Um sonho dentro de um sonho [Resenha]

Comecei a ver o filme Um Sonho dentro de um Sonho (Slipstream, 2007) percebendo que se tratava de algo cronologicamente desconexo. Pelo título em português, imaginei que a sucessividade descontínua, evidente logo no início do filme, deveria se explicar por uma aparente confusão entre realidade e sonho. Provavelmente o protagonista presenciaria duas realidades simultâneas, o mundo desperto e o mundo onírico.

Pensei que talvez o filme tivesse algo de semelhante com Waking Life (2001) e suas elocubrações no mundo dos sonhos. Mas fui me dando conta de que ele tinha mais a ver com 21 Gramas (21 Grams, 2003), com sua trama em formato de quebra-cabeça que só vamos entender do meio para o final do filme, reconstituindo mentalmente a ordem lógica das tomadas. Porém, passei a pensar que essa estranha obra de Anthony Hopkins se assemelhava mais ao surrealismo de David Lynch, como em “Twin Peaks” (1990) ou A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997). Outro engano.

Um sonho dentro de um sonho

Se, como nos filmes de Lynch (que, aliás, dirigiu um belíssimo e não-surreal filme com a participação de Anthony Hopkins, O Homem Elefante (The Elephant Man, 1980)), o filme instiga o expectador a procurar desesperadamente um sentido cronológico e lógico para a trama, aqui temos alguns elementos, presentes no próprio universo da obra, que nos fazem achar que é inútil tentar desvendar qualquer coisa.

Trama 0
Atuação 5
Diálogo 4
Visual 5
Trilha sonora 3
Reflexão 3

O que fica (mais ou menos) claro em certo momento é que, quando a história está focada em Felix Bonhoeffer (o roteirista interpretado pelo próprio diretor, Hopkins), há interferências constantes dos próprios pensamentos dele, representadas por flashes.

Em certo momento, a história sofre uma reviravolta. Paradoxalmente, essa reviravolta ocorre com a trama ganhando mais sentido. Os flashes diminuem consideravelmente e não há cortes de cena durante muitos minutos.

Descobrimos que se trata de um filme (dentro do filme), cujo roteiro é de Felix Bonhoeffer, mas que, nessa cena contínua e sem flashes, sofreu muitas intervenções de um dos atores, que resolveu roubar a cena. Bonhoeffer é chamado para restituir o roteiro, e aí recomeça a confusão para o expectador. Os personagens mudam o tempo todo de papel dentro da história, em um momento, Gina é atriz no filme roteirizado por Bonhoeffer, em outro momento, ela é sua esposa.

Então começa a ficar mais claro que grande parte do que estamos vendo nesse filme só existe na mente de Felix Bonhoeffer. Ele vai criando enredos, baseando-se em coisas que vê ao seu redor, e até participa da história que ele mesmo cria. Mas parece que ele não tem muito controle sobre sua própria percepção da realidade: a ficção que inventa e a realidade que vive se misturam de forma perturbadora.

Uma resenha dentro de uma resenha

Essa foi o único jeito de escrever uma resenha sobre Um sonho dentro de um sonho. Não há o que desvendar, não se trata de um filme policial nem de um enredo em forma de quebra-cabeças. O que se pode entender desse filme é que (parece que) ele reflete o processo de criação do próprio roteirista e diretor, ou seja, o processo criativo de Anthony Hopkins e sua relação com a própria história.

Isso se dá não só no reflexo que o filme representa da construção da obra (o que é inevitável, e vai neste caso ao ponto de a esposa de Hopkins interpretar a esposa de Bonhoeffer), mas também no sentido inverso. Por exemplo, quando o filme deixa de focar em Felix Bonhoeffer, é justamente quando a história parece mudar de rumo, quando um de seus personagens ganha vida e muda o roteiro. Inesperadamente, as coisas voltam ao normal e, quando Bonhoeffer reassume o controle de seu roteiro, o filme se torna, outra vez, meio louco.

Ainda fiquei sem entender a fundo o que a menção a Edgar Allan Poe quer dizer. É que um personagem misterioso comenta que a forma de Felix Bonhoeffer pensar lembra o poema A Dream within a Dream (Um Sonho dentro de um Sonho), de Poe. Em vários trechos do filme, aparecem corvos, lembrando um outro poema deste autor, The Raven (O Corvo). De qualquer forma, entendo que a primeira referência é óbvia, já que estamos diante de um filme em que é impossível ter certeza do que é sonho e do que é realidade.

Take this kiss upon the brow!
And, in parting from you now,
Thus much let me avow-
You are not wrong, who deem
That my days have been a dream;
Yet if hope has flown away
In a night, or in a day,
In a vision, or in none,
Is it therefore the less gone?
All that we see or seem
Is but a dream within a dream.

I stand amid the roar
Of a surf-tormented shore,
And I hold within my hand
Grains of the golden sand-
How few! yet how they creep
Through my fingers to the deep,
While I weep- while I weep!
O God! can I not grasp
Them with a tighter clasp?
O God! can I not save
One from the pitiless wave?
Is all that we see or seem
But a dream within a dream?

Outra referência a que foi dada muita ênfase é o filme Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers, 1956), do qual ouvira falar depois que assisti à série Invasão (Invasion, 2005). Talvez eu compreenda algo mais depois que vir esse clássico do terror hollywoodiano… ou talvez fique ainda mais confuso.

Comentários sobre a avaliação

A tabela de avaliação acima precisa de comentários. Dei nota zero à trama, não porque seja ruim (neste caso, a nota teria sido 1), mas porque ela é difícil ou impossível de divisar. É uma sequência psíquica de eventos. Por isso, o zero quer dizer que, no caso deste filme, o quesito trama não se aplica. O próprio filme diz isso numa cena de engarrafamento em que um homem sai do carro enfurecido com a buzina do motorista que vem atrás, atirando em vários pessoas e gritando:

We lost the plot! [Perdemos a trama!]

Já os diálogos são bons, são fluidos, mas… como o resto do filme, são meio que um monte de frases jogadas, sem pistas de como serem conectadas entre si.

A atuação e o visual, que são, digamos os aspectos mais técnicos do filme, são excelentes, por isso mereceram nota máxima. Mas não lembro de nada da trilha sonora, o que pode ser um ótimo sinal (por um lado, ela pode ser tão sutil que nos faz prestar mais atenção à história do que à música) ou um péssimo sinal (por outro lado, a trilha sonora era tão sem graça que meu inconsciente me fez ignorá-la). Por isso, uma nota média.

Avaliei a reflexão da mesma forma, pois, se por um lado o filme permite uma miríade de pensamentos e conexões com outros temas, ele o faz mais porque estimula de modo caótico e aleatório o cérebro, e não através de uma desconstrução crítica de ideias sobre um tema específico. Em suma, é ruim e bom ao mesmo tempo. Portanto, 3.

2 comments

  • Acho interessante isso que vc está fazendo com os posts.
    Fica interessante duas vezes porque a 'essência' do blog para mim não mudou, continua sendo um espaço para construir ideias, aprender e ver as coisas de um ponto que muitas vezes eu não veria, e pra completar ainda deixa no ar aquela vontade boa de ver o filme e comparar com a resenha.

    Não conheço esse filme, e pra ser bem sincero o meu conhecimento sobre cinema é quase nulo, mas em um primeiro momento fiquei com o pé atrás… ficar perdido na trama não é uma coisa que me agrade, heheh, por outro lado talvez existam pontos no meio dessa confusão que me chamem a atenção pra alguma coisa, afinal de contas em muitos momentos da vida a gente acaba vendo e refletindo coisas interessantes em curtos flashs de um contexto que pode parecer confuso.

    Grande abraço Thiago!

  • Bem, @Samuel, eu até esqueci de dizer na resenha que o filme é bom de se ver. Li por aí na net que um famoso crítico de cinema norte-americano, Roger Ebert, disse que o filme, apesar das características experimentais, é uma obra para ser apreciada sem grandes pretensões, por seu valor estético.

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