Liberdade e livre-arbítrio – parte 2

A restrição da liberdade é condição sine qua non da própria vida humana em sociedade. Se não fosse o refreamento dos impulsos vitais, por exemplo, os conflitos interpessoais quase sempre terminariam em derramamento de sangue ou morte. Se as pessoas fossem totalmente desimpedidas para expressar o que pensam, qualquer discordância se tornaria uma troca de insultos, xingamentos e ataques verbais preconceituosos, desperdiçando-se a oportunidade do debate de ideias. Se não fosse a cultura, enfim, não seríamos humanos.

Esse refreamento deveria se tornar uma prática consciente, parte de uma autocrítica constante, norteada pela razão e por uma noção realmente libertária da liberdade. Esta só tem sentido como valor social quando se aplica a todos igualmente, e isso necessariamente significa que, paradoxalmente, nem tudo é permitido numa sociedade livre.

Se isso não ocorrer, regrediremos a uma época em que vários avanços democráticos não haviam ainda sido cogitados, como os direitos iguais de mulheres e homens, dos grupos étnicos minoritários, da população racialmente discriminada, das pessoas com orientação e identidade sexuais não-convencionais, de praticantes de religiões marginalizadas e daqueles que não professam religião ou crença nenhuma.

Na prática, as pessoas são livres para expressar seus preconceitos, e muitas o fazem o tempo todo. Mas os discursos têm grande poder de reproduzir os preconceitos. Para que realmente haja mudanças libertárias, paradoxalmente, temos que nos restringir, pois estamos todos corrompidos com sexismo, racismo, homofobia e xenofobias de todos os tipos, que lutam o tempo todo dentro de nós para vir à tona, e não queremos que as próximas gerações os herdem (bem, nem todos nós, alguns educam abertamente os filhos para herdar esses preconceitos).

A democracia deve se pautar na razão, e esta se alia muito melhor ao conhecimento científico e à reflexão filosófica (que tratam dos fatos como eles são) do que à crença religiosa (baseada em pré-concepções e dogmas). Esta, em muitas de suas correntes, defende que os homossexuais são prejudiciais à sociedade (a Bíblia prescreve a pena de morte para sodomitas), e constrói um arcabouço de argumentações para justificar essa ideia, todas inspiradas em preconceitos.

O conhecimento científico, pela observação mais objetiva dos fatos sociais, demonstra que as coisas não são bem assim, que as repercussões dos atos de um homossexual na realidade ao seu redor não são diferentes das de um heterossexual. Não há justificativa racional para a restrição da liberdade de exercermos direitos iguais aos de todos os outros. A democracia não é simplesmente fazer o que a maioria quer (argumento usado de maneira falaciosa por cristãos que defendem que, se a maioria dos brasileiros é cristã, a lei deveria seguir os preceitos bíblicos), mas possibilitar a realização de um ideal em que a liberdade de cada um não seja reprimida pelas crenças de uma entre muitas parcelas da sociedade.

A liberdade de um indivíduo viver segundo suas crenças pessoais não deve implicar no constrangimento da liberdade de outros. Existe uma lei estatal que se sobrepõe a qualquer “lei divina”, e garante (ou está aí para garantir) direitos iguais para todos, religiosos, ateus, gays, héteros, mulheres, homens, negros, brancos etc. Embora eu não acredite na obediência cega à lei (isso seria o pensamento de quem se submete a uma ditadura), acho que ela precisa ir se construindo de forma cada vez mais racional e democrática.

Para Aristóteles, em Ética a Nicômaco, a virtude deve ser buscada no equilíbrio, na dosagem (temperança) entre o excesso e a falta. Nas relações humanas, essa ideia pode ser traduzida como o esforço para se alcançar um equilíbrio entre a liberdade individual irrestrita (excesso) e a autoabnegação absoluta (falta). Se houver a primeira, existirá apenas o indivíduo solitário no mundo. Se a segunda dominar, ninguém vive.

Defender a ideia de que certas crenças deveriam se tornar leis é defender o pensamento ditatorial. Por exemplo, querer que o Cristianismo em sua versão católica seja ensinado obrigatoriamente nas escolas é ignorar a diversidade religiosa do país e pretender a universalização de ideias pertencentes a um grupo particular. Se essa medida fosse democraticamente válida, seria preciso ensinar todas as religiões do mundo (não só as variedades cristãs – muita gente pensa que Religião é sinônimo de Cristianismo), sem colocá-las numa hierarquia e sem considerar nenhuma delas como mais certa do que as outras.

Os cristãos não precisam de leis especiais, pois eles tradicionalmente ocupam lugares privilegiados no poder e constituem uma maioria, sendo responsáveis pela eleição de muitos políticos alinhados com seus interesses sectários. As leis que contrariam as doutrinas cristãs, como aquelas relacionadas aos direitos dos LGBTs, não chegam a ser mínima ameaça à liberdade religiosa de ninguém.

A Marcha para Jesus e outras micaretas de Cristo, por exemplo, são irrelevantes em comparação com a Parada Gay e outros movimentos de ação afirmativa, porque esta tem uma importância política no contexto da busca por visibilidade de um dos grupos mais marginalizados e excluídos, que ainda precisa esconder sua existência para evitar a discriminação. Isso não ocorre com os cristãos. Por isso é muito fácil estes se sentirem reprimidos quando criticados em suas crenças conservadoras, pois estão acostumados a não encontrarem obstáculos à expressão e manifestação de suas ideias e seu modo de vida.

Não que eu seja totalmente favorável a essas marchas (de qualquer tipo), que atrapalham o cotidiano de muita gente com barulho e fechamento de ruas, mas algumas, como a Parada Gay, têm importância política e podem trazer boas mudanças a longo prazo, até o dia em que ninguém mais precise marchar.

Imagem em destaque

  • A Liberdade guiando o povo – Eugène Delacroix (1830)

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