeo abaixo, em 3’37”.

Embora muitos pensem que o dançarino inventou o gesto, na verdade ele aprendeu de outro artista, e a bem da verdade, desde pelo menos 1932 esse passo já era realizado por dançarinos e cantores nos Estados Unidos. Mas o que há de interessante nisso em termos de Afrofuturismo, já que o passo não foi invenção de Michael Jackson?

O que importa neste gesto é o fato de ele ter sido reimaginado por Jackson como uma referência aos avanços científicos. O dançarino que executa o moonwalk parece estar livre da influência da gravidade terrestre, como se estivesse caminhando na Lua. Ou seja, o artista trouxe para a música e a dança negras um conceito futurista. Se faltava representatividade negra na Astronomia em termos de pessoas que já pisaram na Lua ou que já haviam no mínimo ido ao espaço, o cantor e dançarino negro Michael Jackson trouxe para a Terra uma forma de sonhar com a ida de pessoas negras ao satélite natural da Terra.

É interessante lembrar que a primeira pessoa negra a viajar ao espaço foi o cubano Arnaldo Tamayo Méndez, em 1980, na missão soviética Soyuz 38, três anos antes da apresentação de Michael Jackson. Em 1983, deu-se a primeira ida de uma pessoa afro-americana ao espaço, Guion Bluford. Desde então, houve algumas pessoas negras em missões espaciais, entre as quais a primeira mulher negra, Mae Jamison, citada acima, em 1992. Porém, até hoje não houve uma negra ou um negro na Lua.

4. Samuel L. Jackson: o negro é o último a morrer

Star Wars é uma das mais lucrativas e populares franquias de Fantasia Científica de todos os tempos. Mas desde seu início tem sido um tanto pobre em termos de representatividade da diversidade. No elenco original, Leia Organa (Carrie Fisher) cumpria seu papel como elemento do Princípio da Smurfette e Lando Calrissian (Billy Dee Williams) marcava presença num papel coadjuvante.

Mesmo a segunda trilogia continuou fraca em termos de presença de personagens negros, mas melhorou um pouquinho ao colocar Samuel L. Jackson no papel de Mace Windu, um dos mais poderosos mestres da Ordem Jedi e também um dos mais populares personagens dos novos filmes. Sua popularidade se deve em parte por causa de certas características ligadas ao ator que o interpreta. Jackson, sendo careca, costuma incorporar personagens com cabelos extravagantes, e Mace Windu foi uma exceção que chamou atenção do público. Além disso, o sabre-de-luz deste mestre jedi é o único que tem a cor roxa em todos os filmes da franquia (todos os outros jedi têm lâminas que variam entre azul, verde, vermelho e amarelo), e é uma marca da intervenção do próprio ator na concepção visual do personagem.

Como se não bastasse o versátil ator negro ter construído a figura de Mace Windu como um tipo afrofuturista durão e de grande força presencial, ele ainda contribuiu para transgredir um tropo muito comum no cinema, conhecido como “o cara negro morre primeiro“. Segundo este tropo, se há uma pessoa negra num grupo de personagens que vão morrer durante a trama, a probabilidade de ela ser a primeira a ser eliminada é altíssima, e muitas vezes de forma estúpida. O personagem aparece ali, talvez, no máximo para cumprir uma cota de diversidade e é logo descartado quando não se precisa mais dele.

Porém, Samuel L. Jackson solicitou pessoalmente a George Lucas que seu personagem, fadado a morrer no roteiro, não fosse eliminado “como um marginal qualquer” (“like some punk”). Assim, Mace Windu subverteu o tropo ao ser o último de seu grupo a morrer na luta contra o Senador Palpatine e ao fazê-lo de maneira heroica, tendo a vida do inimigo em suas mãos e só sucumbindo porque foi traído por Anakin Skywalker.

5. Janelle Monáe e os androides

Janelle Monáe é uma musicista, compositora, cantora e dançarina estadounidense que tem na versatilidade de estilos uma de suas marcas. Sua música é temática e envolve uma elaborada história de Ficção Científica com temas como viagens no tempo, distopia e inteligência artificial (androides). É considerada, na música contemporânea, como um expoente do Afrofuturismo, não só por misturar música negra com Ficção Científica, mas também por subverter, em suas performances musicais, videoclípicas e de palco, as identidades raciais estabelecidas e as tradicionais camisas-de-força do gênero. Eu a vejo como uma herdeira espiritual de Michael Jackson, uma figura excêntrica que constrói sua imagem pública como uma obra de arte viva e inspiradora.

Na mitologia narrativa criada por Monáe em sua música, a figura dos androides é uma constante, usada como metáfora da alteridade, das minorias oprimidas, dos grupos discriminados e objetificados, especialmente os povos escravizados, como os africanos e seus descendentes na América. E foi usando essa metáfora que a artista, num pequeno gesto afrofuturista, respondeu de maneira magnífica a uma pergunta da imprensa sobre sua sexualidade, sobre se ela é lésbica:

I only date androids. That’s great, they can claim me as well as the straight community, as well as androids. I speak about androids because I think the android represents the new ‘other’. You can compare it to being a lesbian or being a gay man or being a black woman … What I want is for people who feel oppressed or feel like the ‘other’ to connect with the music and to feel like, ‘She represents who I am’.

[Eu só me relaciono com androides. Isso é ótimo, elas [as lésbicas] podem se identificar comigo assim como a comunidade hétero, assim como os androides. Eu falo sobre androides porque penso que o androide representa o novo ‘outro’. Você pode enxergá-lo como representando uma lésbica ou um gay ou uma mulher negra… O que eu quero é que as pessoas que se sentem oprimidas ou se sentem como o ‘outro’ se conectem com a música e pensem: ‘Ela representa quem eu sou’.]

Dessa forma, Janelle Monáe explicita a metáfora do indivíduo coisificado, explorado, expropriado de sua autonomia, presente na figura dos androides, especialmente aqueles que, em histórias como as que ela conta, se rebelam contra a sujeição sob a qual vivem. Seja qual for a orientação sexual de Monáe, o fato é que a forma como ela se apresenta publicamente aciona os preconceitos da cultura em que vive, que assume que certa forma de se vestir e se comportar é supostamente típica de uma mulher homossexual. Neste sentido, identificar-se como androide é jogar para o público uma dúvida que representa a impossibilidade de se inferir, sem algum grau de preconceito, qualquer coisa a respeito da identidade individual de outra pessoa.

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