Diferenças relevantes

Muniz Sodré publicou um artigo interessante sobre o convite de Marília Pêra a Lázaro Ramos, ator “negro”, para interpretar um inglês “branco”. Ele chama este gesto de “pós-racial”, e exolica que se trata de uma quebra de expectativas, baseadas naquilo que consideramos verossimilmente normal. Segundo Sodré, a possibilidade de Barack Obama se tornar presidente dos EUA é outro exemplo, pois não condiz com a normalidade da história norte-americana, que só teve presidentes “brancos”. Mas a ficção se antecipa, de acordo com um exemplo exposto pelo próprio Sodré, o do seriado televisivo norte-americano 24 Horas, onde um ator “negro” interpreta o presidente da República.

Sodré usa o ensejo para comentar a atual discussão nacional sobre cotas raciais, posicionando-se a favor delas, não como uma solução para o racismo e para as desigualdades, mas como um meio de evidenciar novas possibilidades de convívio entre os seres humanos. Porém, considero que há também outros aspectos interessantes das questões raciais que podem ser discutidos.

O autor do artigo nota que o critério de seleção de Marília Pêra considerou a adequação técnica do ator ao personagem. Ele aponta para o fato de que o mesmo Lázaro Ramos foi escalado para interpretar um personagem em O Homem que Copiava, que no roteiro não era caracterizado quanto à aparência física. Da mesma forma, na adaptação do livro O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams, para a televisão, o personagem Ford Prefect foi interpretado por um ator “branco”, assim como foi desenhado como “branco” na adaptação para os quadrinhos, enquanto no cinema foi escalado um ator “negro” para o mesmo personagem.

Podemos nos lembrar de outros exemplos fictícios similares, como o filme também norte-americano Robocop 2, em que o prefeito de Detroit é interpretado por Willard E. Pugh. No seriado Babylon 5, cuja história se passa entre 2258 a 2262 e.c., há uma papisa. Um dos mais interessantes, a que infelizmente não assisti, é a peça Um Certo Hamlet, adaptação de Hamlet, de William Shakespeare, feita por Antônio Abujamra, na qual todos os personagens são interpretados por mulheres. No âmbito satírico, no desenho animado Futurama, o robô ator Calculon interpreta um personagem cujo pai é interpretado por um humano.

AulaRoland Barthes já dissera, em sua Aula, que a literatura (e conseqüentemente outras formas de arte) permite a subversão da linguagem, a criação de outra realidade. Nestes exemplos da dramaturgia, inclusive cinematográfica e televisiva, os ideais anti-racistas podem ser livremente expostos na forma de uma outra e nova realidade idealizada/imaginada.

Para o racismo que há no Brasil, “de marca”, esses gestos pós-raciais são importantes, pois lidam com todas as nossas noções pré-concebidas de estética, pelas quais consideramos mais parecidas entre si pessoas com a mesma cor da pele do que pessoas de cores diferentes (mesmo que sejam quase iguais em outros aspectos fisionômicos). Quando assisti a Matrix Revolutions com amigos, a cena em que aparece o Oráculo, interpretado por uma atriz “afro-americana” diferente da que o interpretou no primeiro Matrix, despertou a indagação do amigo que estava ao meu lado:

Ué, essa personagem não era negra?

MatrixPara ele, a primeira atriz era negra e a segunda não. Mas para os irmãos Wachowski, adeptos do racismo “de origem”, ambas as atrizes têm pelo menos “one drop” de sangue “negro”. Se Matrix tivesse sido feito no Brasil, não importaria a ascendência da atriz, mas importaria sua aparência física. Nós classificamos as pessoas, racialmente, segundo um imenso gradiente que considera não só tonalidades de cor de pele, mas também cores de cabelo e olhos, formas da fisionomia, textura de cabelo e até condições socioeconômicas.

Para os brasileiros, Machado de Assis sempre foi um dos maiores escritores da língua portuguesa, e era mulato. Mas para Harold Bloom, crítico literário norte-americano, Machado é um dos maiores escritores “negros” da língua portuguesa. Considero que é uma infelicidade que os militantes negros brasileiros tenham importado as soluções do movimento negro norte-americano, sem atentar para as diferenças do racismo de cada país. Hoje, para a causa negra, são louvadas figuras históricas há muito reconhecidas, mas só agora conhecidas como “heróis negros”. Entre eles, Machado de Assis.

As cotas seriam mais acertadas, nas políticas anti-racismo no Brasil, em situações em que a aparência da pessoa seja levada em conta, como na escolha de modelos de publicidade ou em empregos que tenham entrevista no processo de seleção. Mesmo assim, são paliativos e só serviriam para nos acostumar a ver a alteridade representada como normal nos meios de comunicação.

Os que se preparam para o vestibular podem vir a ser excluídos e sofrer uma grande frustração. Não se pode negar o fato de que, instituindo as cotas, institui-se um critério de seleção baseado na aparência física. O que significa que o vestibular passa a discriminar as pessoas segundo critérios raciais. Discriminar segundo critérios raciais é racismo.

Mas o vestibular não é um bom aferidor de vocação acadêmica, o que é outro problema pouco discutido pelos que são contra as cotas. Algumas pesquisas mostram que os estudantes universitários cotistas têm desempenho acadêmico similar aos não-cotistas. Entretanto e portanto, a qualidade dos alunos não é argumento a favor nem contra as cotas raciais. Além de políticas que nos façam aprender a aceitar pequenas diferenças como irrelevantes para o convívio entre os seres humanos, é preciso uma reformulação de todo os sistema educacional, desde o ensino primário e secundário até o processo de admissão ao ensino superior.

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