O corpo afrodisíaco

“E ainda tem gente que não gosta, não é, rapaz?”, disse um homem ao seu companheiro de mesa no restaurante, referindo-se a duas mulheres bonitas sentadas à mesa em frente. É claro que, com a crescente visibilidade da busca por direitos iguais pelos LGBTs, torna-se muito comum as pessoas tocarem no assunto, muitas vezes para demonstrar seu conservadorismo e sua reprovação, especialmente dirigida aos homossexuais do sexo masculino.

Eis algumas perguntas não muito óbvias para questionar essas manifestações: Por que um homem precisa proclamar de forma irônica seu desprezo pelo desejo homossexual, sugerindo através dessa mesma ironia que sua orientação é heterossexual? Por que esse tipo de afirmação costuma ser restrito às conversas entre homens? Por que existe alguma coisa errada em qualquer pessoa que não se excite com a visão de um corpo feminino?

Afinal, para esse discurso conservador, há algo errado em uma mulher heterossexual que não goste ou não se sinta excitada com a visão do corpo de outra mulher? Quando diz que “tem gente que não gosta”, o homem está provavelmente se referindo a outros homens, ou seja, sub-repticiamente, atribui o status de “gente” mais (ou exclusivamente) aos homens do que às mulheres. Na relação de desejo, os homens são o sujeito e as mulheres são o objeto.

Passion - Tanya Chalkin
“Passion” – Tanya Chalkin

Mas a representação dos sujeitos do desejo, dentro da psique e nas fantasias eróticas masculinas mais comuns, realmente veem o corpo feminino como afrodisíaco, não só para os sentidos dos homens heterossexuais. Isso se revela em uma das fantasias mais comuns entre os homens, que é se envolver sexualmente com um casal de lésbicas (ou melhor, de mulheres bissexuais). Nessa fantasia, fica subentendido que a mulher, como objeto de desejo por excelência, tem o poder de excitar qualquer pessoa, independentemente do sexo desta e de sua orientação sexual.

Há um mito comum que diz que uma mulher suficientemente bonita e sensual pode conseguir excitar um homossexual que nunca se excitou senão com homens. Isso pode até acontecer, da mesma forma que um heterossexual pode se sentir excitado pela visão de um homem bonito e sensual, mas neste caso é muito mais difícil que o sujeito o admita, pois o desejo homossexual é proscrito pela moral tradicionalista vigente.

Toda essa representação tem efeitos reais. Em público, os homens costumam voltar olhos ávidos para as mulheres consideradas bonitas, e muitas afirmações do discurso androcêntrico refletem isso, como aquelas que jogam a culpa do estupro na mulher que usa roupas provocantes, a demonstração de raiva e ódio dos homens pelas mulheres com quem eles não conseguem se envolver sexualmente (uma das manifestações da misoginia) e o desprezo e ojeriza pelas mulheres consideradas feias.

Além disso, como bem aponta o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em seu excelente ensaio A Dominação Masculina, o corpo da mulher é instituído em nossa sociedade para ser representado e vivido como um corpo para ser visto, e isso implica, especialmente, que a mulher assume o papel de um ser vigiado, constantemente cobrado a parecer visualmente (e comportamentalmente) agradável, não só aos homens, mas da mesma forma às mulheres. Estas, tanto quanto os homens, olham constantemente para outras mulheres para avaliar sua aparência.

A noção de que o corpo feminino é o “corpo afrodisíaco” por alguma razão biológica (que estaria ligada à reprodução e à necessidade de a mulher atrair o macho para a cópula) não tem razão de ser pelo enfoque antropológico. São construções sociais que produzem o olhar e o desejo por certos tipos de objeto em determinadas condições. Nesse contexto, a vaidade feminina se insere como uma representação que envolve a ideia de que a mulher é fútil, rasa, superficial e necessita “naturalmente” se maquiar, se vestir bem, “se cuidar”.

A mulher não é “naturalmente” mais vaidosa do que o homem. Basta olhar para o passado do Ocidente e para várias outras culturas para ver o extremo zelo que os homens de certas sociedades têm com o asseio, as roupas e os acessórios de beleza, às vezes mais do que as mulheres suas conterrâneas. Em certos contextos sociais, são os homens quem têm que demonstrar vaidade para impressionar as mulheres.

Em nossa cultura, o estilo feminino de se maquiar e vestir faz parte de um esquema de distinção dos gêneros, segundo o qual os comportamentos de uma pessoa devem seguir um modelo pré-estabelecido e exclusivo, o que vale também para os homens. As pessoas devem se encaixar em dois gêneros possíveis, sem intermediários: masculino-homem e feminino-mulher. Temos toda uma parafernália pedagógica, comportamental e material para garantir que o sexo de uma pessoa seja inconfundível: maneirismos característicos de cada sexo, tipos específicos de roupas, cabelos e penduricalhos, além de uma preferência sexual específica (quase invariavelmente heterossexual).

Qualquer tipo de desvio desse ideal provoca inquietação e ansiedade. Uma vez que esse enquadramento nos obriga a acatar certas coisas e renunciar outras (coisas que nem sempre correspondem, respectivamente, àquilo que intimamente desejamos e ao que repudiamos), tendemos a jogar os desviantes ao leito de Procrusto e, ao mesmo tempo, reprimir uma parte de nós mesmos, aquela parte que nos faria sair de um dos polos sexuais para uma identidade ambígua e inquietante, segundo os valores da maioria de nós.

Quando um homem expressa enfaticamente sua predileção sexual pelas mulheres e o desprezo pela homossexualidade, está assegurando que seu papel de homem heterossexual seja reconhecido, que não haja dúvidas sobre sua identidade masculina, que é a mais aceitável para um indivíduo com cromossomos XY. Ele precisa da aprovação de outros indivíduos, e busca especialmente a aprovação de outros homens, pois os indivíduos do sexo masculino se vigiam constantemente para averiguar se estão dentro do padrão exemplar.

A irônica frase “e tem gente que não gosta” pode esconder o inconsciente e reprimido desejo homossexual do próprio emissor, que precisa ser negado com ênfase para que ninguém (nem ele mesmo) mais tenha dúvidas. A ironia pode servir para a pessoa deixar escapar, sem querer, alguma informação reprimida sobre si mesma: a pessoa que não gosta de mulher (e que gosta de homem) pode ser – não necessariamente – o próprio homem que está emitindo aquela frase.

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10 comments

  • Muito bom o texto, um recorte da sociedade que vive no cárcere da ignorância. Não somos seres pensantes pela capacidade de reproduzir uma ideia, mas somente quando conseguimos questionar os próprios pensamentos e atitudes, enfraquecendo a perpetuação irracional dos valores humanos.

  • @Sylvana,

    Muito bem colocado. Precisamos aprender e desenvolver nossa capacidade de fazer a autocrítica, pensar sobre nosso próprio pensamento e desconstruir tudo aquilo que nos puxa para uma forma retrógrada de representar e viver o mundo.

  • gostei. 1) a existência do mito de uma beleza sexual feminina transpassando gêneros e orientações sexuais não me parece fenomeno tão massivo como se subentende no texto – ajudaria citar os estudos acerca disso. 2)há uma sociedade africana especifica, comum nos documentarios, onde os homens se parecem àquilo que entre nós chamamos dragqueens, ao passo que as mulheres são mais recatadas e contemplam os alvoroçados torneios estéticos carregados de maquiagem e trejeitos que na sociedade branca-cristã-falocentrica facilmente seriam tachados como afrescalhamento – isso é um exemplo interessante a respeito de como a polaridade ético-estética de generos, hegemonica no ocidente, é lamentável para a beleza e para a verdade. saúde thiago. dá uma olhada nisso:
    http://provocalia.blogspot.com/2011/05/do-peido-m

  • @Wagner,

    Não tenho nenhum estudo para citar neste ensaio despretensioso, tudo não passa de especulação baseada nos discursos que ouvimos diariamente, nas representações que vemos nas narrativas fictícias ou na mídia de massa.

    Note que não estou dizendo que o corpo feminino é objeto de desejo universal, mas o discurso do homem cuja frase citei no início é um exemplo de um discurso maior, sub-reptício, que representa esse corpo como "corpo afrodisíaco", como se ele tivesse esse poder de excitar não só homens e mulheres humanos, mas até alienígenas (veja meu texto mais recente, Sexualidade alienígena – parte 3).

  • Assim parece que todos são bissexuais não assumidos… Minha heterossexualidade é bem definida, assim como a da minha esposa, e ninguém se sente atraído pelo mesmo sexo não por convenções aprisionadas ou retrógradas, mas por não se sentir mesmo. Ponto. E brincadeiras que se façam com a heterossexualidade não creio serem manifestações oprimidas de nada, mas uma reiteração de antigas piadas do gosto popular sobre o sexismo de tempos idos… Há lugar para tudo por baixo deste céu e não é por isso que todos se colocarão sob a mesma lona… Um abraço! Ah, os Morcegos voltaram, caso interessar possa, sujeito difícil no 'GTalk' (faz tempo que tento dizer isso por lá, mas nossa conversa nunca sai do "Salve, Thiago"!)!

  • @Dilberto,

    Muitas pessoas concordarão com você. Eu concordo em parte.

    Também considero minha heterossexualidade "bem definida", mas penso que ela o é não por me faltar algum "gene gay" ou por ser de minha "natureza". A sexualidade de um indivíduo é resultado de um processo, de uma adequação a uma cultura, de experiências pessoais, de vivências marcantes ou traumas, enfim, de sua trajetória desde o nascimento até o fim da vida. Esse processo é o que define/demarca/delimita nosso comportamento, podando uma infinidade de possibilidades e mantendo outras, que incluem uma grande gama de identidades e orientações sexuais.

    Um dos efeitos que a cultura e a história pessoal têm nos indivíduos de uma certa sociedade é não deixar pistas (ou deixar muito poucas) de sua atuação. Grande parte do que nos tornamos é fruto de uma acumulação de coisas, a maioria das quais "insignificantes". Assim, muita gente vai concordar com você porque não percebe que suas escolhas não são fruto do acaso, mas de um processo quase invisível.

    Tive o cuidado de colocar um "não necessariamente" no texto, mas penso que se uma pessoa precisa enfatizar tão claramente seu enquadramento nos moldes mais aceitáveis é porque precisa negar algo que tem em si mesmo e que pode até estar tão reprimido que ele mesmo não sabe disso. O efeito da repressão é justamente ocultar certas coisas de tal forma que o próprio sujeito não sabe mais o que tem escondido nas masmorras da própria psique, mas que podem se revelar de modos inusitados.

    Sobre o GTalk, eu sempre tento responder aos seus "Salve, Thiago!", mas sempre recebo um "Dilberto did not receive your message" em resposta… 😛

  • Não acho que quando alguém se afirma heterossexual esteja enfatizando nada: quando falei de mim e de minha esposa, dei exemplos próximos de coisas simples, o famoso "simples assim", assim como muitos 'gays' são 'gays' "simplesmente assim" – por que agora há esta inversão de que quem se diz hétero está na verdade precisando de autoafirmação?! Ou que esconderia algo em suas masmorras da psique?! Parece uma ditadura do homossexualismo (ou bi ou pan, seja lá o que for)! 'Bullshit', como dizem os ianques: por mais que sejamos frutos de sedimentações das mais diversas ao longo do tempo (amizades, meio social, culturas das mais diversas etc.), o meu acúmulo é o hétero! E tudo bem também com todos aqueles que encontraram em seus acúmulos um desejo diferente! Nada é "normal" ou "natural" rotulado: minha opção não é a "certa", jamais disse isso! Da mesma forma que não creio estar diante de um mundo 'gay' e eu só sou do "contra" porque ainda não tenha me dado conta de que também seja 'gay'! É antropologia do absurdo esta, meu caro! Mas, enfim: sigamos! Um abração!

  • @Dilberto,

    Talvez eu tenha exagerado em alguma coisa. De qualquer forma, não pretendi equiparar você e sua esposa ao camarada autor da frase que começa meu ensaio. Pelo pouco que o conheço, tenho quase certeza de que você não sai por aí se gabando de sua macheza e bradando o "orgulho hétero". Novamente, concordo em parte com você.

    Penso que há uma diferença entre uma pessoa que simplesmente diz "sou heterossexual" ou "sou homossexual" ou "sou bissexual" etc. e uma pessoa que precisa ficar se gabando de sua identidade sexual (seja qual for), menosprezando as outras. Um homossexual que precisa dizer a todo mundo qual é sua orientação sexual, afirmando que é melhor do que a dos outros, tem o mesmo problema. Se alguém precisa afirmar veementemente alguma coisa sobre si, é porque tem algo mal resolvido que está tentando "resolver" através do discurso enfático.

    Voltando a um ponto em que eu não toquei no seu primeiro comentário, não acho que as piadas tenham nada de inofensivo. Elas dizem muito sobre nossos preconceitos e valores. Não acho que devamos ficar paranoicos com o humor; contemos piadas preconceituosas, riamos, mas lembremo-nos de não transformar esses preconceitos em discriminações reais (não estou dizendo que você faz isso!).

    Obrigado pelos comentários instigantes. 😉

  • Sei que ninguém é 100% isso ou aquilo,os humanos de gênero masculino possuem hormônios femininos em seu corpo, apesar de possuírem majoritariamente hormônios masculino e o mesmo se aplica às mulheres.

    Tem pessoas que não percebem o que estão tentando esconder nos envoltos de sua inconsciência, procuram de todas as formas se encaixar em valores convencionalizados pela sociedade, entretanto não possuem um senso crítico para desmaterializar construções sociais, isso é reproduzido no reforço enfático de opções de vida consideradas "normais" por nós, em detrimento as outras formas de viver e encarar o mundo.

    As diferenças que fogem à conceitos, doutrinas, às concepções concebidas por nossas bases culturais, nos forçam à pensar sobre nós mesmos, o grande problema é que nem todos estão preparados e nem dispostos a refletir sobre si próprio, que nosso modo de vida não é único entre as diversas existentes – e talvez nem a melhor.

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