Princesa, heroína e guerreira: Valente

A respeito da resenha de Thiago Leite sobre o filme Valente, considero que houve um equívoco crasso quando se categorizou a Valente princesa Mérida como transexual, “guerreiro em corpo de mulher / herói em corpo de princesa”, pois existe uma diferença abissal entre ser transexual, ou seja, pessoa com transtorno de identidade de gênero, que não aceita o próprio sexo biológico e sofre com isso, e ser uma pessoa simplesmente inconformada com seu papel social de gênero. E sinto que este tipo de confusão, se perpetuada, seja um desserviço tanto para as mulheres inconformadas com um papel social que as oprime e reprime, quanto para os transexuais, que sofrem muito pela não aceitação de seu sexo biológico.

Mérida se ressente de seu papel social opressivo de mulher, de não poder correr livre em seu cavalo, de não poder usar seu talento como arqueira em competições, de não poder lutar por si mesma. Não vemos a Valente princesinha Mérida exibir sofrimento intenso por seu sexo biológico de mulher, nem mesmo quando o filme a mostra sozinha e livre para fazer o que deseja. Pelo contrário, não a vemos tentando extirpar seus seios ou mesmo disfarçá-los com faixas apertadas, leva seus cabelos vermelhos revoltos ao vento sem cortá-los ou trançá-los, não usa calças, usa vestidos longos e sente-se confortável com eles, usando-os até para escalar montanhas. Vale lembrar que cabelos longos, principalmente vermelhos, são forte símbolo de feminilidade e que cabelos longos, brilhantes e saudáveis são sinais de fertilidade e saúde, logo a feminilidade de Mérida é pontuada através destes símbolos adequados à cultura ocidental, principal público-alvo da Pixar, desde as primeiras cenas do filme. Mérida é menina e moça, guerreira, heroína e princesa.

Eis algumas definições tiradas do ótimo artigo “Transexualismo Masculino”, de Amanda V. Luna de Athayde , artigo este que recomendo fortemente ler:

Gênero: é o que o ser humano se torna sexualmente, seja homem ou mulher.

Identidade de gênero: é a convicção interna de feminilidade ou masculinidade.

Papel de Gênero (gender role): é o estereótipo social do que é masculino e o que é feminino.

Desordens [transtornos] de Identidade de Gênero: é quando existe uma discordância entre o sexo biológico e sua identidade de gênero, entre as quais se encontra o transexualismo.

O transexual não se opõe apenas ao papel social que lhe é imposto como homem ou mulher, ele realmente sofre desesperadamente por ter o sexo biológico que tem e em muitos casos tenta até se mutilar para tentar fazer seu corpo se parecer mais com o sexo com o qual se identifica. Moças biológicas, mas transexuais masculinos, podem tentar arrancar os seios e meninos biológicos, mas transexuais femininos, podem tentar arrancar o pênis, por isso é tão importante diagnosticá-los cedo e encaminhar para cirurgia de mudança de sexo, para evitar que sofram desnecessariamente e até possam se mutilar…

O transexual geralmente tem extrema antipatia, aversão mesmo, ao próprio genital e aos caracteres sexuais secundários, como seios, barba, músculos ou a falta deles etc. Às vezes o transexual prefere ficar sem atividade sexual, extirpando o pênis, por exemplo, para se parecer com o sexo com que se identifica, do que ter alguma atividade sexual com seu genital. A atração sexual para eles é secundária, várias vezes muito baixa, o problema real é o desgosto com o próprio sexo.

Eis a definição do CID-10 sobre Trasexualismo:

F64.0 Transexualismo
Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.

Sugiro o excelente documentário Meu Eu Secreto, sobre crianças transexuais, para melhor compreensão do transexualismo, que quase nada tem a ver com atração sexual:

Também sugiro assistir ao ótimo filme Transamerica, com a excelente Felicity Huffman, onde podemos ver, entre outros casos, um transexual masculino e um transexual feminino apaixonados depois da cirurgia para troca de sexo.

Sobre Mérida ser heterossexual ou homossexual, também não é este o ponto central da história e não vemos a princesa exibir atração, seja pelo sexo oposto, seja pelo sexo similar ao seu, nem por rapazes, nem por moças, pois é muito jovem, aparenta ter entre 14 e 15 anos, não a vemos suspirar por ninguém e o foco do filme foi a relação entre Mérida e sua família, principalmente sua mãe, a rainha reprimida e submissa ao seu papel social de gênero e que, apesar de amar e ser muito carinhosa com Mérida, tentava impor a ela sua própria repressão e submissão ao papel social de princesa e mulher. Mérida diz que ainda não está pronta para casar e podemos apenas ver que despreza as bravatas do primogênito Macintosh, mostra uma pontinha de interesse pela força do primogênito de MacGuffin e junto com toda sua familia mostra surpresa e admiração com o “guerreirão” que à primeira vista parece ser o primogênito do Clã Dingwall, e que se desaponta com o verdadeiro filho de Dingwall, como pode ser visto neste trecho do filme disponibilizado no Youtube:

A rainha era uma mulher extremamente forte, poderosa, porém rigidamente reprimida e resignada ao seu papel social, usando o poder que tinha somente dentro das limitações deste papel, sendo emblemática a conversa que tem com o pai de Mérida quando este tenta lhe ajudar a falar com a filha e se espanta quando ela deixa escapar, como se falando com Mérida, que ela também, apesar de estar agora bem casada, teve seus receios ao ser obrigada a casar, mas acabou casando e ficou tudo bem.

A jornada desta mãe e desta filha para a desrepressão é o foco do filme, Mérida aproveita as lições da mãe quando necessário, usando sua presença feminina e porte ao cruzar o pátio cheio de guerreiros brigões, fazendo-os parar de brigar com sua majestosa presença, impostando sua voz ao fazer seu discurso, como sua mãe lhe ensinou e, divertidamente, usando a técnica do pai, gritando para fazê-los parar de falar quando quer. Mérida aceita e utiliza tanto as lições da mãe quanto as do pai para conseguir seus objetivos.

Interessante notar que o pai de Mérida a apoia e, naqueles tempos tão perigosos, diz que “lutar é fundamental, não importa se ela é uma lady ou não”.

Vemos este paizão apoiando Mérida ao longo de todo filme e neste clip da Pixar, disponível no Youtube, vemos como ele dá a Mérida lições de esgrima, escondido da mãe.

Os irmãos de Mérida a admiram, como pode ser visto no trecho onde ela conta que bebeu água na Cascata de Fogo e a ajudam ao longo da história.

Também é interessante ver que Mérida não se amedronta frente aos outros guerreiros e ao pai, enfrentando-os e até cruzando espadas com o pai e impedindo-o de machucar a mãe-ursa. Quantas meninas, héteros perfeitamente identificadas com seu sexo biológico, não sonham a mesma coisa ao serem ameaçadas e/ou verem seus entes queridos, inclusive suas mães submissas sendo ameaçadas/espancadas por este mundo afora?

Mulheres inconformadas com a imposição social de seu papel de gênero não são necessariamente homossexuais e muito menos transexuais, muitas de nós somos mulheres heterossexuais e gostamos muito de nosso próprio sexo biológico – e mais ainda de nossa capacidade de termos orgasmos múltiplos, só quem já sentiu sabe como é bom – e nos sentimos atraídas pelo sexo oposto. “Cheiro de homem” nos encanta e excita. Queremos ter a liberdade de, além de fazer sexo com nosso “príncipe encantado”, poder viver, trabalhar e até lutar ao lado dele. Queremos ter os mesmos direitos e deveres de nossos parceiros, não sermos nossos parceiros.

Não dá para saber se a Valente Mérida é heterosexual ou homosexual, pois isso não fica claro no filme, o foco é a relação dela com a mãe e a sociedade machista e repressora, mas dá para saber que ela é uma mulher, não um transexual, e que está inconformada com seu papel social de gênero, não quer ser reprimida e resignada a seu papel social de mulher, como a mãe, mas livre para cavalgar e usar arco e flecha ou espadas, subir em montanhas e o que mais quiser.

Para pensar: geralmente quando uma mulher heterossexual tenta se insurgir contra o seu papel de gênero socialmente imposto (redundância proposital), uma das violências que sofre é a tentativa de lhe atribuírem estigmas que não lhe são realistas, como ser homossexual ou transexual. Ela não quer se submeter a seu papel de mulherzinha, então tentam lhe roubar a própria feminilidade, caluniando-a com o estigma homossexual / transexual que não lhe pertence.

É nesse ponto que identifico o desserviço a nós mulheres e aos transexuais, pois a resenha inicial sobre Valente reduz o sofrimento destes ao simples inconformismo com o papel de gênero e nos rouba a possibilidade de sermos mulheres héteros, femininas e valentes inconformadas ao papel de gênero.

Várias mulheres ao longo da história mereceram o título de “guerreira” e não “guerreiro”, como por exemplo: Joana d’Arc, Anita Garibaldi, Joana Angélica, e mais diversas, entre as quais uma lista pode ser vista aqui, o de “heroína” e não “herói”, como Amélia Earhart, Rosa Parks, Eva Perón, Aung San Suu Kyi e tantas outras. Além disso, também existem os termos “pioneira” para designar mulheres como Marie Curie, Chiquinha Gonzaga, Ada Lovelace, Florence Nightingale etc., sem contar as mulheres identificadas ao longo da história com os termos “lutadora”, “desbravadora”, “escritora”, “autora”, “professora”, “astrônoma” etc. Interessante notar que “Valente” admite ambos os gêneros.

Repetindo-me propositalmente: Mérida não tem problemas com seu corpo, até quando escala montanhas e está sozinha ela não dá qualquer demonstração de não aceitá-lo. Ao contrário, sua feminilidade é enfatizada por usar vestidos longos sempre, até cavalgando e escalando, e ter seus longos cabelos esvoaçando ao vento. O filme é muito feliz na sutileza com que aborda o não conformismo, tanto de Mérida com seu papel social, quanto de sua mãe, com o corpo de ursa. Penso que é um filme que ajudará gerações de crianças, tanto héteros quanto homo e transexuais a serem mais assertivas em suas vidas e terem a noção de que podem sim serem diferentes, que não precisam se submeter ao que a sociedade lhes impõe.

O prêmio de Mérida ao final do filme não é o príncipe encantado, é a liberdade de ser quem ela é.

Eis mais algumas definições, a grosso modo, só para esclarecer um pouco mais as diferenças e semelhanças sobre a diversidade sexual e de comportamento que há por aí:

  • Heterossexual é a pessoa que se identifica com o próprio sexo biológico, gosta de ser homem ou mulher, gosta de ter o próprio genital, gosta de seus caracteres secundários (barba, seios etc.) e sente atração sexual e emocional pelo sexo oposto ao seu. Pode ou não se conformar com seu papel de gênero e, no caso de não se conformar, participar de movimentos feministas, por exemplo.
  • Homossexual é a pessoa que se identifica com o próprio sexo biológico, gosta de ser homem ou mulher, gosta de ter o próprio genital, gosta de seus caracteres secundários (barba, seios etc.) e sente atração sexual e emocional pelo mesmo sexo que o seu. Pode ou não se conformar com seu papel de gênero e, no caso de não se conformar, participar de movimentos feministas, por exemplo.
  • Bissexual é a pessoa que se identifica com o próprio sexo biológico, gosta de ser homem ou mulher, gosta de ter o próprio genital, gosta de seus caracteres secundários (barba, seios etc.) e sente atração sexual e emocional tanto pelo sexo oposto quanto pelo mesmo sexo que o seu. Pode ou não se conformar com seu papel de gênero e, no caso de não se conformar, participar de movimentos feministas, por exemplo.
  • Transexual é a pessoa que não se identifica com seu sexo biológico, desejando ter o genital do sexo oposto e ser do sexo oposto, não importa o tipo de atração sexual que sente, ou se sente. Seu sofrimento é muito maior do que a simples inconformação com um papel social de gênero ou do que simplesmente sentir-se atraído por pessoas do próprio sexo.
  • Travesti é a pessoa que veste roupas do sexo oposto, seja temporariamente, seja por longo tempo, o objetivo é a excitação sexual. O travesti pode gostar muito do próprio genital, de ter um pênis, sendo atraído por homens ou por homens e mulheres. Não confundir com travestismo transexual, quando o transexual veste roupas do outro sexo por identificar-se com ele. O travesti tem forte impulso sexual, o transexual geralmente não tem impulso sexual forte.
  • Crossdresser é a pessoa que se veste como o sexo oposto, seja por que motivo for, apenas por brincadeira, por profissão, por gostarem etc. O rapaz que usa saia como curiosidade e protesto social, mas é homem hétero e gosta de mulher, é/está crossdresser. Mulan, outra forte princesa Disney, foi crossdresser por necessidade, para proteger o pai disfarçou-se de homem e entrou no exército, mas nunca deixou de ser mulher e, no caso, bem mostrado no filme, heterossexual.

Sugiro ver este link da Wikipédia para entender mais sobre travestismo, pois há muito mais diversidade do que imaginamos e esta página tem alguns exemplos e definições ótimos.

Links

3 comments

  • Olá Thiago, dá para colocar um adendo antes dos links?

    Adendo:

    Ah, talvez alguém imputasse o estigma irrealista de prostituta, se Mérida quisesse amar, mas não se submeter ao casamento e à perda de sua liberdade, pois na época mulher casada era propriedade do marido… Muito chato este preconceito contra a mulher: se e não se mostra amando, por ser muito jovem ou reservada, é homo ou trans, se ela se revela amando, mas livre, sem casar, é prostituta… Quando a mulher vai poder ser livre, sem precisar arcar com estas classificações irrealistas?

    Todos tem direito à própria identidade e a ser quem são, sejam homens, mulheres, heterossexuais, homossexuais, transexuais, adultos, crianças, idosos, negros, brancos, índios, mestiços, religiosos, ateus, agnósticos, de qualquer nacionalidade, profissão etc. etc. etc. Desde que não prejudique aos outros. Cada um tem seu caminho, seu aprendizado e consequências pessoais e públicas por ser quem é.

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