Persépolis na alma de Marjane

Acho que foi em 2007 que li pela primeira vez Persépolis (2007), de Marjane Satrapi. Na época foi uma leitura instigante, mas sabia que precisaria retornar a esses quadrinhos singelos e expressivos mais uma ou duas vezes para extrair mais, afinal o texto se enriquece cada vez mais à medida que revisitamos a obra.

Creio que, nessa primeira leitura (pouco tempo depois da qual assisti ao longa animado baseado na mesma história), apreendi algumas coisas sobre identidade étnico-nacional e de gênero, encenados no drama de uma mulher iraniana que viu sua vida se transformar com a mudança de regime político-teocrático em seu país e na vivência como estrangeira (oriental) em países da Europa.

Muitos anos depois eu reli junto aos amigos do Mitose Neural (pretendíamos publicar um episódio sobre Persépolis, mas tivemos problemas técnicos na gravação…), e outras questões me chamaram mais atenção. Especialmente, observei a história do Irã contada por Satrapi, desde o milenar conflito externo entre o Império Persa e os árabes, seu conflito cultural interno entre a religiosidade persa (Zoroastrismo) e a religião islâmica imposta pelos conquistadores, até a difícil conjuntura política que levou o país de uma ditadura pautada na valorização da cultura ocidental a uma revolução de costumes extremamente islamocêntrica e intolerante.

Marjane é fruto de um mundo formado por conflitos histórico-culturais

Neste sentido, a trama traz para o leitor ocidental uma relação entre política, cultura e religião bem diferente daquela com que estamos acostumados, numa história contada sob o ponto de vista de uma nativa em posição privilegiada, filha de intelectuais e que viveu sua adolescência no Ocidente. Ela nos conta que o xá Reza, que chegou ao poder com o auxílio do governo britânico, valorizava o “progresso” em termos ocidentais, mas ao mesmo tempo exaltava a milenar cultura persa que tornava o Irã e sua capital, Teerã (a antiga Persépolis), únicas perante as influências culturais externas (fosse o ocidente capitalista cristão, fosse a Arábia muçulmana).

Com o afã de acabar com o perigo dos “comunistas”, o governo do xá promoveu perseguições, torturas, exílios e mortes. Diante da possibilidade de mudanças para melhor, muitos dos perseguidos esperavam que a Revolução Islâmica trouxesse um regime que acabaria com a intolerância. Porém, muito pelo contrário, sob a teocracia instaurada, tanto o capitalismo ocidental quanto a esquerda de ideais liberais foram demonizados, e aquilo que os iranianos/persas tinham de mais autêntico em sua identidade ancestral foi rechaçado em nome de uma religião de origem estrangeira (árabe).

Mas eu sabia que havia algo mais por sob essas camadas de significados que pudesse me explicar porque se trata de um romance gráfico tão pungente e impressionante, e imaginava que isso estivesse ligado a uma passagem na qual a avó de Marjane lhe diz que em qualquer situação na qual ela se encontrasse, por pior que fosse, ela deveria sempre se lembrar de quem ela é e de seus valores morais.

Consegui seguir essa pista na terceira leitura do livro, ensejada pelo encontro do grupo Leia Mulheres, iniciativa que incentiva os participantes a conhecer obras literárias escritas por mulheres e se reúne a cada mês para discutir uma obra específica. A releitura e, especialmente, a discussão no grupo me levaram a compreender Persépolis de uma maneira bem mais profunda e significativa.

Havia outra coisa que eu queria entender, além de tudo mais, que era a escolha do título pela autora. Por que a HQ se chama Persépolis e não “Minha História no Irã pré e pós-Revolução Islâmica” ou qualquer coisa relacionada aos acontecimentos pessoais da autora? Essa pergunta, na realidade, junto às passagens significativas com a avó de Marjane, citadas acima, me ajudaram a solucionar o problema que eu não conseguira formular corretamente antes.

Se retomarmos a ideia básica de Satrapi ao construir sua narrativa começando por um texto de História, acompanhado de algumas ilustrações, contando o surgimento do conflito antigo entre persas e árabes que levou à imposição de uma religião e de um modo de vida, passando pelo golpe orquestrado pela Inglaterra e chegando à instauração de um regime teocrático, vemos que a narradora sempre procura enfatizar os diversos meios pelos quais os iranianos, desde sempre, procuraram resistir, manter sua própria identidade, contrária àquela imposta pelos estrangeiros que os colonizaram.

Essa resistência aparece na valorização da cultura e história persas pelo regime do xá, contrapondo-as à influência árabe e islâmica, mas também é patente nos protestos populares contra o próprio xá, subserviente ao financiadores ocidentais.

Aqueles que lutavam pela liberdade do povo iraniano foram perseguidos tanto pelo xá quanto pelo regime teocrático de influência árabe, sempre tentando manter os valores culturais milenares e a identidade persa. No quotidiano de um povo oprimido pela rigidez teocrática, Satrapi sempre aponta pequenos gestos de rebeldia, sutis estratégias para burlar a vigilância dos defensores da moral islâmica.

Sob o regime islâmico, as crianças iranianas resistem espontaneamente à imposição do véu

Quando Marjane passa algum tempo na Europa, enviada por seus pais para não sofrer sob o regime islâmico, ela passa por situações que a obrigam a se posicionar sobre sua identidade étnica. Em determinado momento, ela mente dizendo que é francesa e se chama Marie-Jeanne, apenas para ser alvo de zombaria. Quando assume de uma vez que é iraniana, consegue se sentir melhor consigo mesma e encontra verdadeiros amigos.

Ela vive um período extremamente deprimente antes de voltar a morar com os pais, e passa um bom tempo enfurnada em casa, vendo TV e evitando encarar o mundo lá fora, um mundo no qual ela tem que usar véu e se comportar de maneira recatada em público. Mas quando enfim resolve sair, fazer academia, cuidar de sua aparência e estudar, ela volta a se sentir feliz.

Todo esse panorama diz uma mesma coisa sobre Persépolis/Teerã e sobre Marjane Satrapi: o que caracteriza sua história e sua identidade é a resistência. Persépolis sempre resistiu à influência colonizadora dos árabes, e na modernidade, como Teerã, sempre se viu na premência de manter sua autenticidade para se contrapor às forças imperialistas, o que se vê em seu povo, que continuou fazendo festas regadas a álcool, em segredo para não ser preso pela polícia dos costumes, e que encontrou formas de valorizar a beleza feminina apesar do uso imposto do véu.

Marjane é uma legítima filha de Persépolis, e desde criança se caracterizou por uma personalidade combativa e resistente. Seus pais e sua avó formaram seu caráter, e essa combatividade se constituiu num indivíduo que sempre se contrapôs ao uso injusto da força. Ao longo de toda a narrativa de Persépolis, os momentos em que Marjane está mais feliz, plena e realizada são aqueles nos quais ela enfrenta as adversidades e resiste às imposições da sociedade ao seu redor. Seus piores momentos, por outro lado, são justamente quando ela foge, se evade e evita covardemente o confronto.

Uma cena que chama bastante atenção é quando Marjane vence, junto ao seu então marido, um prêmio de design ao apresentar o projeto de um parque temático, utilizando uma figura mitológica do Zoroastrismo como tema, algo extremamente improvável sob um regime teocrático que renegava qualquer traço de religiosidade que não fosse o Islamismo. Esse evento acaba por motivar Marjane a tomar decisões drásticas para ser mais feliz.

Por isso tudo é que as palavras da avó de Marjane são tão contundentes e dizem tanto sobre o que essa narrativa, no fundo, nos conta. Em determinado momento, a idosa repreende com veemência sua neta. Esta havia lhe contado como escapou dos vigilantes da moral ao fingir que tinha recebido uma cantada de um homem. A repreensão da anciã era explicitamente sobre a moral daquela conduta, culpar um inocente, mas penso que era muito mais do que isso. Ao perguntar à neta, “Você esqueceu quem você é?!”, a sábia mulher chamou a atenção de Marjane sobre seu caráter enquanto legítima herdeira dos persas, uma mulher que nunca foge das adversidades, mas as enfrenta com determinação. Por isso a HQ se chama Persépolis: é a história de uma mulher que tem a antiga cidade persa incrustada na própria alma.

Marjane é, acima de tudo, uma mulher que resiste

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