Errare humanum est

Hoje teve início o uso de um equipamento eletrônico para controlar a frequência dos funcionários da instituição em que trabalho. Antes de essa ferramenta ser instalada, costumávamos assinar uma folha, preenchendo o horário de chegada e saída e deixando nossa assinatura.

Com o novo instrumento, basta que o funcionário aplique o dedo sobre uma superfície lisa que reconhece a impressão digital do polegar ou do indicador esquerdos (previamente cadastrados), no momento da chegada e na saída do trabalho, contabilizando automaticamente as horas passadas no serviço.

Quando apliquei o indicador, a máquina mostrou a mensagem “Não confere”. Ao aplicar minha outra opção, o polegar, a mesma mensagem apareceu. Outros colegas tiveram o mesmo problema, embora muitos tivessem tido suas impressões reconhecidas. Ou seja, o aparelho não funcionou.

Quando recebi a notícia de que esse equipameto começaria a funcionar na segunda-feira, dia 11 de maio, já sabia que, sendo uma máquina nova e estando seu funcionamento ainda não dominado pela admnistração do INCRA e tampouco pelos funcionários, certamente haveria algum problema no primeiro dia. A confusão em si já tinha começado havia meses, desde a notícia de que o ponto eletrônico seria implantado na superintendência.

Não sou contra a utilização de um controle eficiente do tempo prestado pelo servidor que está sendo pago para fazer seu serviço e cumprir 40 horas de trabalho semanal. É muito comum os funcionários de órgãos como este se viciarem, aproveitando o fato de terem estabilidade garantida pelo Estado, e se acostumarem a faltar constantemente ou a trabalhar apenas em um turno.

Os mais prejudicados com esse desleixo é o público, que neste caso são principalmente os trabalhadores rurais sem terra, trabalhadores rurais assentados pelo INCRA e quilombolas que demandam a regularização de suas terras. Se os funcionários não cumprem seus horários estabelecidos, como é que uma pessoa que necessita da assistência do Estado garantirá ser atendida?

Porém, esse tipo de controle só tem sentido quando não serve para simplesmente punir aqueles que desrespeitam as normas do órgão em que trabalham, dificultando assim a vida dos que cumprem seu serviço. Quando, por exemplo, o sistema de ponto eletrônico permite que o funcionário acumule horas para se ausentar do serviço numa necessidade médica ou para resolver problemas pessoais que não tem como resolver no fim de semana, ou quando possibilita que o mesmo funcionário atenda suas horas diárias com flexibilidade, chegando mais cedo para sair mais cedo, por exemplo, é uma boa.

Mas quando as regras do ponto eletrônico obrigam os servidores a chegar num determinado horário (neste caso, o intervalo possível de entrada no prédio é entre 7:30 e 8:30 pela manhã e 13:30 e 14:30 pela tarde; a saída pode ser efetuada entre 11:30 e 12:30 no primeiro turno e entre 17:30 e 18:30 no segundo) e dá poucas opções de abono e compensação de horas dispensadas no trabalho, estamos diante de uma situação de subjugação e autoritarismo.

Também é negativo confiar tão cegamente num mecanismo que, embora não seja humano, pode vir a ter falhas. Se esses erros persistirem, como ficará o controle de frequência dos funcionários? Teremos que continuar assinando uma folha de ponto até que a máquina seja reparada?

É comum na ficção científica pensar nas máquinas com inteligência artificial altamente desenvolvida como seres que atingem a perfeição mental e conseguem promover qualquer atividade sem falhas. Isso chega ao ponto de se conceber histórias nas quais as máquinas se dão conta de que os humanos são ineficientes e devem ser expurgados como se fossem uma doença.

A sonda Nomad e capitão KirkNo episódio The Changeling, da série clássica de Jornada nas Estrelas, uma sonda espacial chamada Nomad carrega como objetivo destruir toda imperfeição. Como ela considera somente as máquinas como seres de funcionamento perfeito, vaga pelo universo aniquilando toda forma de vida orgânica. É o mesmíssimo tema de Jornada nas Estrelas: O Filme, no qual a sonda Voyager 6, autorrebatizada de V’Ger, foi transformada pelos habitantes de um planeta habitado por robôs e viaja pelo universo destruindo os seres vivos. Ela considera que a nave estelar Enterprise está infestada por “unidades de carbono” (ou seja, seres vivos).

No filme Eu, Robô, o computador V.I.K.I. mata humanos que ela considera prejudiciais à humanidade, ao mesmo tempo, paradoxalmente, violando e obedecendo às Três Leis da Robótica.

Essas máquinas inteligentes se imaginam mais perfeitas do que os humanos e, num tipo de representação ideal do universo como um mecanismo perfeitamente ordenado, rejeitam qualquer tipo de ser que seja instável (que tenha emoções)  e sujeito ao erro. Mas os autores dessas histórias talvez esqueçam que as máquinas cometem erros. Quem usa Windows sabe disso.

"Um erro ocorreu a criar um aviso de erro"

Não é impossível, por exemplo, que, por um erro interno ao funcionamento de um website, este incorra numa violação do tipo 404. Até uma calculadora pode errar. Por que um robô altamente avançado não erraria? Podemos imaginar, é claro, que um conjunto de processadores ultrarrefinados no cérebro de uma máquina faça milhões de operações e inclua entre estas reparos instantâneos dos erros mais comuns. Da mesma forma que a mente humana é capaz de se corrigir quando pronunciamos uma palavra errado ou quando confundimos uma coisa com outra.

Mas, como sabemos, o paraquedas reserva não tem um sobressalente. Qualquer máquina, por mais avançada que seja, é passível de defeitos. E dificilmente aprenderá com os próprios erros, coisa que o ser humano (às vezes) faz bem.

Outra controvérsia nesse comportamento robótico é que as máquinas são feitas originalmente para servir aos seres humanos, seus criadores. Seu objetivo inicial contradiz completamente essa tendência a “destruir a imperfeição”. Para quem será o mundo livre de seres vivos? A resposta óbvia é: “para as máquinas”.

Portanto, instalar uma máquina eletrônica de controle de ponto que obrigue os funcionários a cumprir uma função mecanicamente tem como consequência fazer o servidor viver para o trabalho. Aqueles que moram longe do trabalho e/ou que tenham que pegar ônibus para se deslocar (como é meu caso) terão pouco tempo livre para viver e até para usar o dinheiro que ganham como retorno ao trabalho prestado.

Não é à toa que muitos pensam que estamos rodeados de prenúncios da Matrix?

8 comments

  • Por sorte, acho que não chegaremos a um estado "Matrix".
    Vamos acabar num "Mad Max", mais provavelmente. Ou melhor, (do jogo q estou atualmente 'desfrutando') num "Fallout"(3).

    Concordo contigo, se o relógio eletrônico de ponto desse os benefícios que vc sugeriu, seria ótimo.
    O problema é aquela pecinha, aquela que programou o relógio eletrônico, a praga do 'homem'.
    A tecnologia pode ser de outra dimensão, se for operada por um ser humano, será SEMPRE desastrosa.
    =|

  • Sou suspeito pra falar disso….. heheheh
    O que a gente vê é realmente que as coisas estão ficando cada vez mais automatizadas e que nem sempre isso causa um benefício pra nós, falo de um benefício para o ser humano, não para um ser capitalista que quer explorar de forma 'mais eficiente'(que no fim das contas só mina a produção e evolução).
    A tecnologia que devia vir pra nos servir acaba nos tornando escravos de comodidades inúteis que nos acustumamos a considerar de extrema importância.
    Acredito também que não chegaremos a um estado de Matrix, não sei se pode ser possivel uma evolução desse tamanho na área de Inteligência Artificial e mesmo se uma evolução gigantesca poderá reproduzir uma inteligência humana, quem sabe com a computação quantica esse meu pensamento não mude….

    Grande abraço Thiago!

  • @Samuel
    Samuel, acho que você concorda comigo quando digo que espero que a tecnologia avance e que seja útil a todos. Se uma coisa pode ser boa para o ser humano, se pode auxiliá-lo em sua evolução e no desenvolvimento de suas capacidades, que seja acessível.

    Abraço!

  • Thiago,

    Trabalhei a maior parte da minha vida em empresas onde o funcionário precisava "bater" o cartão de ponto quatro vezes ao dia. Na entrada, na saída para o almoço, no retorno do almoço e no fim do expediente. Em alguns momentos a empresa tentava fazer com que entrássemos antes do horário, mas registrássemos a entrada no horário correto, e que batêssemos o ponto na saída, mas continuássemos trabalhando. O pagamento destas horas viria por fora, sem encargos para a empresa.

    Por outro lado, nós também ludibriávamos esse sistema, registrando a entrada no horário correto, mas demorando mais tempo no vestiário ou no café do que precisaríamos. O mesmo valia para o almoço, que durava sempre um pouquinho mais quando não havia ninguém vigiando. O ponto era batido na hora certa, mas só comessávamos a trabalhar depois.

    Na última empresa privada onde trabalhei o cartão de ponto fora substituído por uma cartão magnético. Era o chamado ponto eletrônico. Em vez de "batermos o cartão", passávamos o cartão magnético na máquina. O problema era que, ao contrario do relógio de ponto antigo, em que a hora ficava registrada no cartão, no ponto eletrônico não havia como conferir se o horário registrado pela máquina estava correto. Depois de alguns tempo descobri que o gerente adulterava o horário registrado no ponto eletrônico com uma senha que só ele possuia. Não demorou muito desenvolvemos algumas tecnicas para burlar a máquina, como sair mais cedo deixando o cartão com um colega que passaria na no ponto no horário correto de saída. Outro truque era ir almoçar sem bater o cartão, fazendo isso depois de já ter voltado. Com isso, apesar de termos ficado fora da empresa por uma hora e meia, registrávamos o horário correto, que era o intervalo de uma hora. Um sistema como o que você citou, que funciona com a leitura da digital, impõe alguma restrição a possibilidade de burlar a maquina, mas certamente alguém encontrará alguma forma criativa de fazê-lo.

    Só recentemente trabalho no serviço público, e o "ponto" é assinada um caderno, como era no seu trabalho até a pouco. Confesso que ainda me sinto estranho só com esse controle. Tão fácil de burlar que não tem nem graça.

  • Pois é… a sociedade evolui para um lado, a atividade laboral também evolui, a tecnologia evolui… só que é um pusta dum contrassenso, em que cada vez mais o trabalho está evoluindo para serviços prestáveis via telepresença ou online via internet, e os contratos de trabalho evoluindo para formas que envolvem flexibilização cada vez maior da jornada de trabalho, MESMO PARA QUEM É CLT, ainda assim tem empresas desenvolvendo métodos e formas de controlar, cada vez mais sofisticadas tecnologicamente, os regimes de trabalho, DE UMA FORMA QUE SÓ FAZ SENTIDO NOS MOLDES TRADICIONAIS que estão virando coisa do passado, são obviamente improdutivos, haja vista a capacidade e a criatividade e a energia envolvida dos funcionários supostamente "controlados" em BURLAR a atividade-fim da engenhoca, e com o colapso vindouro dos transportes automotivos, a prática de tais sistemas de obrigatoriedade presencial com hora marcada vão sair da esfera de meros assuntos internos da política de recursos humanos para longas e custosas discussões em tribunais da justiça do trabalho… êta futuro trêm bão!!!!

  • @Fernando, você fez ótimas observações. Aspectos técnicos avançam numa velocidade maior do que os aspectos sócio-culturais, uma defasagem que provoca esse tipo de problema. É como o desenvolvimento do uso da energia nuclear, que tinha grande potencial para se tornar uma excelente fonte de recursos, mas foi usado para criar armas.

    Entretanto, uma coisa que se aprende em Antropologia é que, não importa o contexto cultural, os seres humanos sempre encontram formas de resistir à coerção da sociedade em que vivem.

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