Amora

Existe uma carta no Tarô chamada Roda da Fortuna. A Roda da Fortuna simboliza muitas coisas, entre elas a imprevisibilidade, a entropia, o caos que rege o Universo. Podemos entender a Roda da Fortuna, essa roda que giramos para sortear um prêmio (ou para perder o que ganhamos), como um símbolo da impermanência da vida. As coisas nunca permanecem as mesmas, e é por isso que no Budismo se ensina que um dos maiores aprendizados que podemos adquirir é o desapego, e é interessante o fato de um dos principais símbolos do Budismo ser uma roda, a Roda do Dharma ou Dharmachakra, que remete ao interminável vai-e-vem da existência e que nos lembra que tudo muda o tempo todo. Para não sofrer, Sidarta Gautama, fundador do Budismo, ensinou que precisamos nos desapegar de tudo, pois nada permanecerá o mesmo para sempre e, quando as coisas mudam, tendemos a sentir falta de como elas eram antes. A Roda do Dharma, a Roda da Fortuna, nos advertem sobre os altos e baixos por que passamos o tempo todo. Não adianta sermos dramáticos quando estamos no vale da sombra da morte, em algum momento as coisas vão melhorar. Pode ser até que uma esfinge apareça na luz da esperança com uma pergunta que nos force a encontrar uma resposta para nossas dúvidas, ou que um anjo guardião emerja das profundezas da penumbra do sonho para nos abraçar e nos erguer novamente.

Hoje eu quero falar sobre uma esfinge que também é um anjo. Um anjo de olhos verdes e penetrantes, uma esfinge de feições misteriosas e bigodes brancos. Uma pequena mensageira divina chamada Amora. Mas deixe-me voltar para um momento antes de essa criaturinha se chamar assim, o momento de meu primeiro encontro com ela.


Eu estava passando por grandes mudanças em minha vida. Literalmente me mudei (de apartamento), muitas coisas em minha rotina estavam diferentes, e eu estava morando sozinho. Não, eu não estava simplesmente sozinho, eu me sentia só, solitário, carente, apesar de ter parentes próximas morando bem perto de mim. Tinha acabado de sair de um relacionamento de vários anos e tinha muito com que me acostumar. Uma das coisas que não mudou significativamente foi meu trabalho, pois continuei indo e voltando de ônibus. E foi no ambiente de trabalho que começou a história que quero contar hoje.

Eu e um colega de sala estávamos prestes a sair para casa após o expediente, eu iria para a parada de ônibus, ele pegaria seu carro. Neste momento entrou uma outra colega na sala dizendo que uma gatinha acabara de ser resgatada da rua por ela, a bichinha quase tinha sido atropelada e precisava de um lar. A mulher perguntou se algum de nós queria levá-la para casa, nem que fosse só para ela ter um lugar pra ficar enquanto não aparecesse um humano para ser adotado. Nós fomos à sala dela para ver a filhotinha.

Quando olhei para a mesa da colega, vi uma pequenina esfinge de cores branca e preta caminhando em meio aos objetos que a resgatadora acabara de adquirir, um kit completo para o candidato a cuidador. Ficamos ali brincando com a criança, e eu me coloquei a pensar; meu colega disse que não levaria pois já tinha gatos suficientes em casa; então ele olhou pra mim, aparentemente tomado de compaixão e empatia, e disse que, se eu decidisse levá-la, ele me daria carona até minha casa. Eu concordei, mas enfatizei que não ficaria com ela. Foi aí que me aproximei da esfinge e a agarrei pela pele do pescoço, levantando-a. As colegas se assustaram, acharam que eu estava machucando a pobrezinha, mas expliquei que era por aí que as mães seguram seus filhotes com a boca, e estes se sentem seguros e calmos. De fato, ela se encolheu todinha, recolheu as patinhas, enrolou a cauda, como que em posição fetal, e falou este enigma:

“Qual é a dúvida que surge da necessidade?”

Meu colega interrompeu dizendo que ela estava parecendo uma personagem d’A Era do Gelo chamada Amora, uma filhote de mamute que fica pendurada e encolhidinha. Não peguei a referência na hora, pois não conhecia, mas esse detalhe será inusitadamente importante mais tarde.

Pegá-la em minha mão daquela forma foi um dos erros mais acertados da minha vida. Eu a cativei com esse gesto, e ela me cativou de volta, e acho que já dá pra imaginar o rumo que essa história vai tomar… Mas não me comprometi de imediato, aceitei levá-la, já com um pacote de ração, uma caixa de areia e um brinquedinho… e nessa brincadeira ela me adotou, tomou conta do meu lar e do meu coração. Nunca mais voltou a ver as pessoas que a resgataram… porque eu quero acreditar que o verdadeiro resgate foi outro. Aquele pequeno anjo esfíngico me salvou da solidão.


Aquela gatinha era tão pequena, devia ter algumas semanas de vida, idade muito precoce para ser separada da mãe. Ela chegou no apartamento já se sentindo a dona do lugar. Com um sorriso, ainda lembro de vê-la explorando contente o ambiente, com a cabeça e a cauda empinadas, marchando com as patinhas curtas e exclamando:

“Encontrei meu lar.”

Tive que aprender muitas coisas sobre como cuidar de uma bichaninha, e minha irmã, que prontamente adorou a ideia de ser tia de gata, esteve presente e deu muito apoio a nós dois.

Mas deixe eu falar um pouco sobre a aparência dessa filhotinha. Como eu mencionei acima, ela tem pelagem preta e branca, mescladas de forma irregular no tronco e nas patas. Mas seu rosto chama muita atenção pela simetria e harmonia das formas das cores. O topo da cabeça tem pelo preto que forma como que uma máscara contornando os olhos, bem parecida com a máscara da Mulher-Gato das histórias em quadrinhos. Mas o detalhe mais charmoso é o queixo preto, parecendo uma barbixinha. Como era muito novinha, seus olhos ainda não tinham a cor definitiva e eram bem escuros. Ainda hoje guardo algumas fotos dos primeiros dias em que ela me deixou morar com ela. Na minha foto favorita, ela está deitada confortavelmente, dorminhocamente, na palma da minha mão.

Então veio a necessidade de ter um nome para eu chamá-la, e elenquei algumas ideias. Pensei em Selina, que é o nome verdadeiro da Mulher-Gato, mas não achei muito apelativo. Decidi lhe dar um nome de acordo com a cor de seus olhos, mas, como disse antes, a cor ainda era indefinida, e eu não tinha certeza se eram verdes ou roxos. Assumi que eram verdes, cor da fruta da oliveira, e considerei chamá-la de Azeitona. Passei algum tempo com esse nome em mente, mas certo dia observei que seus olhos me pareciam ser, definitivamente, roxos, como amoras. Amora, então? Além de ser a cor dos olhos dela, era um nome mais simples e bonito do que Azeitona. Amora, então. Estava batizada.

Quando disse a meu colega que a gatinha agora se chamava Amora, ele ficou lisonjeado mas disse que não queria impor o nome, tinha sido só uma sugestão. Eu tinha esquecido completamente o comentário que ele tinha feito sobre a personagem d’A Era do Gelo! O mistério dos olhos da esfinge foi resolvido: desde o início ela já tinha um nome predestinado e estava dando pistas para sua descoberta.

De fato, Amora pregou uma peça em mim. Depois de ter me feito batizá-la com uma referência à cor de seus olhos, estes simplesmente… mudaram! Quando clarearam, descobri que o tempo todo aqueles olhos eram verdes, com um certo tom amarelado, duas pedras preciosas que me olhavam com carinho toda vez que a pegava no colo e toda vez que escalava minha calça para chegar mais perto de mim. É, não havia mais volta, já estava batizada com um nome que sempre me lembra do amor que construímos.


Quando completou seis meses de vida, o veterinário de Amora, que a atendia em domicílio, disse que já era tempo de castrá-la, se fosse o caso de eu optar por submetê-la à cirurgia. Seguiu-se um dos capítulos mais tensos dessa história.

Levá-la à clínica veterinária foi um pouco difícil, ela ainda não tinha saído de casa desde que tinha chegado, e ficou com muito medo. Eu tive medo também, de ela fugir, e estava bem nervoso. Mas o que me deixou ainda mais nervoso foi o momento de deixá-la lá para ser cirurgiada. “Vai ficar tudo bem”, eu sussurrei para ela, mas ela me olhava com um misto de medo e de resignação, e sussurrou de volta:

“Não se preocupe, pai, já enfrentei a morte antes, não é uma faquinha que vai acabar comigo.”

Eu a trouxe para casa quando ela recebeu alta no mesmo dia, com a recomendação de manter a roupinha cirúrgica, que seguraria os pontos até a cicatrização, e não deixá-la subir em nada. Esse dia foi uma prova de paciência e teste da minha capacidade de cuidar. Amora não conseguia ficar quieta e o tempo todo dava um jeito de se livrar da roupinha. A noite foi um terror, ela ao meu lado na cama e eu mal conseguindo dormir, com medo de ela se levantar a qualquer momento e burlar as recomendações. O tempo todo eu pensei em minha mãe e meu pai, preocupados comigo toda vez que eu fazia uma cirurgia, e percebi o trabalho que tinha lhes dado. Para mim foi uma aula prática de paternidade.

No dia seguinte decidi hospedá-la na clínica, para não ter tanto estresse, e ela ficaria lá por dois dias. Fui visitá-la na manhã seguinte ao check-in, e chorei quando a vi, deitada sozinha numa jaulinha. Ela olhou para mim, parecendo cansada e tranquila, e disse:

“Estou sendo bem cuidada, pai. A propósito, antes de sair, veja se consegue fazer aquele cachorrão calar a boca.”

Ela não estaria comigo em casa, nem dormiria comigo, e este foi o primeiro momento em que senti saudades de Amora. Saudade de tê-la deitada ao meu lado no sofá, saudade de brincar com ela com um apontador de laser, saudade de sentir o pelo macio de suas costas passando por minha mão quando eu estendia meu braço ao lado da cama… Depois disso ela nunca mais precisou ficar internada, mas as mesmas saudades se repetiram todas as vezes que eu viajei e ela teve que guardar nosso lar, esperando por mim, eu esperando por ela.

A família cresceu quando minha então noiva veio morar conosco. Amora demorou a aceitá-la, mas com o tempo a adotou também e passou a chamá-la de mãe. Após alguns anos chegou seu irmãozinho, um gatinho branco e caramelo. Este foi bem mais difícil de ser aceito. No dia em que ele chegou, Amora ficou extremamente agressiva. Tentei acalmá-la segurando-a, ela avisou que eu não tentasse, não escutei seus avisos, e ela arranhou meu rosto com ferocidade magoada.

“Vocês me traíram, quem autorizou trazer essa coisa aqui pra minha casa?!”

Esse momento marcou meu rosto por alguns dias e meu coração para sempre; ainda me lembro da raiva que ela sentiu de mim e de como fiquei triste, mas as gatas logo esquecem essas coisas.


As esfinges são mensageiras de enigmas e, como mensageiras aladas, podem ser também chamadas de anjos. Amora apareceu na minha vida como um anjo guardião para me consolar num momento difícil, e sou eternamente grato a ela. Sinto uma conexão especial com ela, quando ela avisa minha esposa que estou chegando em casa; quando ela se deita bem tranquila em cima do meu pé para me fazer companhia; quando ela escolhe se deitar em cima de um livro que estou lendo ou num caderno em que estou escrevendo; quando ela me chama, nas raras vezes em que solta um miado, pedindo pra eu ficar perto enquanto ela come; quando ela olha fixamente para mim e nos acariciamos com os olhos; e nos traços de personalidade que ela puxou a mim… Essa comunhão é um mistério sagrado, que me faz sentir feliz quando ela me acaricia, e angustiado quando ela não está bem, que faz com que ela se aproxime de mim quando estou doente ou deprimido. Eu choro quando penso que um dia ela não estará mais comigo fisicamente, mas seu rostinho e seus olhinhos misteriosos estarão estampados em minha retina, sua voz vibrará para sempre em meus tímpanos, e minha pele sempre terá memórias de seu pelo macio e o calor afetuoso de seu corpo.

Às vezes a Roda da Fortuna gira com o peso de uma pequena esfinge que sobe em cima dela, ou com as patas de um anjo que levantam um de seus lados, fazendo descer o outro. Momentos ruins se vão e dão lugar a novas esperanças, a vida segue como a roda de uma carroça que desce e sobe montanhas. A presença de Amora em minha vida é um fator de felicidade, mas momentos de contentamento  se sucedem a momentos de descontentamento, sinal de que estamos vivos. É muito difícil aplicar na prática os ensinamentos budistas sobre desapego, e talvez uma forma de driblar a angústia da impermanência seja confiar que as boas memórias estarão sempre acessíveis, fazendo parte de nosso presente e nos mostrando o quanto nos fizeram e fazem bem, o quanto nos ajudam a evoluir.

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