A cor do brinquedo
A pequena Riley fez um sucesso instantâneo na internet ao demonstrar sua indignação para com o marketing, que manipula os desejos infantis por brinquedos de acordo com o sexo das crianças. Meninas devem querer princesas e brinquedos cor-de-rosa. Meninos devem desejar super-heróis de qualquer outra cor. Afinal, afirma ela, há meninos que querem princesas cor-de-rosa e há meninas que querem super-heróis de outras cores.
Há não muito tempo presenciei uma cena que se repete o tempo todo em nossa sociedade. O pai pede ao garoto que escolha qual a cor do brinquedo ele quer levar; o menino escolhe rosa; o pai responde enfático: “Rosa não, você é doido?! Você é homem! Escolha outra cor.” Há um desejo legítimo da parte de algumas pessoas por objetos que são socialmente proibidos ao seu gênero. Esse desejo é tolhido e moldado para se enquadrar num modelo de masculinidade ou feminilidade.
A menina que estrela o vídeo mostra uma compreensão incomum da estrutura que nos obriga à adequação de gênero, chegando inclusive a mencionar algo que muitas vezes fica implícito e da qual não nos damos conta: até a cor dos brinquedos é dividida por gênero; só as meninas podem ter brinquedos cor-de-rosa (ou algumas outras cores claras e tons pastéis), enquanto os meninos têm muito mais opções de cores para escolher, exceto o rosa (que pode transformar seu filho num gay).
O fato é que o indivíduo humano, seja do sexo feminino ou masculino, possui diversas facetas que compõem seu caráter único. A cultura, a educação e os diversos mecanismos de institucionalização cultivam certas tendências, excluem certos aspectos e introjetam certos outros, condizentes com aquilo que essa mesma cultura considera “feminino” e “masculino”.
Dessa forma, objetos que alguns indivíduos naturalmente desejariam são riscados da lista das possibilidades de realização. Pais não querem que sua filha tenha um comportamento violento, portanto não comprarão carrinhos nem super-heróis para elas. Tampouco querem que seus filhos sejam efeminados, e para evitar isso deixarão de comprar qualquer coisa rósea, bonecas e brinquedos que remetam a atividades domésticas. Essas crianças, forçadas sub-repticiamente a vestir a fantasia de gênero imposta pela sua cultura, reproduzirão os mesmos mecanismos que repetirão o processo sobre os indivíduos da geração seguinte.
Mas a atitude intolerante que espera um certo comportamento de homens e outro de mulheres, bem como uma conduta sexual estritamente hétero, não percebe que os brinquedos têm uma eficácia limitada (considerando inclusive que eles fazem parte de um inventário bem maior da parafernália mercadológico-pedagógica, como roupas, penteados, desenhos animados e atividades recreativo-esportivas, todos classificados por gênero). Muitos pais não conseguem evitar que de vez em quando meninos brinquem com bonecas (eu o fazia quando visitávamos a casa de tios meus e eu brincava com minha prima) ou meninas com super-heróis. Ademais, muitos homossexuais homens não gostam de “coisas de meninas”, e muitos heterossexuais gostam. O fato de eu ter gostado muito de assistir a desenhos animados da Moranguinho na infância não me transformou num adulto homossexual.
O mais interessante ao se refletir sobre tudo isso é que, embora a voz da revolta esteja sendo representada por uma menina, em alguns sentidos os meninos sofrem ainda mais repressão do que as meninas quando o assunto são mercadorias de consumo. Pergunte-se a si mesmo, ou aos seus amigos que são pais, o que é preferível: comprar um carrinho para uma filha ou uma boneca cor-de-rosa para um filho? Por outro lado, as meninas sofrem mais ao terem menos acesso a brinquedos considerados unissex: os pais preferem lhes comprar bonecas a quebra-cabeças e jogos de tabuleiro.
Extrapolando tudo isso, é importante reconhecer que, além do papel pedagógico de conformar identidades de gênero, os brinquedos ajudam a desenvolver habilidades, traços de personalidade úteis para o convívio social e o desenvolvimento pessoal. As bonecas são um simulacro das relações interpessoais, do contexto de socialização doméstico, do cuidado com os filhos (bonecas em forma de bebê). Os bonecos de heróis despertam a imaginação para aventuras e possibilidades diferentes da realidade, o que está relacionado a uma personalidade mais desbravadora. (É interessante notar, por exemplo, uma comparação entre duas crianças das tirinhas de quadrinhos, o menino Calvin e a menina Mafalda. Aquele tem uma imaginação fora do comum, enquanto esta encena histórias realistas e relacionadas à sociedade.)
Seria interessante possibilitar às crianças o cultivo de todas essas habilidades, independentemente de seu sexo. Além disso, valorizar os brinquedos que ajudam a desenvolver atributos mentais, como quebra-cabeças, jogos da memória, livros, que exigem o uso do cérebro. Muitas crianças só brincam com os produtos desenvolvidos para seu gênero, o que acaba empobrecendo a cabeça tanto de meninos quanto de meninas. Diversificar a experiência do indivíduo só o enriquece como ser humano.
4 comments
Moranguinho, hein?! Eu sabia, Thiago, você nunca me enganou… Ré, ré, ré!
Agora falando sério: também vi, na minha infância, vários desenhos que seriam, em tese, ligados ao universo feminino (e gostava muito deles): Ursinhos Carinhosos, Cavalo de Fogo… Até que me peguei vendo Jem… Aí vi que algo estava errado, rs. De verdade: percebi um contexto muito "garota" no desenho, o que não me motivou a vê-lo mais. Não por qualquer oba-oba heterossexual (eu só tinha 11 anos!), mas, até hoje, dá pra perceber quando um filme se estreita a "agradar" um universo do sexo: ou filmes "brutos" para homens ou filmes "mulherzinha" para mulheres. Em outras palavras: esse tipo de redução acaba por diminuir a própria obra em si, como acho ter acontecido com Jem (ou, mais recentemente, no péssimo "Comer, rezar, amar"), independente de ser para um sexo ou para outro!
Isabela, desde bebê, jamais teve só coisas só da cor rosa (fiz questão de pintar-lhe o quarto com uma cor neutra pastel, que poderá perfeitamente servir para um possível segundo filho homem) e brinca com meus carrinhos tranquilamente (e convive com um vasto universo de super-heróis, uma vez que sou colecionador), sem problemas! E ainda não vi menininha mais meiga…
Adorei a Riley: contestadora e consciente, não será fácil manipulá-la de jeito nenhum, rs!
Um abraço, caro (e mais que sumido) Thiago!
P.S.: estás ganhando quanto da Saraiva?! Também quero patrocínios, ré, ré!
Ainda me lembro vagamente de uma história da Moranguinho em que ela participava de um concurso de culinária…
Na infância eu nem pensava em Cavalo de Fogo como desenho de menina. Acho que hoje em dia os desenhos ficaram ainda mais dicotomizados, segregados em gêneros. E acho que a perda de qualidade de muitos deles se deve em grande parte a isso.
A propósito, Riley é a Mafalda de carne e osso.
Ah, e até agora não ganhei nada da Saraiva, ainda estou esperando os primeiros centavos… isso só funciona mesmo para sites muito populares, com milhares de visitas por mês…
O problema desse "Muro de Berlim" entre os gêneros é exatamente o que cada criança perde no seu potencial interno, na maturidade emocional e na habilidade interpessoal, como vc citou no texto. Meu filho tem a liberdade de escolher as cores e os personagens que compõem seu universo imaginário e real e posso dizer que ele explora tudo o que considera interessante, sem se limitar ao que seria considerado adequado a um menino. É no brincar que as crianças ensaiam e projetam o que estão assimilando e assim, constroem o mundo. Creio que sem a discriminação e com o auxílio educativo, o futuro adulto terá a chance de compreender o mundo e as pessoas de uma forma mais empática, criativa, reflexiva e abrangente. Esse Homem, eu me preocupo que ele seja.
@Sylvana,
Perfeito! 🙂