Homossexualidade em Star Trek

O atual cenário político brasileiro tem demonstrado quão difícil ainda é superar a homofobia e as restrições aos direitos dos homossexuais, fato analisado, por exemplo, por Alípio de Sousa Filho em 2 artigos recentes (aqui e aqui). Grandes avanços já foram feitos, em grande parte do Ocidente, no alcance de direitos das mulheres e na superação do racismo e do segregacionismo étnico.

Mas parece que, quando se trata da busca por direitos iguais por parte de pessoas que não se enquadram na sexualidade convencionada, ainda há muita resistência. As graduais e lentas mudanças no status quo da sexualidade podem ser vistas em alguns episódios de Jornada nas Estrelas, na série clássica, em A Nova Geração e em Deep Space Nine, e percebemos que, numa série de televisão que foi tão revolucionária em sua concepção, é extremamente difícil abordar esse tema.

Jornada nas Estrelas (Star Trek) representa em sua concepção inicial um grande avanço na mídia televisiva norte-americana. A tripulação da Enterprise era composta por pessoas de diversas partes da Terra, até mesmo um russo, em plena Guerra Fria no mundo real, e um oriental, em plena Guerra do Vietnã. Gene Roddenberry, idealizador da série, imaginou um futuro utópico em que a humanidade superaria suas diferenças e se integraria numa só sociedade. Ela conviveria até mesmo com espécies alienígenas, como os vulcanos, cujo maior exemplo é o Sr. Spock, segundo em comando da nave estelar Enterprise.

A tripulação que se consolidou na série original de Star Trek era composta de várias nacionalidades: além dos norte-americanos, havia um escocês, um russo, uma africana, um extremo-oriental e um extraterrestre

Um dos pontos interessantes e que mais chamaram atenção na série original foi a veiculação do primeiro beijo “inter-racial” da história da televisão norte-americana, entre o branco capitão Kirk e a negra tenente Uhura, no episódio Os Herdeiros de Platão (Plato’s Stepchildren, 10º episódio da 3ª temporada da Série Original). A cena foi controversa, tanto que o diretor, David Alexander, se recusou a fazê-la. Nichelle Nichols, que interpretava Uhura, conta num documentário que os atores tiveram que ludibriar Alexander para ter a cena realizada. Isso num país e numa época em que a segregação racial era uma instituição forte. Enfim, a cena, reproduzida abaixo, representou um avanço, embora os personagens a se beijar o tenham feito por coação.

A questão racial parece ter ficado resolvida em toda a continuidade de Jornada nas Estrelas, especialmente na série A Nova Geração. Porém, quase nada se aborda quanto à homossexualidade, mesmo que o andar da história moderna aponte para um futuro em que a opção ou orientação sexual será irrelevante na valorização dos indivíduos e, portanto, ninguém precisará esconder com quem está se relacionando afetiva e sexualmente.

Mas nem na série original nem em A Nova Geração vemos sequer um casal homossexual. A primeira vez em que isso poderia ter ocorrido é no episódio O Hospedeiro (The Host, 23º da 4ª temporada de A Nova Geração), quando a Dra. Beverly Crusher se apaixona pelo trill Odan, cujo corpo humanoide é hospedeiro de um simbionte em seu ventre, verdadeira fonte de sua personalidade e consciência. Ao ser forçado a mudar de corpo, assumindo a fisionomia do comandante Riker, Crusher tem dificuldade de manter o relacionamento, pois Riker é seu amigo, mas ela acaba por ceder a seus sentimentos. No entanto, quando um novo hospedeiro trill é trazido, Crusher se surpreende com o fato de esse ser uma mulher, e não consegue conceber a continuidade do relacionamento.

O vídeo abaixo é o trecho final do episódio, em que Odan, na forma de sua nova hospedeira, pergunta a Crusher se esta quer continuar o caso, ao que ela responde negativamente.

Embora a Dra. Crusher alegue, no final do episódio, que não quer continuar com o relacionamento porque não suportaria viver com alguém que muda de aparência imprevisivelmente, é muito claro que ela demonstrou decepção ao constatar que a próxima hospedeira de Odan seria uma mulher, surpresa que se espera por parte dos próprios telespectadores. Ela não poderia viver o sincero amor que sentia com alguém do mesmo sexo que ela.

A controvérsia entre os fãs da série foi tamanha que muitos deles, homossexuais ou simpatizantes, enviaram cartas perguntando quando Jornada nas Estrelas, apresentando um futuro utópico, iria assumir uma posição favorável às possibilidades de sexualidade não-convencionada.

Talvez tenha sido uma resposta (tímida) a isso o episódio O Excluído (The Outcast, 17º episódio da 5ª temporada de A Nova Geração), no qual o comandante Riker se apaixona por um indivíduo da espécie andrógina  j’naii. Soren não se identifica com a identidade andrógina, sentindo-se uma fêmea com desejos sexuais por machos. No entanto, a sociedade j’naii proíbe a escolha por um gênero, e obriga Soren a passar por uma lavagem cerebral para assumir a identidade hermafrodita.

Essas história foi uma forma metafórica de abordar a homofobia, mas muitos fãs não ficaram satisfeitos. De fato, não há sequer uma menção ao paralelo entre a fobia dos j’naii e a homofobia humana. Porém, vendo o que até agora já havia sido feito, esse episódio pode ser considerado um avanço na abordagem do tema. O seguinte trecho é o julgamento pelo qual Soren passa e no qual ela faz um discurso que ecoa as reivindicações do movimento LGBT.

2 anos depois desse episódio, na série Jornada nas Estrelas: Deep Space Nine (DS9), apareceria no episódio Espelho, Espelho Meu (Crossover, 23º episódio da 2ª temporada)  uma personagem bissexual: uma versão corrupta da major Kira Nerys, num universo paralelo. Ainda sem conseguir admitir que um dos protagonistas, um dos “mocinhos”, pudesse ter uma sexualidade diferente da convencionada, os produtores criaram uma antagonista que não era estritamente heterossexual. Mas ao menos apareceu, depois de 29 anos da franquia, algo diferente do que costumávamos ver.

Mais de um ano se passaria até o próximo avanço. Foi no episódio Reassociação (Rejoined, 6º episódio da 4ª temporada de DS9), em que se retomaria a raça trill para encenar uma relação homossexual. Como a personalidade do simbionte se mantém independente do hospedeiro, e como cada simbionte muda diversas vezes de hospedeiro durante sua existência, vivendo assim centenas de anos, é possível que duas pessoas que se conheceram portando determinados corpos venham a se reencontrar com aparências diferentes.

É o que acontece com Jadzia Dax, portadora do simbionte Dax, e Lenara Kahn, que hospeda o simbionete Kahn. Um dos antigos hospedeiros de Dax era casado com uma hospedeira anterior de Kahn. O amor que sentiam ainda está vivo, de modo que Jadzia e Lenara sentem o desejo de permanecer juntas, contra uma tradição trill que proíbe a retomada de um relacionamento afetivo depois que os hospedeiros mudam.

É interessante ver determinado momento do episódio, não reproduzido acima, em que o dr. Bashir explica à major Kira que o relacionamento entre Jadzia Dax e Lenara Kahn é proibido pela sociedade trill. Tem-se a impressão inicial de que os trill são homofóbicos, mas Bashir logo elucida que a proibição é de que dois trills retomem um relacionamento passado, o que tem como punição o exílio.

Também é notável que, quando Dax pede ao capitão Sisko um conselho sobre se ela deve ou não retomar o relacionamento com Kahn, ele se refira apenas ao problema de ela vir a ser exilada, e não se oponha ao caso por causa do sexo das duas amantes, mas sim porque sua amiga sofreria com a execração.

Entretanto, as personagens envolvidas não encenam exatamente um caso homossexual como entendemos. Seu relacionamento ocorre não porque elas se sintam atraídas por pessoas do mesmo sexo, mas porque se amam. De certa forma, é uma maneira até mais libertária de encarar a sexualidade, como algo que ocorre por amor, independente do sexo da pessoa amada. Porém, a história, sendo um passo ousado devido à cena de beijo homossexual, ainda é tímida porque trata esse tipo de relacionamento como algo particular a uma espécie alienígena, no caso os trills, não aparecendo ainda nenhum personagem humano abertamente gay ou lésbica.

Apesar de o idelizador de Jornada nas Estrelas, Gene Roddenberry, já ter expressado o desejo de colocar personagens homossexuais na franquia; embora já tenham aparecido vários roteiros que abordam a homossexualidade, que por decisão dos estúdios não foram concretizados; e mesmo que vários atores que já participaram das séries, como Jonathan Frakes e Kate Mulgrew, tenham deixado clara sua posição favorável à aparição de gays e/ou lésbicas nos episódios, o tema ainda é tabu na televisão norte-americana e talvez ainda precisemos de muito tempo para superar a homofobia e a dificuldade de conceber um futuro em que a opção, a orientação e a identidade sexuais sejam insignificantes no reconhecimento dos indivíduos.

De qualquer forma, sempre podemos imaginar que certas relações de amizade muito próximas tinham alguma coisa de homoafetividade…

Vida longa e próspera

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