Frames

O tempo é a quarta dimensão. A passagem do tempo é uma ilusão. Temos essa ilusão de um mundo em mutação, tridimensional, embora nada mude na união quadridimensional do espaço e do tempo da teoria da relatividade de Einstein. Se a vida fosse um filme, a realidade física seria o DVD inteiro: quadros passados e futuros existem tanto quanto o presente.

[Max Tegmark, cosmólogo sueco]

último fio

Ele sabe que tudo está desabando; O que havia ali secou, apodreceu. O não dizer, o não falar, o silêncio: entidade invisível que segura o último fio da corda que ainda sustenta sua relação. Ar, oxigênio, toneladas – Borges tenta beijá-la como nos primeiros dias, a paixão impulsionada com o combustível do desconhecido, pelo potencial e pela inocência. Ela hesita por um segundo, e é nesse segundo no meio desse quase-beijo que ele a olha nos olhos, a corda partindo-se, sem som, sem voz ou palavra, o inevitável.

antes que

Após a décima-sexta volta naquele mini-circuito ao redor do condomínio em que morava, o recém-aposentado Borges começa a sentir o cansaço dos seus ossos já não tão sólidos, o coração batendo tão mais rápido quanto nunca, o pulmão a pedir mais ar. Vem-lhe tanta coisa à mente enquanto corre: Coisas repetidas e coisas sem solução e coisas de muita, muita saudade. Uma criança, uma menina, apenas para seus olhos. Aonde seria a curva do circuito, uma reta se transforma: Borges corre por cima dos canteiros, dos muros, da matéria, tocando em tudo enquanto pode, esbarrando nas pessoas como quem o faz: adeus.

no quarto,

O ranger antigo da porta do guarda-roupas: “aquela calça tem que estar aqui”. Um vestido antigo ainda no cabide. Pausa. Não lembra como ou porque. Tira-o do armário e o expõe por completo, cheira. Olho fechando para ver melhor: uma sorveteria, pessoas, andar despreocupado, sobe a câmera: Eles se riem e não se sabe do quê ou de quem; Um buraquinho de memória, realidade tomando cor e forma, uma peça de lego, a câmera aproximando-se de uma mancha bege: Sorvete, ela quis provar do seu sorvete, pingo no vestido, eles se riem e riem e riem, ao passo de três voltas da roda gigante, de quinze tiros do tiro-ao-alvo, de um longo sopro de vento: Avalanche de felicidade de um tempo eterno. Mancha, cheiro, vestido, zoom out, quarto, a máquina do tempo se desfazendo, voltando ao quarto, ao vestido, rosto dentro: o cheiro dela molhando.

durante

Borges puxou a fumaça para dentro. Soprou. Procurara um dos poucos lugares aonde não brotavam lembranças cruzando, vivas, sorridentes pelas ruas, parques e praias. Uma alegria-triste, ele pensa, ter lembranças. Um sorriso de canto de boca e um olhar de ternura: “É disso que a saudade é feita: de tempo e resignação: uma saudade de uma vida é a dor que lhe faz sorrir, já o paradoxo – alegria/tristeza – sendo esse um dos sintomas de seres conscientes, seres pó de estrelas, história do universo”.

Apagou o cigarro. Ergueu-se.

Ergueu-se.

pós

O sol se pôs. Pernas doem. Uma vida inteira passou-se naquele pôr-do-sol, o entardecer e o mar obrigando os humanos a adentrar-se. Ele abre o paletó, retira-o do corpo cansado e cheirando ao ar-condicionado. Camisa apenas e descalço, seu corpo esbelto e ombros largos: Borges prefere a aspereza do chão embaixo do seus pés, a cabeça meio baixa, a sombra já em todas as direções, o som da rua, dos carros, do clop clop das mulheres e um sorriso daquela moça de azul – um flerte sorrateiro e venenoso: Borges, barba por fazer, retornou um sorriso tímido, achou-se bonito e pensou nas possibilidades, porém há coisa mais urgente: Foi um dia longo e uma balança enorme fez-se em sua lógica, uma indecisão de dias sem fim. O problema de sua vida.

Resolve.

Endereço, ônibus, bairro, casas.

Sente o peito queimando outra vez. Uma corda se partiu há anos e seria a única a ser remendada. Ar: entrando e saindo pesado. Ele para.

Pausa.

Bate na porta. Outra vez.

Pausa.

Campainha. Balança-se. Decide sair. Porta abrindo às suas costas. Vira-se. Linda. Jovem. Linda. Olho teimando em brilhos. Expiração forte, sorriso trêmulo e uma pergunta:

“Vinte e seis?”

Sua filha o observa, ódio dos olhos se esvaindo como num ralo, focados nos dele, marejados, fixos, longos. Borges recebe sua mão. Entram. Luz embaixo da porta. Somem, infinitos.

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