Macacos

Num jogo de futebol recente, algum torcedor idiota lançou uma banana ao campo, direcionada ao jogador negro Daniel Alves. Como já é costume, a atitude de mau gosto do torcedor foi aludir à velha piada racista que desumaniza os negros ao insinuar que eles se parecem com macacos (estes, segundo o senso comum, têm uma predileção natural por bananas). A contundente reação do jogador foi pegar a banana, descascá-la, comê-la e continuar jogando.

A atitude de Daniel tem grande força simbólica porque é uma forma de ele mostrar que não tem medo do racismo, uma maneira de dizer, “seu racismo não me afeta”. E isso serve de exemplo para a sociedade que costuma assistir aos negros baixarem a cabeça ou se entristecerem com esse tipo de ofensa. Embora seja muito difícil contornar a violência simbólica do racismo, a mensagem é clara: as coisas estão mudando e não vão ser assim para sempre.

Porém, Neymar, colega de Daniel, levou adiante o gesto deste ao lançar a campanha “Somos Todos Macacos”, convidando os internautas a postar fotos suas comendo uma banana e repetindo a hashtag correspondente (#somostodosmacacos). Em pouco tempo o Facebook e outras redes sociais se encheram com fotos e textos louvando a campanha e rapidamente pessoas começaram a ganhar dinheiro com isso.

Mas o que realmente significa dizer que “somos todos macacos” e quais as consequências de promover essa frase da forma como está sendo divulgada?

Importa salientar que Neymar é conhecido por não se autorreconhecer como negro, embora para o mundo ele seja negro e seja alvo também de racismo. Dessa forma, fica a dúvida se, ao dizer que é macaco, ele está se autorreconhecendo como negro e como pertencente a uma identidade suscetível ao tipo de ofensa sofrida por Daniel ou se está reproduzindo um tipo de campanha comum hoje em dia que é se identificar com uma minoria oprimida apenas a título de solidariedade. Ou Neymar está dizendo

  • ok, eu sou negro e, como Daniel, não me ofendo com o racismo do qual sou alvo; ou
  • embora não seja negro, me solidarizo com Daniel e com todos os negros chamados de macacos pelos racistas; ou ainda,
  • somos todos seres humanos e, como tais, somos uma espécie de macaco.

Infelizmente, como estamos vendo, as coisas são muito mais complicadas do que parecem à primeira vista. Para mim, a única forma que a frase “somos todos macacos” poderia ter algum sentido positivo seria entendê-la com um significado zoológico: “Como Homo sapiens, somos todos pertencentes a uma espécie de primatas e, portanto, somos macacos, tanto os negros quanto os brancos quanto os de qualquer outra cor de nossa raça humana”. Se a frase fosse unanimemente entendida assim, poderia ter, quem sabe, uma força libertária enorme e nos colocaria todos no mesmo lugar, ou seja, desconstruiria qualquer sentido negativo relacionado à palavra “macaco”.

Mas não é bem assim que ocorre na prática. Não podemos ignorar o peso simbólico e político impregnado nas palavras e nos gestos em nossa cultura. Para grande parte das pessoas, o ser humano não é um macaco, e esta palavra se reveste de um significado que a opõe a vocábulos como ser humano, pessoa, homem, mulher etc. Vide um pronunciamento de 2012, viralizado recentemente, em que Ariano Suassuna deixa bem claro a noção de senso comum (e de grande parte das pessoas religiosas) que vê o ser humano como uma criação diferente de qualquer outro animal. Assim, são muito poucos os que apreendem o suposto sentido zoológico presente na expressão “somos todos macacos”.

Infelizmente, o que se apreende dessa frase, em geral, é semelhante ao que estava implícito na frase “somos todos Guarani-Kaiowá”, em campanha a favor dos grupos indígenas citados, e em que pessoas que não eram indígenas se identificaram com eles de maneira fortuita, num gesto político de solidariedade. Quando uma grande parcela de pessoas brancas se identifica como “macacos”, infelizmente o sentido racista ressoa na expressão, e é como se essas pessoas estivessem dizendo que, num gesto de solidariedade, estão se identificando como negros (e não genericamente como seres humanos). Ou seja, por mais bem-intencionada que seja, a pessoa que diz “sou macaco”, nesse contexto em que se discute o racismo, está sem querer dizendo que negro e macaco se equivalem e que macaco não abrange semanticamente o branco.

"Não sou macaca!" (Fang)
“Não sou macaca!” (Fang)

Grande parte das pessoas, além de acreditarem nessa noção de senso comum que vê o ser humano como uma criatura especial, misturam-na com um saber científico difuso sobre a evolução que, contaminado pelo racismo científico do século XIX, não só vê o Homo sapiens como uma evolução do macaco (que supostamente deixou de ser macaco) como também vê nos diversos grupos humanos estágios diferentes dessa evolução. Sabemos bem aonde esse raciocínio leva: grande parte das pessoas, conscientes disso ou não, considera os negros como mais próximos evolutivamente dos macacos do que os brancos, ou seja, como menos evoluídos do que estes e, portanto, menos humanos do que estes.

E é aí que está a força racista do termo macaco, usado ostensivamente em nosso cotidiano como uma palavra “naturalmente” ofensiva. Não é à toa que parte significativa dos representantes dos movimento negros estão rechaçando sumariamente a campanha (difundindo, ao invés disso, a frase “Não Somos Macacos”), pois consideram que ela não desconstrói o racismo subjacente à palavra em questão e pode até reforçar esse racismo. A maioria das pessoas que se deparar com a campanha do “Somos Todos Macacos” não conseguirá dissociar o termo macaco de um sentido negativo profundamente difundido na cultura ocidental.

Há uma grande diferença entre abordar a “macaquice” humana do ponto de vista zoológico e do ponto de vista sócio-antropológico. Embora a Biologia nos permita afirmar a igualdade dos indivíduos da espécie, nos colocando evolutivamente como “macacos”, a cultura, através da representação, nos divide em grupos, nos faz diversos, diferentes, e até desiguais e antagônicos. E, nessa diversidade, a força da representação da identificação entre negros e macacos (diferenciando-os dos humanos brancos) não pode ser menosprezada.

Como disse um amigo, aludindo ao famigerado vídeo “Dancem, Macacos, Dancem”,

Este debate atual – afinal somos ou não somos macacos – tem relação direta com o grande dilema da nossa espécie que é fundante da antropologia: a contradição de sermos uma espécie una do ponto de vista biológico, ao mesmo tempo em que somos diversos do ponto de vista sociocultural. É por causa desse dilema que nos defrontamos com situações inusitadas como o fato de que raças humanas não existem para a biologia, mas são operantes no espectro sociocultural, sendo definidoras de hierarquia e papéis sociais. Assim sendo, estamos diante do atual dilema em que biologicamente não faz sentido negar nossa animalidade – afinal somos primatas, logo, macacos -, mas sociologicamente podemos ser o que quisermos – ou o que os outros querem que sejamos. Ou seja, ser ou não ser macacos depende, diretamente, do contexto em que se insere essa macaquice. Como disse, mundo contraditório…

A nomeação e/ou classificação de nossa espécie como pertencente ao grupo dos macacos é arbitrária e depende da abordagem e do contexto. O que posso dizer com o mínimo de incerteza é que só faz sentido dizer que “somos todos macacos” se com isso entendermos que negros são tão macacos quanto brancos são macacos (bem como quaisquer outras classificações de grupos humanos). Mas é praticamente impossível hoje em dia não associar o malfadado termo a uma noção racialmente negativa, herdada de nossa história recente de subjugação dos africanos e seus descendentes.

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