Blanka o brasileiro

Blanka
© Capcom

[Texto publicado originalmente na Carta Potiguar N. 4 – 07/04/2013]

Street Fighter II é um clássico video game dos anos 90, produzido pela Capcom, que popularizou um formato de jogos de luta replicado até hoje. Mas para além de sua jogabilidade e da diversão proporcionada aos jogadores, SF2 apresentou um pitoresco elenco de personagens, com roupas, penteados, cores, trejeitos e nomes que se tornaram mitológicos na cultura popular. Alguns desses personagens se apresentam também como estereótipos étnicos, culturais e nacionais.

Para os jogadores brasileiros, sempre chamou especial atenção o personagem conterrâneo Blanka, um homem selvagem que vive na Amazônia, vestido apenas com uma calça rasgada na altura dos joelhos, algemas nos tornozelos, pele verde, uma abundante cabeleira ruiva, proferindo apenas grunhidos e com um estilo de luta agressivo em que usa unhas e dentes para ferir seus adversários.

Em sua infância ele caiu na selva amazônica num acidente de avião e cresceu na floresta com outros animais. Aprendeu a controlar a eletricidade do próprio corpo e desenvolveu sozinho um estilo de luta selvagem (embora muitos pensem erroneamente que ele luta capoeira). Conheceu o mundo ao “pegar carona” num caminhão de contrabandistas e acabou se tornando mundialmente famoso num torneio de luta, ao fim do qual foi reconhecido e encontrado pela mãe, que o chama de Jimmy.

Diferente de outros personagens mais estereotipados, Blanka parece representar muito pouco ou quase nada o brasileiro comum ou mesmo o estereótipo do brasileiro, nem a autoimagem nem a visão dos estrangeiros. Mas será que o excêntrico homem amazônico verde diz alguma coisa sobre quem são os brasileiros?  Podemos ver nele símbolos da identidade e da cultura brasileira? Talvez haja nesse inusitado personagem algumas referências ao que significa o Brasil e o brasileiro para si mesmo e para o mundo.

Blanka não é nem amarelo como Ryu, nem branco como Guile, nem vermelho como T. Hawk e nem negro como Balrog. Ele é verde. Como o povo brasileiro, sem uma identidade étnica ou racial definida, ele é não só uma interseção, mas algo diverso e exótico. Ele se apresenta inclusive com várias cores e tons de pele, a depender do título da série de jogos e de acordo com o botão com o qual o jogador o seleciona. Ele pode ser verde, azul ou roxo, assim como os brasileiros são um conjunto de identidades étnicas e de cores, brancos, amarelos, pardos, mulatos, loiros, morenos, negros etc., e o mesmo indivíduo pode assumir diversas identidades raciais de acordo com as situações do dia a dia.

Nosso amigo verde ostenta grilhões nos tornozelos, marca de um possível episódio de cativeiro em seu passado, Como os brasileiros, ele ainda guarda sinais de uma época anterior à independência, ainda se sente preso e estigmatizado com a pecha do colonizado. Ele é o escravo alforriado que não consegue se libertar totalmente da cicatriz dos golpes de açoite. Ele pode ter a pele verde, mas é um negro herdeiro da pseudoliberdade da Abolição. É também um índio ligado à natureza e arredio ao modo de vida Ocidental. E é um branco perdido no Novo Mundo. Se ele não consegue se definir totalmente como branco, índio ou negro é porque tenta frustrantemente criar uma identidade que mascare sua origem mestiça, pobre e sofrida.

Essa identidade mascarada, espelhada em algo externo, se revela em seu nome. Quase todos os personagens da franquia Street Fighter têm nomes que remetem ao povo a que pertencem. Ryu é “dragão” em japonês, Chun-li significa “bela primavera” em chinês, Ken é um típico nome norte-americano e Vega um sobrenome espanhol. Mas “Blanka” não só não soa português como tem um K que não costumava fazer parte do alfabeto oficial no Brasil até antes do Novo Acordo Ortográfico. “Blanka” é o menos estereotipado dos nomes em Street Fighter, mesmo considerando-o como um apelido. Jimmy, diminutivo de James, é simplesmente inglês e nada brasileiro.

Mas essa identidade com referência externa revela muito da representação que o brasileiro faz de si mesmo. A média dos habitantes deste pedaço da América se vê como integrante de uma cultura ocidental branca, eurocêntrica e cristã. Esse povo que vê a si mesmo como um estrangeiro distante e recém-chegado em terras bravias olha para a população pobre e negra, indígena e nativa como uma parte da natureza e fauna locais, como um elemento irreverente e inconveniente da realidade da humanidade e sociedade do país.

Esse que se pensa como um gringo que foi arrebatado pelo inferno verde e obrigado e conviver com a gentalha primitiva não percebe que ele é produto desse meio e fruto dessa floresta, compartilhando os mesmos vícios e virtudes de uma cultura que se diferencia em muitos aspectos de uma Europa ou Estados Unidos da América idealizados. Ele e sua mãe se esforçam para se inserir no mundo globalizado segundo os ditames do Ocidente, e tanto o “Jimmy” quanto o “Blanka” com K são reflexos da tentativa de se “americanizar” e fazer parte de um grupo privilegiado, bem como tantos  nomes luso-brasileiros em que se enxertam Ks, Ws e Ys meio que aleatoriamente.

No entanto, apesar de todo esse conflito, Blanka sabe ser irônico e ridicularizar a si mesmo e ao outro. Quando vence uma luta, solta essa frase de efeito: “Seeing you in action is a joke!”, “Ver você em ação é uma piada!” Ora, sendo um dos mais “ridículos” personagens aos olhos dos outros, Blanka zomba de seus adversários no melhor humor brasileiro. É o patinho feio tupiniquim que na Copa do Mundo de Futebol mostrou 5 vezes ser um grandioso cisne cinzento.

Blanka é uma contradição como é o brasileiro. Nem o lutador glamouroso que sonha ser, nem o monstro que teme dentro de si, o brasileiro é um produto inusitado e único que precisa se reconhecer e ser reconhecido em sua especificidade cultural. Mistura de elementos de várias nacionalidades, não deve negar nenhuma deles como fonte de sua natureza atual, e deve trilhar um caminho só dele, mas lado a lado, de igual para igual com os outros “competidores” do Grande Torneio Mundial.

[As imagens que ilustram este texto são propriedade da Capcom]

12 comments

  • Legal q a afinidade dos jogadores brasileiros com ele foi instantânea. hehehe
    Agora, segundo consta (o q me decepcionou um tanto) é que ele não é brasileiro de nascença. Na verdade, ele é um piloto americano que caiu na selva amazônica.
    ainda assim, concorda com o texto, é o branco-europeu alterado pelo meio.

    • Existem várias histórias. O que me consta é que, oficialmente, ele caiu num acidente de avião quando era criança (se ele era americano ou brasileiro, não sei).

      A história de ele ser um piloto americano pode ter aparecido depois da confusão que fizeram por causa do filme Street Fighter, com Van Damme. No filme, Carlos Blanka era um piloto, colega de Guile. Depois, com o aparecimento do personagem Charlie, colega de Guile, nos video games, o pessoal associou os dois (Carlos/Charile) e daí surgiram muitas especulações…

    • Na verdade, Blanka e e sempre foi brasileiro. E isso é oficial na Capcom desde sempre. Como foi bem dito, o filme com Van Damme é que criou confusão.

      O pai de Blanka, com quem ele viajava, é que talvez tenha descendência estrangeira. E, pela especulação nunca confirmada 100% pela Capcom, este homem era um antropólogo\biólogo\fotógrafo\arqueólogo que trabalhava secretamente para Interpol em busca de civilizações perdidas e da localização da base secreta da Shadaloo na Amazônia brasileira. Nisso, viajava de avião sobre a floresta. Mas, ao serem avistados pelos bandidos, o avião foi abatido pelo canhão Psycho Driver. Somente o garotinho Jimmy (Jaime ou James), entre 9 e 10 anos, sobreviveu na mata. Anos depois, sofreu uma mutação do B-Virus (uma versão mais antiga e branda do T-Virus de ''Resident Evil -Biohazard''), que lhe transferiu o DNA de quase todas as criaturas da fauna local. Tornando-o uma quimera humana com poderes baseados em enguia elétrica; macacos; serpentes constritoras; tatu-bolas; camaleões; e onças.

  • Num hipotético (bom) filme baseado em Street Fighter, o ator que interpretasse Blanka bem que poderia se basear nesse artigo pra incorporar seu personagem! Seria um interessantissimo exercicio de atuação!

  • Olá! 😉 Antes de mais nada, quero parabenizá-lo por ter acertado um monte de coisas a respeito do Blanka. Como professor de conceito e criação de personagens, posso garantir que MUITA coisa dita por você confere. Principalmente a escolha de uma cor neutra ''não-humana'' para traduzir a miscigenação de nossa cultura. Porém, tem muitas especulações levantadas que não condizem com a verdade a respeito do personagem. E, como fã do mesmo, venho desde um certo tempo contribuir e derrubar essas dúvidas e informações equivocadas que surgem aqui e ali.

    Estou fazendo e lançando na net, videos no Youtube e matérias que explicam, detalhadamente, tanto a história cronológica do Blanka, como seu conceito de criação (desde a prancheta):



    http://www.apertastart.com.br/2015/09/23/blanka-d



    http://www.apertastart.com.br/2015/10/04/blanka-d

    Nestes videos e textos acima eu explico detalhadamente (principalmente nos textos) como certos raciocínios são equivocados por parte de muitos brasileiros:

    1-Blanka É brasileiro MESMO. Não é estrangeiro que caiu de avião no Brasil. Talvez seu pai seja descendente de estrangeiros.

    2-''Jimmy'' é apelido utilizado tanto para ''James'' quanto ''Jaime'', por pessoas que tem o inglês como língua nativa. E isso NÃO é tão estranho assim no nosso país. Essa ideia de que ''no Brasil, todos tem nome comum de brasileiros'' é completamente ingênuo. Primeiro porque NÃO existem nome brasileiros. Todos os nomes no nosso país são de origem estrangeira: advindos de nomes latinos (que por sua vez são nomes adaptados do hebraico ou grego); ou mesmo de nomes japoneses (temos enorme quantidade de nipônicos no Brasil); ou alemães; ou árabes e etc. Nem mesmo os nomes indígenas são necessariamente ''brasileiros'', pois eles já existiam ANTES do Brasil, enquanto nação, existir. Ou seja, essa mania de ''exigirmos'' que personagens brasileiros criados pelo exterior (ou aqui mesmo) tenham ''nomes típicos de brasileiros'' é um apelo sem sentido e que pouco contribui ao personagem ou a nós mesmos enquanto brasileiros. OUTROS elementos na criação dos personagens são bem mais relevantes.

    3-''Blanka'' é outro tema bem discutido nos videos e textos que eu apresento acima. Não ocorreu engano por parte dos japoneses da Capcom: a grafia é que se confundiu na hora de traduzir a forma como eles falam ''buranka'' (''branca ou branco'') com a típica ''troca de R pelo L'' quando o idioma é adaptado para as línguas ocidentais. E o motivo de ser chamado assim é bem mais complexo: o personagem seria ALBINO com cabelos laranja. Mas, acabou sofrendo mutação e ganhou uma pele que se camufla conforme o ambiente. Enquanto ele era albino, perdido na selva, os indígenas na fronteira, que falavam ''portunhol'', o batizaram de ''criatura ou espírito de pele branca''. Uma referência ao personagem arquetípico ''Tarzan, o Macaco Branco'', que também se perde na selva e consegue se tornar seu senhor ao longo do tempo de adaptação.

    4-Blanka foi PESADAMENTE influenciado por várias criaturas do nosso folclore e da cultura pop mundial: Caipora; Curupira; Mapinguari; Tarzan; Mowgli; O Monstro da Lagoa Negra\Amazônia (que foi baseado em nossas lendas do Boto; Ipubiara e do Caboclo D'água); Kamen Rider Amazon (único herói da franquia ''Kamen Rider'' que é brasileiro e que também foi influenciado pelo filme do ''Monstro da Lago Negra'' e ''Tarzan''); e o King Kong Eletrico\Kaijuu Kong do filme crossover ''King Kong vs Godzilla'' da Toho; além, claro, de ''Dragon Ball'' (onde o protagonista é um homem-macaco que também emite uma aura de batalha amarelada e cm faíscas elétricas).

    Isso tudo e muito mais eu desconstruo nas minhas matérias acima. 😉

Deixe uma resposta para Tarcisio Lima JrCancelar resposta