O Nordeste e o Bolsonazifascismo

O primeiro turno da eleição presidencial de 2022 foi marcado pela predominância de eleitores de Lula (PT) na Região Nordeste. Esse fato provocou uma reação xenofóbica por parte de muitos bolsonaristas do Sul e Sudeste. Esse fenômeno estranho em que o discurso xenofóbico se dirige a concidadãos que compartilham o mesmo território nacional chama nossa atenção e nos faz refletir sobre o problema do bolsonarismo enquanto manifestação da práxis fascista.

Vou tentar esboçar uns pensamentos aqui do ponto de vista de quem é leigo no assunto. Há outros cientistas sociais e historiadores com mais propriedade para discorrer sobre, mas eu me sinto impelido a compartilhar esses pensamentos porque também é uma forma de expressar indignação.

Uma das bases do fascismo europeu é um ufanismo que se baseia, entre outras coisas, numa emergência étnica e numa disputa territorial. Mussolini queria retornar à glória da raça romana e defendia que ela voltasse a ocupar o território conquistado pelo Império Romano. Já o nazifascismo alemão pretendia retornar à glória da raça “ariana” nos seus tempos de dominação do Sacro Império Romano Germânico (o mítico Primeiro Reich). Em ambos os casos, existe a ideia de uma ancestralidade étnica e territorial bem localizada (ao menos no imaginário).

(Eu escrevi mais sobre Fascismo no texto O Império Galáctico e o Fasicmo.)

Mas, no Brasil contemporâneo, o fascismo se pinta com cores bem diferentes e é bem mais complicado, elegendo como figura influente o político Jair Messias Bolsonaro (PL) e resgatando traços tanto do fascismo italiano quanto do nazismo hitlerista. Por isso faz sentido chamar esse fenômeno de Bolsonazifascismo, termo que tem sido usado desde pelo menos outubro de 2018 (ou seja, entre o primeiro e o segundo turnos da última eleição presidencial) nas redes sociais por opositores do governo Bolsonaro.

No processo de emergência étnica que caracteriza os diversos fascismos, entra o processo de territorialização, fenômeno definido pelo antropólogo Paul E. Little como

o esforço coletivo de um grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu “território” ou homeland (cf. Sack 1986: 19). Casimir (1992) mostra como a territorialidade é uma força latente em qualquer grupo, cuja manifestação explícita depende de contingências históricas. O fato de que um território surge diretamente das condutas de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um produto histórico de processos sociais e políticos. Para analisar o território de qualquer grupo, portanto, precisa-se de uma abordagem histórica que trata do contexto específico em que surgiu e dos contextos em que foi defendido e/ou reafirmado. (LITTLE, p. 3-4)

Essa territorialidade se baseia numa cosmografia própria ao grupo social em questão.

“A cosmografia de um grupo inclui seu regime de propriedade, os vínculos afetivos que mantém com seu território específico, a história da sua ocupação guardada na memória coletiva, o uso social que dá ao território e as formas de defesa dele”. (Idem, p. 4)

Portanto, a territorialização do fascismo no Brasil não tem exatamente uma referência própria, pois não é possível ignorar que o território brasileiro era ocupado por povos indígenas no passado pré-colonial e não por brancos cristãos. São estes, e não aqueles, que se mobilizam para idealizar o território da “Pátria”, que seria seu por algum direito de conquistador e não de pertencimento ancestral. Os ancestrais valorizados por esses brasileiros patriotas se encontram em outro continente.

Essa idealização identitária e territorial é eurocêntrica em várias de suas implicações. Ela desconsidera os direitos dos povos originários sobre a terra que lhes foi tomada. Rebaixa as pessoas africanas escravizadas e sua descendência à condição de subcidadãos, a uma posição hierárquica inferior e explorada. Pensa em si mesma como a população brasileira por excelência, legítima herdeira dos colonizadores e exploradores de ascendência europeia, de seus ancestrais de além-mar. E centraliza, nas regiões meridionais desse grande território que chamamos de Brasil, uma suposta verdadeira essência da identidade nacional.

Por diversos fatores sócio-históricos, o Nordeste (junto ao Norte) ficou estereotipado como uma região pobre e dependente economicamente do Sudeste (junto ao Centro-Oeste e ao Sul). Muitos sul-sudestinos idealizam a própria região como lugar de progresso e destino de quem quer melhorar seu padrão de vida. Para esse contingente, as pessoas nordestinas são parasitas.

Dessa forma, as populações indígena, preta e nordestina, integrantes orgânicas da sociedade brasileira, são representadas pelo Bolsonazifascismo como intrusas e indesejáveis (ou desejáveis apenas enquanto puderem ser exploradas como força de trabalho). A perseguição que essas populações sofrem repercute de maneira fantasmagórica o antissemitismo nazifascista.

Na verdade, a glória da raça brasileira é a da conquista e colonização dessas terras, que invisibiliza os povos originários e as pessoas africanas escravizadas. O falseamento histórico (lembrando que o revisionismo histórico é uma das características do fascismo) faz pensar em desbravadores europeus e crioulos conquistando uma terra despovoada, uma natureza “virgem”. Dessa forma, o ufanismo dessa terra “conquistada” se mistura com referências a um passado mais remoto, localizado na Europa, lar de uma cultura supervalorizada, entendida como “mais civilizada”, de uma religião “correta”, de uma estética caucasiana vista como superior.

É um fascismo racista que se manifesta na desvalorização e estereotipia de grupos racializados minoritários, no desrespeito pelas populações indigena, negra e asiática. Bolsonaro nunca fez, por exemplo, alguma piada com os brasileiros que são descendentes de alemães, mas já reproduziu diversos estereótipos ofensivos sobre os grupos não-brancos.

O discurso desse fascismo se constrói em cima de conceitos ideológicos centenários. Justifica o genocídio de povos originários, a violência policial disciplinar contra descendentes de africanos escravizados, a manutenção de relações de exploração entre uma elite de ascendência supostamente europeia e uma classe subalterna supostamente mais mestiça do que ela, o protagonismo masculino, a subordinação feminina, a heteronormatividade que persegue e violenta pessoas LGBTQIA+, o fundamentalismo religioso que persegue e violenta religiões não-cristãs.

É um fascismo ainda mais delirante do que o fascismo europeu. O Bolsonazifascismo só faz sentido para si mesmo, pois toda a autoidealização de uma população branca que representa o verdadeiro povo brasileiro é alvo de piada dos gringos endeusados por ela. Um deboche que se revela quando Trump chama Bolsonaro de Bonoro, um motejo sarcástico bem representado na cena de Bacurau em que estadunidenses, ingleses e alemães metem bala, aos risos, em dois brasileiros iludidos.

O fascismo está intrinsecamente ligado ao Capitalismo em crise. Mas a defesa de uma tradição moralista se confunde com a defesa dos privilégios da classe dominante de explorar o proletariado. E o fantasma do Comunismo surge imponente para servir de bode expiatório, de vilão. E não é à toa que tanto Mussolini quanto Hitler viam o Comunismo como grande inimigo de suas respectivas nações. Os trabalhadores são massacrados pelo recrudescimento da dinâmica exploratória capitalista, e o mais perverso de tudo é quando uma parte considerável desses trabalhadores defende a ideologia capitalista que busca minar seus direitos, como um grande rebanho que se oferece em sacrifício para a instauração do domínio de seus algozes.

É assim que o Bolsonazifascismo acirra as contradições inerentes à sociedade brasileira. O povo brasileiro não é um só povo, são várias populações diferentes, vários grupos antagônicos, várias comunidades com interesses diversos. Uma parte desses grupos é extremamente vulnerável, enquanto a outra detém inúmeros privilégios. E enquanto os setores mais progressistas tentam reconhecer essa sociedade como múltipla e diversa, garantir que todos tenham a liberdade de se expressar e de existir, aqueles que marcham sob a sombra do bolsonarismo tentam calar a expressão e suprimir a existência dos outros grupos, defendendo apenas uma parte da população. E muitas vezes nem percebem que eles mesmos são vítimas das políticas de seu líder.

Referências

LITTLE, Paul E. “Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade”. Série Antropologia: 322. UNB: Brasília, 2002.

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