Como se chama o presidente?

Durante décadas este pequeno país viveu sob o comando cruel dos ditadores. “Cruel” não deve ser o adjetivo mais adequado para esse tempo: em verdade, foram décadas de uma ditadura silenciosa em que o povo tornava-se cada vez mais silencioso, mais quieto, como seu governo. Não houve, senão por uns poucos nos primeiros anos, quem se rebelasse, assim como não houve, por parte do governo, quem desejasse calar os rebeldes que quase não havia. Presidentes se sucediam no Palácio Presidencial, que não era exatamente um palácio, mas uma casa bonita e bem arejada, pintada de um amarelo imune ao tempo e com uma varanda onde uma rede descansava. Foram muitos os Chefes-de-Estado: alguns governaram por meses, outros semanas, alguns dias, houve ainda os que governassem por horas e os que só tocaram a faixa presidencial para poder passá-la ao seu sucessor.

Agora havia um presidente eleito. Escolhido pelo povo, embora não por muita gente: tanto que boa parte dos eleitores não sabia onde votar, muito menos em quem. Importava pouco, muito pouco.

Em sua primeira viagem diplomática, esteve fora por três ou quatro dias, em uma reunião com líderes de outros pequenos países, onde mal fora notado, senão por um ascensorista que lhe dirigiu a palavra para dizer “Seu sapato, senhor, está desamarrado”, ao que lhe agradeceu solene e discretamente pela gentileza do aviso.

Ao chegar ao aeroporto da capital, estranhou não haver quem o recebesse: sem comitivas, sem assessores, sem povo, sem jornais. Esperou em pé, diante de um pequeno saguão quase vazio, que alguém o conduzisse. Em vão. À rua, um táxi: estendia a mão à margem da avenida semimorta, mas os esparsos motoristas que por lá passavam não pararam. Por isso caminhou mais um tanto, até que um homem gentil parou a seu lado e abriu-lhe a porta. O presidente sentou-se e sorriu, ao que não foi correspondido. Em silêncio, esperou que o taxista dirigisse-lhe a palavra, como o fez ao cabo de uns poucos minutos: “Para onde, senhor?”. Sem sentir-se de todo ultrajado pela ignorância do motorista, respondeu evasivo: “Ao Palácio Presidencial”.

Em casa, ninguém o esperava. Viu, deitado em sua cama, outro homem, abraçado a sua esposa e a quem ela chamava de “meu amado”, e os porta-retratos pela casa tinham fotos dela e do outro, mas nenhuma do homem que saíra de casa há pouco mais ou pouco menos de três ou quatro dias. Viu também chegarem seus filhos, os meninos a quem criara com todas as dificuldades, mas com toda honra que podem receber as crianças: “papai” era o apelido que dirigiam ao homem em seu lugar, no lugar que antes era seu. Sabia que a essa altura, sua mãe já chamava de filho o homem em sua história e agradeceu a Deus por seu pai estar morto há anos, para quem sua lembrança deve mesmo ter sido a última, pois seria absurdo demais que o outro lhe roubasse as memórias vivas de um pai morto.

Andou pelas ruas da capital durante dias. Não havia aonde ir ou mesmo o que fazer. Como é possível haver outro em seu lugar, que não haja resquícios seus, de sua existência e máscara? Entre ele e seu substituto, quem seria mais ou menos real?

Em meio a homens que perambulavam pela praça principal, ouviu bradar da janela do congresso alguém ser anunciado como presidente da nação, prestes a discursar. Não era ele nem seu outro, mas um terceiro. E pôde ouvir de entredentes dois homens maltrapilhos – ninguém saberia dizer se mendigos ou ex-chefes-de-Estado – que conversavam sobre política: “Como se chama o presidente?”, ao que o outro sentenciou: “Já não nos importa”.

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