O futuro nas mãos de um robozinho

Confesso que a expectativa gerada pelos inúmeros polegares em riste e comentários sorridentes sobre WALL-E me fizeram esperar demais de um filme que é apenas sublime, mas a sensação que tive ao vê-lo foi a de que é um ótimo filme. Talvez, assistindo a ele de novo, eu possa aproveitar mais da obra genial que indubitavelmente (e olhe que eu tenho mania de duvidar de qualquer coisa) é.

Warning: Spoilers!

Não há mais mundo. Só sobrou a Terra, desabitada. O único ser autoconsciente que restou funcionando não é um ser vivo. Aliás, há sim um mundo, um particular, o de Wall-E (Waste Allocation Load Lifter Earth-Class), e como o compartilha apenas com uma barata, pode-se dizer que a Terra/mundo é toda sua. E há muito tempo, tendo em vista o estado sujo e enferrujado de seu corpo metálico. 700 anos, para ser menos impreciso.

Então o céu lhe envia Eva (Eve no original, Extra-terrestrial Vegetation Evaluator), e ele se apaixona. Ela tem charme, poderes incríveis, voa e, enfim, é alguém com quem pode conversar:

Wall-E: Wall-E!
Eva: Wall-E? Eva!
Wall-E: E-a?
Eva: Eva!
Wall-E: Eva!

Wall-E caminha sobre lagartas metálicas sujas de terra. Eva voa elegantemente. O corpo dele tem formas angulosas, enquanto o dela é sinuoso e curvilíneo. Ele é frágil e está sempre consertando suas partes velhas e quebradas. Ela é forte e altamente resistente. Mas eles têm muito mais em comum do que à primeira vista parecem ter, a começar pelo fato de se expressarem principalmente pelos olhos.

E ela é tudo o que ele mais queria, tudo de que ele sentia falta ao assistir a filmes românticos de séculos atrás. Wall-E era como Adão, sozinho na Terra para organizar o mundo, sentia falta de uma companhia, de alguém como ele. Mas o robozinho singelo, com sua maravilhosa coleção de tranqueiras, também tinha algo que Eva queria. Em meio às bugigangas de sua caixa de Pandora, há uma esperança verde, uma plantinha, e toda plantinha guarda em si uma semente, e era esta semente que ela queria, e foi esta semente que ela tomou dele e guardou em si. E ficou grávida.

Eva é raptada. Ela já é parte importante do mundo de Wall-E. Mas o céu vem buscá-la de volta, e ele não pode deixar de ir com ela. José Onofre, na última edição da CartaCapital, escreveu um pequeno artigo sobre Alfred Hitchcock:

[…] Hitchcock se coloca a questão imediata: que tipo de história tem esta emoção que o cinema deve oferecer ao seu espectador? E avança: “Uma história de amor. Um homem encontra uma garota, eles se apaixonam, ela desaparece e ele precisa encontrá-la.”

Com esse ponto fixado, ele vai buscar variações.

A situação em que estão os humanos que Wall-E encontra na estação espacial Axiom é lamentável. Todos são obesos e têm pernas atrofiadas, pois desde o nascimento se acostumam a ficar reclinados em poltronas flutuantes que os levam a (quase) qualquer lugar, e que serviam originalmente apenas para os idosos que não podiam mais andar. Estão todos tão absortos em telinhas holográficas perante seus olhos que, quando Wall-E ajuda John a subir à sua poltrona, o rápido contato entre os dois se torna extremamente significante para o homem, que não vai mais esquecer do robozinho. O mesmo para uma mulher que nunca havia visto o cenário à sua volta, ao ter desligada sua telinha holográfica por Wall-E.

Assim, WALL-E é um alerta para uma situação já corrente. O ser humano se deixa dominar pelas máquinas (tema já tão batido em Matrix e Extermindor do Futuro), e adoece seu corpo, sua mente, suas relações com os outros. Ele se robotiza. E tudo está relacionado à doença da Terra, que só depois de 700 anos de ausência humana pôde dar à luz um pouco de clorofila.

Wall-E ainda faz um sacrifício para salvar Axiom do controle de Auto, um robô-timão que deveria obedecer ao capitão da estação, mas que está programado para sabotar o retorno à Terra. Todos, robôs e humanos, se mobilizam, mas Wall-E sacrifica a própria integridade física, e o Paraíso, a Terra, é reconquistado. Eva tem tantos poderes que é até capaz de reconstruir seu amado, mas nenhuma de suas super-habilidades tecnológicas podem trazer de volta a alma de Wall-E. Somente um gesto de amor o fará.

Nesta cena, fiquei com uma sensação parecida com a que tive no desfecho de 10.000 A.C., quando Evolet, a amada de D’leh, desfaleceu. O amor dele por ela foi a desculpa para que ele libertasse vários povos da opressão de um império. Se o filme fosse europeu, provavelmente ela teria morrido. Da mesma forma, Wall-E quase morre. Ele era a chave para que os humanos retornassem à Terra, já havia cumprido seu papel, não era necessário que sobrevivesse. Mas, talvez em parte por influência do mito cristão, ele ressuscitou. Mas agora percebo que o gesto de amor de Eva era uma forma de mostrar que na personalidade de Wall-E estava sua maior força e fortaleza, e ele foi capaz de resistir à morte.

Entre os símbolos consagrados do poder estão a mão, o olho e a voz. E é interessante constatar que os rostos dos protagonistas, Wall-E e Eva, se resumem aos olhos, e estes, junto às suas repetitivas vozes monótonas e suas mãozinhas, bastam para que se comuniquem e para o espectador compreender tudo o que se passa entre eles. Depois de se sacrificar como um mártir e ser reconstruído por Eva, sem seu olhar idiossincrático, sem sua simpática voz e sem emoção nas mãos, Wall-E se torna apenas um Wall-E, apenas um robô como os de sua espécie. É sua hisória particular que o torna único, e ele consegue ser mais autêntico do que os seres humanos robotizados da Axiom.

Adendo

Jogue Space Escape
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