Peixe Podre

– para Leão Neto, que me apresentou respeitosamente este homem

A faca rasgava a barriga do peixe como se abrisse nuvens, de onde escorreria uma chuva vermelha e viscosa. A arte das facas, a sorte lida nas vísceras, infortúnios em lugar de fortuna. As mãos tingidas do vermelho sangue-chuva-viscosa das entranhas dos peixes. O cheiro impregnado no corpo, no couro, no osso, na origem da alma. O odor ancestral dos peixes arrebatados pela rede de seu pai, do pai de seu pai, e do pai deste e do outro até o início dos tempos, como se Adão carregasse no ombro sua vara de pesca.

Peixe Podre o chamavam, desde antes, de sempre. A caixa de isopor amarrada ao bagageiro da bicicleta e um cordão de cinco peixes raquíticos presos pelas bocas. “Peixe podre”, ele gritava pelas ruas, como a cidade o chamava. Vendia-os por uma pequena miséria amealhada, suficiente apenas para um tanto de feijão e outro tanto de cachaça. O cheiro fétido do isopor era também o cheiro de seu corpo e da cama de rosas mortas em que se deitava aquele homem miserável e sua mulher miserável ocupada do miserável legado que seus filhos receberiam.

O sol havia-lhe furtado a cor da barba, refeito o tom de sua pele e entalhado os veios de sua musculatura-osso. “Peixe Podre”, as pessoas o chamavam pelas ruas. “Peixe Morto” talvez fosse o nome mais preciso. A podridão dos peixes mortos mastigou os ossos de seu juízo. Peixe Podre empurrava ao braço de mar sua canoa: só o mar podia abraçá-lo: peixe podre, pobre peixe. E o mar convidou-o às suas entranhas, as do mar. Em sua canoa rasa, Peixe Podre deixou-se carregar ao ventre oceânico, ao ventre de água do mar. Deitou-se sozinho em seu barco miserável, como miserável era seu destino. Encolheu-se, refeito o menino de antes de nascer, no ventre de sua mãe verdadeira, no ventre marinho de sua mãe verdadeira.

Peixe Podre deixou-se arrefecer, deixou-se engolir, sem pensar no destino corroído de seus filhos, na podridão que empesteou o útero de sua mulher companheira de muitos, muitos sofrimentos e mínimas alegrias esquálidas, como esquálido era o corpo de Peixe Podre, que não pensou em nada enquanto a boca do mar o devorava, lentamente.

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