Ética e Estado

Adolfo Sánchez Vázquez define a ética como “a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade“, reduzindo-a a uma forma específica do comportamento humano. Há, porém, alguns problemas nessa concepção.

Primeiro, nem toda Ética é uma teoria (há Éticas propositivas). Segundo, nem toda Ética refere-se ao comportamento do Homo sapiens (César, de O Planeta dos Macacos, era bastante ético). Terceiro, nem toda Ética reduz-se ao viver social do homem (também se aplica individualmente). Por quê? Primeiro, porque existem éticas descritivas e propositivas. As descritivas encarregam-se em estudar os princípios comportamentais, ou seja, os fundamentos lógicos, epistemológicos, semânticos, metafísicos e práticos do comportamento. As propositivas buscam uma aplicação ipsis litteris do que se compreendeu de toda essa análise multifacetada do comportamento. Segundo, prefiro encarar a Ética como algo universal, uma vez que os princípios encontrados no comportamento humano são mais válidos na medida em que promovam o benefício à maior quantidade de pessoas possível.

Enquanto disciplina, a Ética é uma das áreas da filosofia que estuda os princípios comportamentais de seres dotados de sesciência (ou, como preferem os filósofos antropocêntricos, seres dotados de humanidade). Diferente da moral (conjunto de ideias pré-concebidas de certo e errado), da lei (conjunto de normas de comportamento social), dos preceitos (conjuntos de conselhos de como se comportar em determinadas situações, como a etiqueta e o politicamente correto) e do método (conjunto de ações necessárias para partir de um ponto a outro), a Ética não é presa nem fundamentada em comportamentos locais, grupais, políticos, ideológicos ou normativos. Assim, a existem moralidades éticas e antiéticas, e imoralidades éticas e antiéticas. Existem leis éticas e antiéticas, assim como crimes éticos e antiéticos. Alguns preceitos são éticos, outros são antiéticos, e suas quebras passam pela mesma categorização. Alguns métodos são igualmente classificados. E isso porque a Ética, quando universal, é um tipo de visão do comportamento que prevê duas coisas básicas: a Autonomia e a Felicidade Objetiva.

Posso estar parecendo ingenuamente estoico-humiano, mas a Autonomia e a Felicidade Objetiva são sim as principais fontes de energia da Ética. A autonomia de todos os seres sescientes sem prejuízo ao bem de nenhum outro ser senciente garante que todos os princípios éticos sejam filtrados. Significa que posso afirmar se a moral de um grupo (como os discursos de Silas Malafaia) ferem ou não princípios éticos, pois seus discursos ferem diretamente o binômio Autonomia e Felicidade Objetiva. Um pedófilo que se limite a tirar fotos de crianças nos parques para uso próprio também não fere nenhum princípio ético, pois a Autonomia e a Felicidade Objetiva de nenhuma criança foi afetada.

Por Felicidade Objetiva compreende-se qualquer coisa que se relacione diretamente e de forma positiva à integridade existencial, material, intelectual, física e linguística de uma pessoa. Logo, Silas Malafaia, em suas ações, e promovendo passeatas contra a votação de leis, incide diretamente sobre a integridade material de terceiros (um direito legal é um bem material, além, é claro, de ser um direito à autonomia).

Justamente esse tipo de visão da Ética é que pode esclarecer as diferenças entre um Estado Moral, um Estado Constitucional, um Estado Preceptor (Politicamente Correto), um Estado Metodológico e um Estado Ético. A distinção está em como ele promove a Autonomia de todos os seus cidadãos sem, com isso, prejudicar a Felicidade Objetiva de nenhum outro cidadão. E isso nos leva a perguntas como:

É ético promover a propriedade privada enquanto milhões de cidadãos são privados de um teto onde abrigar-se da chuva? É ético permitir a livre cultura dos índios enquanto milhares de crianças são enterradas vivas? É ético privar bilhões de seres humanos de acesso livre ao conhecimento por causa de leis contra a pirataria? Essas questões, então, resolvem-se no âmbito da Ética de forma mais precisa que no âmbito da moral, das leis, dos preceitos e dos métodos.

A moral de uma tribo indígena pode achar que o nascimento de uma criança deformada trará um mal à sua tribo, e se isso for algo com o qual nem o cacique nem a tribo possam conviver, então o cacique procure a FUNAI e entregue a criança para ser adotada. Entregar à adoção não afeta a Felicidade Subjetiva da tribo e não afeta a Felicidade Objetiva da criança. A partir do momento em que, para manter sua Felicidade Subjetiva e sua integridade, o chefe de uma tribo causa um prejuízo à Felicidade Objetiva de uma criança, então ele está sendo antiético. E isso por uma razão bem simples: NÃO EXISTE ÉTICA DE ÍNDIO E ÉTICA DE BRANCO, o que existe é tão somente Ética.

Autonomia e o Felicidade Objetiva

Critérios palpáveis

Existem dois tipos de Felicidade: a Objetiva e a Subjetiva. A Felicidade Objetiva centra-se em elementos palpáveis, e, portanto, objetivos e verificáveis. A Felicidade Subjetiva abrange elementos impalpáveis e, portanto, subjetivos e inverificáveis. A grande diferença entre ambos está justamente no fato de a primeira poder ser observada por terceiros, e a segunda não poder ser observada. Por isso, se um Estado é ético, ele deve centrar-se apenas naquilo que é palpável, ou seja, na Felicidade Objetiva. A Felicidade Subjetiva não é assunto de Estado, até porque é impossível de ser mensurada.

Os elementos palpáveis são a Existência, a Materialidade, a Intelectualidade, o Físico e a Linguagem.

A Existência pode ser mensurada pelo Estado por meio de uma lógica booleana simples: vivo ou morto. Então é assunto de Estado zelar pela existência de todos os seres sescientes sob sua jurisdição, sejam esses seres um feto ou um idoso, um macaco falante ou um indígena. Garantir a segurança pública, o porte de armas (para lutar por sua própria vida), promover políticas éticas sobre o aborto e a pena de morte e promover educação para o trânsito são exemplos de ações de um Estado Ético e voltado para a Felicidade Existencial. O indivíduo pode querer se matar, e isso deve ser respeitado, pois a vida é um direito garantido pelo Estado, e não uma obrigação legal.

A Materialidade é mensurada pela participação dos seres sob sua jurisdição nos processos econômicos, e pelas mesmas oportunidades de todos os indivíduos dessa sociedade na produção de bens materiais. Isso é o que garante a Felicidade Material, que pode ser conseguida com ações simples, como o abandono de políticas econômicas daninhas, geração de emprego e renda, capacitação profissional em massa, reforma agrária, reforma econômica e menor necessidade de força bancária no país. Um indivíduo pode optar por não querer participar da economia e se isolar do mundo no alto de uma montanha, e é dever do Estado respeitar isso, pois a participação na economia é um direito, e não uma obrigação legal.

A Intelectualidade pode ser mensurada, pois basta que os aprendentes sejam avaliados de forma séria, e que o mesmo ensino tenha um caráter sério deliberadamente capaz de melhorar a si próprio. O Estado pode promover a Felicidade Intelectual por meio de ações simples, como a criação de leis ou sistemas educacionais variados (a distância, homeschooling, presencial, autoinstrucional etc.), de avaliações mais completas (e não apenas as avaliações escritas) e pela priorização dos conteúdos passados. Um indivíduo pode optar por não querer aprimorar sua intelectualidade e arcar com as consequências disso, e é dever do Estado respeitar isso, pois a intelectualidade é um direito, e não uma obrigação legal.

O Físico pode ser mensurado: integridade física, saúde e habilidades motoras. Um Estado Ético promove ações que reduzam problemas de saúde causados pelo sedentarismo, melhora o atendimento nos sistemas de saúde (variando também os tipos de sistemas de saúde) e cria programas escolares para aumentar as habilidades motoras dos cidadãos. Claro que aqui podemos no perguntar: o que é prioritário ao Estado? garantir o gol perfeito do atleta olímpico ou construir um posto de saúde que funcione? Um indivíduo pode optar por seguir uma vida sedentária e arcar com as consequências disso, e é dever do Estado respeitar isso, pois o aprimoramento físico e a saúde são direitos, e não obrigações legais.

A Linguagem pode ser mensurada: existe toda uma ciência dedicada a estudá-la de forma objetiva, que é a Linguística. O Estado pode obrigar o povo a usar em situações oficiais ou estatais uma língua padrão por razões práticas e econômicas, e promover livre acesso a essa linguagem sem, com isso, prejudicar ou procurar eliminar o falar ou a língua natural de cada falante, ou sua capacidade e liberdade de expressão. Assim, qualquer etnia que fale sua própria língua, além de acesso à língua padrão do Estado, tem a linguagem de sua etnia preservada e devidamente protegida, além de poder exprimir o que bem desejar. Um indivíduo pode optar por abandonar sua língua mãe, ou por não usar a língua padrão, ou mesmo por não expressar algumas coisas, e é dever do Estado respeitar isso, pois a linguagem é um direito, e não uma obrigação legal.

Critérios Impalpáveis

Há, porém, uma miríade de elementos impalpáveis que, com frequência, são levados em conta na criação das leis, e que acabam por gerar polêmicas, dissensões, crises políticas e guerras de opinião. Aquilo que não se pode mensurar ou categorizar de forma objetiva justamente por não pertencer ao mundo objetivo são coisas que dizem respeito somente ao sujeito. Estão nesse universo a Moralidade, a Personalidade, a Espiritualidade, a Estética e a Opinião.

A Moralidade não pode ser considerada assunto de Estado, pois é uma concepção de comportamento não universal, presa somente ao mundo de alguns grupos em detrimento de outros. Assim, a constituição da família, o sexo, a alimentação, a religião e as concepções metafísicas de mundo não dizem respeito ao Estado, pois não são critérios construídos sem a presença de um elemento moral (cristão, ateísta, budista, LGBTTT, marxista, capitalista etc.). É dever do Estado, porém, garantir aos indivíduos a liberdade de optar por qualquer comportamento que sua moral permita, desde que não fira a Felicidade Existencial, Física, Material, Intelectual e Linguística do outro. Se esse indivíduo optar por um estilo de vida ou um modelo familiar que vá de encontro aos ensinamentos de um determinado grupo, mas que não fira sua Autonomia ou sua Felicidade Objetiva, então sua opção é perfeitamente válida e deve ser permitida pelo Estado.

A Personalidade não pode ser considerada um assunto de Estado, pois é também uma concepção de comportamento não universal, presa somente ao mundo pessoal em detrimento de terceiros. Assim, se um indivíduo é hiperativo ou calmo, sedentário ou atlético, falante ou calado, emotivo ou racional, não dizem respeito ao Estado, pois são critérios puramente pessoais e, portanto, inalienáveis ao próprio sujeito. É dever do Estado, porém, garantir aos sujeitos a liberdade de agir de acordo com sua natureza, desde que não fira a Autonomia nem a Felicidade Existencial, Física, Material, Intelectual e Linguística do outro. O Estado não pode proibir que uma pessoa mude seu modo de ser, se assim o desejar, seja buscando uma tradição espiritual, seja buscando psicoterapia, seja procurando “curar” a homossexualidade. Ele pode optar por permanecer com seu modo de ser ou por mudá-lo se assim o desejar, desde que não fira a Autonomia nem a Felicidade Objetiva de terceiros.

A Espiritualidade não pode ser considerada assunto de Estado, pois é um parâmetro de comportamento puramente pessoal, sem possibilidade de ser contemplada por terceiros. Assim, se alguém é Budista ou Muçulmano, Ateu ou Católico, Umbandista ou Cientologista, não compete ao Estado mensurar e muito menos proibir ou incentivar. É dever do Estado, porém, garantir aos indivíduos a liberdade de optar por qualquer sistema religioso, filosófico ou ideológico, desde que não fira a Autonomia e a Felicidade Existencial, Física, Material, Intelectual e Linguística do outro. Se esse indivíduo optar por uma ideologia ou uma religião que vá de encontro aos ensinamentos de uma religião ou ideologia “da maioria”, mas que não fira a Autonomia nem a Felicidade Objetiva da mesma maioria, então sua opção é perfeitamente válida e deve ser permitida pelo Estado.

A Estética não pode ser considerada assunto de Estado, pois é um parâmetro de comportamento puramente contextual e fora das concepções éticas. Assim, se alguém opta por um estilo de escrita conhecido como Dangerous Writing, pelo Stand-Up polêmico de Rafinha Bastos ou se gosta de tatuar pênis pelo corpo todo, não compete ao Estado incentivar nem proibir, mas apenas respeitar. Se a população prefere funk carioca em vez de samba, ou cabelo moicano em vez de cabeças raspadas, o Estado não pode nem deve interferir. É dever do Estado, porém, garantir aos indivíduos a liberdade de optar ou preservar seus próprios gostos estéticos, desde que não fira a Autonomia nem a Felicidade Existencial, Física, Material, Intelectual e Linguística do outro. Se esse indivíduo optar por um sistema estético que vá de encontro a uma determinada tradição estética, mas que não fira a Autonomia nem a Felicidade Objetiva de terceiros, então sua opção é perfeitamente válida e deve ser permitida pelo Estado.

A Opinião pode ser ouvida e compreendida, mas também não pode ser mensurada, e por uma razão bem simples: a opinião é contextual, depende de um contexto coletivo e individual, ao mesmo tempo. Não compete ao Estado vigiar o que um jornalista ou um blogueiro pensa a respeito das cotas raciais, nem pertence ao Estado o dever ou o direito de controlar o modo como as opiniões são passadas, e muito menos ficar medindo quem se sentiu ofendido ou quem ofendeu pelo simples manifestar de suas opiniões. É dever do Estado, porém, garantir aos indivíduos a liberdade de opinar sobre qualquer coisa que decidam opinar, desde que não firam a Autonomia e a Felicidade Existencial, Física, Material, Intelectual e Linguística do outro. Se esse indivíduo opinar, elogiar ou criticar algo que a maioria da população ache repulsiva, imoral ou ofensiva, mas que não fira a Autonomia nem a Felicidade Objetiva de nenhum membro da sociedade, então sua opinião é perfeitamente válida e deve ser permitida pelo Estado.

E onde o Estado deixa de ser Ético?

Primeiro, todo Estado torna-se antiético quando, por qualquer motivo fraco que seja, priva seus cidadãos de direito à vida ou autonomia sobre ela, nega a participação de seus cidadãos na economia, os exclui de oportunidades de intelectualização, deixa de fornecer saúde de qualidade e proíbe à população determinados usos linguísticos, e se torna ainda mais antiético quando torna determinadas relações existenciais, econômicas, intelectuais, corporais e linguísticas obrigatórias.

Segundo, o Estado torna-se antiético quando transforma a Moralidade, a Personalidade, a Espiritualidade, a Estética e a Opinião em assuntos de Estado, passíveis de punição ou premiação, de limitações ou liberações, com políticas públicas próprias e fechadas (como financiar artistas em vez de hospitais, por exemplo). Quando, por exemplo, casais homossexuais tornaram-se livres para formar família e formalizar suas uniões, o Estado abriu mão daquilo que não era assunto seu, e partiu para coisas mais prioritárias (ou pelo menos creio assim), pois toda forma de comportamento humano que se torne obrigatório para o outro, ou seja, que incida diretamente sobre o outro em aspectos subjetivos, mesmo com a melhor das intenções (como a pregação religiosa agressiva ou impedir que algumas palavras sejam usadas por uma visão politicamente correta), é, desde já, um tipo de comportamento antiético.

Conclusão

Se pensarmos em um Estado Ético, perceberemos que a Ética pode, e deve, ser universal. Toda e qualquer ação que não interfira na Autonomia ou na Felicidade Objetiva de terceiros é uma ação ética ou neutra, e toda ação que cause prejuízo direto sobre a Autonomia e a Felicidade Objetiva de terceiros é, desde já, antiética. Por isso, não existe Ética de grupo A e Ética de grupo B, existe tão somente a Ética, que pode ou não ir de encontro à moral desses grupos.

[http://www.cartapotiguar.com.br/2012/07/19/etica-e-estado/]

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