Anticristo

De Anticristo (Antichrist, 2009), de Lars von Trier, se diz que é um filme de terror. Não gosto de classificar os filmes em gêneros, “comédia”, “ação”, “ficção científica”. Isso sempre empobrece a apreciação da originalidade de uma obra. Felizmente, Anticristo é tão sui generis que se torna um bom exemplo da impossibilidade de se reduzir uma obra original a um rótulo.

A história é no geral um drama, com elementos de tragédia e, certamente, de terror. O tema principal é a face maléfica do feminino e a misoginia. Mas, se há mérito pela originalidade artística e pela abordagem ao tema, também se pode dizer que a obra como um todo é um exagero de grotesquidão, e a impressão que fica no final é: “o que diabos esse filme diz?”

Spoilers: Esta resenha contém revelações sobre a obra. Se você ainda não a viu e não quer estragar a surpresa, pare agora a leitura.

Anticristo

Título: Anticristo (Antichrist)

Diretor: Lars von Trier

País: Dinamarca, Alemanha, França, Suécia, Itália e Polônia

Ano: 2009

Olhando para o filme com um microscópio

(Willem Dafoe interpreta “ele” e Charlotte Gainsbourg interpreta “ela”. Embora os nomes dos personagens permaneçam desconhecidos, vou chamá-los de Adão e Eva (esta também será chamada, em algumas situações, de Lilith), inclusive porque essa referência bíblica dá mais significado a algumas cenas e circunstâncias da trama.)

Durante um ato sexual, o filho pequeno do casal protagonista, Nic, cai de uma janela alta e morre no momento em que Eva tem um orgasmo. Tomada de grande e prolongada culpa e luto, ela se submete a um tratamento que não parece surtir efeito nem diminuir seu sofrimento.

O ato sexual como primeira cena indica que o filme está contando a história de uma gênese. É, na verdade, a versão de Lars von Trier para o Gênese bíblico. O ato sexual representa o surgimento da vida, e veremos adiante que a história como um todo é uma paráfrase ou paródia da cosmogonia judaico-cristã. Dessa forma, também entendemos que o título do filme, Anticristo, remete em primeiro lugar ao caráter ateísta da criação sob a visão de Lars von Trier, pois aí o Universo não está sendo criado por uma força imaterial superior, mas pelo simples e carnal coito animal.

É importante ter mente que a imagem idealizada da mãe ocidental cristã é uma mulher dessexualizada. A mãe ideal se dá totalmente ao cuidado do filho, sem nenhum aspecto sexual evidente; sua sexualidade é reservada para o pai, e mesmo assim de maneira obscura, enclausurada, sem o conhecimento do filho. Para nossa cultura, seria uma enorme confusão misturar a mãe e a amante. Se uma mãe está fazendo sexo no momento em que seu filho morre, ela poderá pensar que foi irresponsável e que foi o sexo que provocou a morte de seu filho.

Neste momento inicial do filme, estamos testemunhando o regozijo do Homem e da Mulher no Éden e sua perdição. Nic é abreviatura de Nicholas, mas também é um dos apelidos do Diabo (em inglês, the Old Nick). O menino (em nossa cultura chamamos aqueles que morrem na infância de “anjos”) é o arcanjo caído, e sua morte representa o surgimento do mal no universo criado por Lars von Trier. Além disso, o menino/Diabo pode remeter à serpente que tentou Eva a comer do fruto proibido.

O surgimento do mal, no Gênese, também ocorre no momento do pecado original, ou seja, na degustação do fruto proibido, que leva Adão e Eva a sentir culpa. Porém, a misoginia da estória bíblica faz recair a maior culpa sobre Eva, o que se reflete na mortificação exclusiva dela. Afinal, além disso, Deus prometeu multiplicar as dores da mulher. Adão não sofreu tanto assim, superando facilmente e se dispondo até a ajudar sua esposa.

Adão, terapeuta amador, assume o tratamento de Eva, procurando relacionar os maiores medos da esposa e levando-a a enfrentá-los. No topo da lista está o Éden, uma casa no campo onde ela costumava ficar com Nic e da qual desenvolveu um intenso pavor após uma experiência traumática (ela escutava um lamurioso choro de criança, pensando que era seu filho e procurando-o desesperadamente; mas, ao encontrá-lo, continuava ouvindo o choro em outro lugar).

Adão tem a ideia de  irem passar um tempo no Éden para que Eva enfrente e supere seu medo. No entanto, esse movimento de reconquista do Paraíso, sendo de certa forma uma repetição, uma recriação ou uma nova tentativa de começar o Universo, esbarra em dificuldades. Adão corre o risco de cometer um erro e ter Eva regredida à primeiríssima mulher, Lilith, feita do barro como ele.

O papel original do Adão bíblico era dar nomes aos seres viventes. O homem era o senhor do Éden, e Deus era o Senhor do homem. Mas a tentativa de reconquistar o Éden começa a se mostrar complicada. O Adão de Trier já provou do fruto do conhecimento e não consegue encarar mais com naturalidade o mundo natural. Este vai aparecer para ele como um lugar terrível.

A primeira visão aterradora é a de uma gazela com um feto natimorto pendurado de sua vagina. Há dois sentidos nessa cena: 1) mostrar que Adão não mais se sente à vontade com a natureza selvagem e 2) fazer uma referência ao aborto de seu próprio filho Nic. A gazela deixa claro para ele o que ocorreu com Eva: seu filho morreu, mas ela ainda carrega seu peso consigo.

Outro terror enfrentado por Adão são as sementes de carvalho que caem ribombando no telhado à noite e que pela manhã estão grudadas no seu braço, que ficou do lado de fora da janela. As sementes simbolizam a fertilidade natural e a luta pela sobrevivência. Se Adão não zelar por sua vida, ele pode acabar como adubo e alimento para novos pés de carvalho.

O terceiro encontro é com uma raposa ferida que fala: “o caos reina”. A raposa é o símbolo da astúcia. Se uma raposa está ferida, isso significa que há uma força maior, provavelmente o Caos, que não poderá ser contornada com a esperteza. Neste caso, a inteligência de Adão não será suficiente para que ele escape dos perigos que estão por vir. “Chaos reigns” (“o caos reina”) também soa como “chaos rains” (“chove caos”), o que pode aludir às sementes de carvalho que caíram como um prenúncio do que está por vir.

A pesquisa dela sobre ginocídio, especialmente sobre a perseguição às bruxas na Idade Média, a faz despertar uma estranha personalidade conectada à natureza. Ela assume a ideia misógina de que a mulher é naturalmente má, fazendo uma referência às bruxas perseguidas pela Igreja medieval (em latim, “bruxa” se traduz malefica) e dizendo ao marido que “a natureza é a igreja de Satã”.

Ele então assume que Satã é o maior medo dela, mas descobre que ela está incorporando o estereótipo da bruxa serva do Diabo, transformando-se de Eva em Lilith, e é violentado e nocauteado por ela, que esmaga seus testículos, masturba-o para que ele ejacule sangue e enfim perfura sua perna esquerda para prender uma pesada roda de metal e impedi-lo de andar. Ele foge e se esconde numa vala, onde encontra o terceiro animal, um corvo enterrado vivo que, crocitando, delata a Lilith o esconderijo de Adão.

O corvo tem uma relação metafórica com Adão, pois ambos estão imobilizados, impedidos de andar e voar. Importa lembrar que essa ave é, no ocidente, um símbolo da morte. Podemos inferir que foi Lilith quem o enterrou, como uma armadilha para pegar Adão, o que implica num grande poder assumido pela mulher, capaz até mesmo de controlar as forças da vida e da morte.

Lilith volta a ser Eva e ajuda Adão a retornar à cabana. Sentindo imensa culpa por tudo, Eva corta seu clitóris com uma tesoura de jardim. Eles recebem a visita dos três animais, a gazela, a raposa e o corvo (esse capítulo é intitulado “Os três mendigos”). Estes podem ser uma referência aos três reis magos, que visitam Maria e José ao pé do berço de Jesus, como conta o Evangelho. No entanto, ao contrário dos visitantes de Jesus Cristo, que foram em busca de boas novas, da celebração de uma nova vida e da glorificação da mulher, os três mendigos vêm presenciar um mau augúrio, a morte e a demonização da figura feminina (o que retifica o caráter anticristão da história).

Tudo finaliza com uma luta entre homem e mulher, na qual esta é morta e queimada como uma bruxa. Recapitulando, a mulher provocou toda a situação que levou a justificar a necessidade de sua morte pelo homem. A mensagem é a de que o feminino e a mulher são vistos como forças perigosas demais para ser deixadas soltas, e caberia ao homem controlar essas forças ou destruí-las, se necessário.

O título da música principal do filme, “Lascia ch’io Pianga”, da ópera Rinaldo, de Handel, se traduz como “Deixe-me chorar”. Ela pode ser uma pista do que levou tudo a dar errado no filme. Adão não queria que Eva se lamentasse mais, queria que ela superasse seu trauma de uma vez por todas. Ao invés de compreender a necessidade de ela expurgar seu sentimento através da tristeza, ele acabou por provocar nela uma culpa ainda maior, levando-a a assumir o papel de Lilith (a bruxa assassina), quando deveria ter superado tudo através do papel da mãe cuidadosa.

Olhando para o filme com um telescópio

Há pelo menos quatro formas de se apreciar esse filme: como um pequeno tratado artístico da misoginia; como um filme de terror; como uma obra surrealista e intimista; como uma ateística e ferrenha crítica ao cristianismo.

A muitos repugnou a suposta misoginia do filme, como se isso o desqualificasse como obra artística. Ao meu ver, o filme não é misógino. As razões que existem para levar a crer que o filme é misógino são óbvias demais para não serem, na verdade, irônicas. Eu vi o filme como um manifesto antimisógino. E mesmo que a intenção de Trier fosse realmente expressar sua misoginia, a obra tem muito mais elementos que servem para criticar a misoginia do que para o contrário.

No entanto, esse suposto intento antimisógino não fica claro, e o filme pode facilmente provocar uma confusão e ambiguidade de sentimentos, pois traz à tona, de forma muito forte, as representações que consideram a mulher como um animal que precisa ser domado e reprimido. Sem preparar o olhar antes, o filme pode servir para reforçar a misoginia ou para inflamar o espectador com indignação contra o cineasta supostamente misógino. Neste sentido, se considerarmos que Trier quis fazer um filme sobre a misoginia e não um filme misógino, pode ser que ele tenha falhado.

Se eu recomendo o filme? É difícil responder a esta pergunta… o filme é uma excelente fonte de informações para uma pesquisa sobre qualquer tema relacionado à misoginia e também é um bom título para os apreciadores do gênero terror. Mas se você não se identifica com nenhum desses dois públicos, não perca tempo com esse filme (eu não teria perdido se antevisse do que se tratava – aliás, até sinto que perdi tempo escrevendo esta resenha). Procure as outras criações de Lars von Trier (Os Idiotas, Dançando no Escuro, Dogville), que é um grande cineasta. Ou procure filmes mais “leves” dentro desse tema, como As Bruxas de Salem.

Acima de tudo, entendo que, se o filme tem um mérito que o faça valer a pena ser conhecido, é o de representar uma visão crítica do Cristianismo, evidenciando os elementos mais irracionais de sua doutrina, como o culto à morte, na figura do Cristo martirizado (ao invés do declarado culto à vida), a misoginia que aparece nas figuras de Eva e de Maria (ao invés do declarado respeito à mulher) e o cultivo do desespero (que subjuga o declarado cultivo da esperança). Se você estiver disposto a ver o filme com esse viés, relevando seus elementos grotescos, faça-o. Mas eu recomendaria, em lugar disso, a leitura de dois livros de José Saramago: O Evangelho segundo jesus Cristo e Caim.

Mas você pode ver a obra como um delírio surrealista, um nonsense que serve apenas para chocar (uma espécie de O Cão Andaluz mais contemporâneo, guardadas as devidas proporções) e que pode ser interpretado por um viés psicanalista. Se pretender vê-lo assim, faça-o à luz do dia e com a presença de amigos (a reação dos ouros espectadores talvez seja mais proveitosa para uma análise crítica do filme do que o filme em si).

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4 comments

  • Em algumas partes sua explicação me pareceu meio "criativa". Não consigo ver que realmente é possível tirar todas as conclusões que você tirou do filme (considerando que sejam a única interpretação possível), mas foi uma explicação que me satisfez em certo nível. O que quero dizer é que eu sabia que tudo ali era muito simbólico, mas na maior parte do tempo eu não estava entendendo praticamente nada.
    Me identifiquei muito quando você falou sobre indicar ou não indicar o filme! Eu indicaria pra algum amigo filosofante e paciente. Eu não indicaria para um "não-cinéfilo", seria muito fácil ele dizer que o filme é uma grande porcaria.
    Parabéns pela ótima resenha.

  • Ahh! Só mais uma coisa! Achei Dogville extremamente cansativo sem os cenários e com todas aquelas pantomimas de abrir portas invisíveis. Foi uma experiência tão enjoativa que se alguém me indicar um filme com essa mesma ideia fou dizer "não, obrigado". Ao mesmo tempo, eu fico pensando, será que esse filme teria tido algo do impacto que teve se tivesse cenários?

  • Só uma coisa: não foi um arcanjo que caiu do Céu. Ao que tudo indica, o anjo decaído que você se refere, Satanás o Diabo, era um querubin e não um arcanjo. Existe apenas 1 arcanjo. Fonte: Bíblia Sagrada.

  • @Werner,

    Não existe interpretação única para uma obra de arte. Há um conceito defendido por Umberto Eco que ele chama de obra aberta. Segundo ele, qualquer livro, conto, poema, filme, música etc. é passível de infinitas interpretações, que dependem da abordagem e do repertório de quem interpreta.

    Mas uma coisa interessante na leitura e resenha de uma obra é que ela vai se construindo muito tempo depois de você a apreciar. A maioria das ideias que teci aqui sobre Anticristo foram surgindo enquanto eu escrevia esse texto.

    Sobre Dogville, considero-o uma obra-prima justamente porque consegue contar uma história de maneira profunda através de uma técnica simples. A falta do cenário faz com que os atores/personagens se destaquem bastante.

    @Carlos,

    Trata-se só de uma questão de tradição. A Bíblia não é a única fonte sobre a mitologia judaico-cristã, e há textos, como o Livro de Enoque, que dizem que Lúcifer (transformado depois em Satã) era um arcanjo.

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