As micaretas de Cristo

Uma coisa as manifestações religiosas perderam com o passar dos anos: a solenidade. Se era preciso mostrar ao mundo ou aos próximos a fé que se sentia, isso costumava ser feito com certa cerimônia e serenidade. As pessoas davam à exposição da fé o tom solene que as promessas de salvação e conduta requeriam. Hoje, o que mais se percebe é uma carnavalização da fé e da religiosidade.

As cidades estão cheias do que se poderia chamar de micaretas de Cristo: são carros de som, trios elétricos, bandas, palanques e fogos anunciando a salvação e a presença de Deus no meio da rua. O que antes era solenidade, hoje é balbúrdia e alarde, como acontece nas outras manifestações carnavalescas.

O barulho costuma ser ensurdecedor e todos são obrigados a receberem goela abaixo pregações que não querem e que, muitas vezes, perturbam a harmonia de nossas vidas. As micaretas de Cristo ou showmícios de Deus acordam as crianças, assustando-as com as explosões dos fogos; impedem a leitura de quem precisa se concentrar, com seus padres ou pastores – repare que essas manifestações são católicas, evangélicas ou se dizem ecumênicas, como se quem as organiza soubesse o que isso significa – aos berros, chamando por Deus, como se Este fosse surdo; elas não permitem que um sujeito trabalhador, muitas vezes em paz com seu próprio Deus, descanse de um dia árduo; ou mesmo incomodam os que apenas não querem ouvi-las e têm esse direito.

Entendo o direito de pregar uma religião, mas não aceito que não compreendam que também há o direito de não querer ouvir essas pregações. Ninguém é obrigado a compactuar com essa balbúrdia, essa sequência de desrespeitos em nome de Deus. E também me parece irônico que “Aquele que tudo vê e de tudo sabe” precise de tantos gritos para escutar alguém. Parece que os religiosos não acreditam muito nessa história de onisciência, pois se a levassem a sério, saberiam que fazer suas preces ao pé da cama, em silêncio, seria o suficiente para que Deus os ouvisse de onde quer que fosse.

Penso ser um tanto ridículo padres e pastores bancando as Ivetes Sangalo de Deus, inclusive fazendo paródias de suas músicas mais famosas. Pergunto-me se algum padre descolado já fez uma paródia do Michel Teló e anda cantando por aí “Ai, se Deus te pega, que delícia” e outras tais. Cada um que faça o que desejar, desde que esse desejo não incomode os que não compactuam, ou simplesmente não querem participar, do mesmo escarcéu.

9 comments

  • Verdade verdadeira… E muitos daqueles que creem não coadunam com esta espécie de pregação. Moro próximo a uma Igreja, a qual prefiro frequentar enquanto vazia, vez que busco na religião a paz de espírito que o mundo caótico não me oferece. Todavia, ainda assim, algumas vezes o líder religioso, na cerimonia matinal, às 06:00h, pede que as pessoas saiam buzinando pra Jesus… Cruel demais…

  • Perfeito. Concordo plenamente.

    Não só o barulho incomoda como também desrespeita aqueles que são ateus. O Estado é laico e me garante direito de culto e da falta dele e não preciso e nem quero ouvir pregações e shows de Deus, que obviamente são abusivos.

    Os ateus organizaram um encontro nacional e chamaram até de satanistas. Realmente não entendo alguns religiosos.

  • @Alex,

    É interessante que alguns cristãos acham que críticas como esta são um desrespeito a sua liberdade de culto. Mas obrigar outras pessoas a "partilhar" dessa experiência (para muitos desagradável) é atentar contra a liberdade delas.

    @Sybylla,

    Muitos cristãos consideram um grande desrespeito às suas crenças o fato de um ateu dizer o que pensa, mas eles se veem no direito de desfiar todos os seus preconceitos em relação às crenças (ou falta delas) dos outros. Para muitos cristãos, a ausência de "Deus" significa necessariamente a presença do "Diabo".

  • Porque vc não posta algo assim a respeito do próprio carnaval? ou até de manifestações do tipo a q ocorreu na USP em SP? E certo que se um cristão postar algo manifestando a sua opinião sobre quaisquer assunto desse ele é tido como preconceituoso e coisas afins, e em um instante é bombardeado por ateus e cia. Mas a mídia pode falar e expressar o que bem quer contra cristão porque está dentro da liberdade de expressão, o cristão já não. Mas pro cristão que conhece Deus em Espírito e verdade, isso não é novidade pois já fomos avisados: "Então vos hão de entregar para serdes atormentados, e matar-vos-ão; e sereis odiados de todas as nações por causa do meu nome."
    Mateus 24:9

  • @Júnior Silva
    Mas já se fala bastante contra o carnaval (e contra festas que não respeitam o direito dos outros de uma forma geral). Mas as micaretas não parecem combinar com os ideais originais pregados pelo cristianismo, nem com o respeito ao próximo. É quase um paradoxo.

    A liberdade de culto, como a liberdade de festa, só existe se o respeito às opções das outras pessoas existir. Os "ataques" aos cristãos, no meu ponto de vista, são uma resposta a todos esses anos em que foram os cristãos que atacaram as outras pessoas (da mesma forma que você pode hoje usar uma camisa escrito "100% negro" mas não "100% branco". É por aí.).

    Fora isso, está se tratando a questão em termos do respeito às pessoas e você está usando trechos da Bíblia em seu argumento, o que não é o ponto aqui. Mas já que o fez, lembre que na própria diz que nem todo que diz Senhor Senhor vai ser salvo, né? Pois eu acho que esse pessoal da micareta, que acha que essa euforia que sentem em uma festa é Deus no coração, já estão todos danados.

    Deus existindo, será ele o seu? Será ele este que está escrito em algum livro?
    Se Roma não tivesse sido império na força da espada, você seria cristão?
    Todo tipo de culto ao Deus cristão, independente da forma, é válido?
    Já se fez essas perguntas?

  • @Júnior Silva
    você acredita mesmo que os cristãos tenham todo esse cerceamento de liberdade? na verdade, penso que se existe um grupo que não pode se queixar como vítima de preconceito é exatamente o dos cristãos, que costumam estar exatamente na outra ponta da conversa.

    quanto a não falar do carnaval ou coisa do tipo, é senso comum que as perturbações existem devido ao barulho e a falta de limites. e se você tiver reparado bem, o termo "micareta" é empregado com sentido pejorativo, logo, é assim que elas são vistas pelo autor, ou por mim, se preferir.

    e para usar a mesma citação do grande Mateus, acho que os "atormentados" são os que não gostam do escarcéu cristão (que é uma espécie de carnaval ou bailão sertanejo de deus), pois o barulho que essas micaretas fazem é mesmo algo de insuportável.

    abraço!

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