O Império Galáctico e o fascismo

Interpretar obras literárias é um trabalho difícil, que exige treino, atenção e pesquisa. O mesmo vale para outras obras narrativas, como cinema e séries de TV. Para sustentar uma interpretação, não dá pra se valer de um ou outro elemento da narrativa, é preciso olhar para o conjunto, para a estrutura e para o maior número de detalhes possível.

Se eu quiser, por exemplo, defender a ideia de que Jornada nas Estrelas (Star Trek) é uma utopia comunista, não posso me basear apenas na ausência do dinheiro na Federação Unida de Planetas. É preciso também demonstrar que o funcionamento dessa federação tem outros aspectos do comunismo imaginado pelo Marxismo, como a ausência de Estado, a distribuição igualitária de recursos e a possibilidade de os indivíduos combinarem a cooperação coletiva com a autorrealização pessoal, entre outros.

Do mesmo modo, quando fãs de Guerra nas Estrelas (Star Wars) que declararam voto no candidato de tendências fascistas dizem que o Império se assemelha à manutenção de uma facção no poder por muito tempo e que isso remete aos três mandatos e meio seguidos do PT na presidência, sendo a Rebelião, nesta comparação, um movimento a favor do revezamento político e, portanto, votar no tal candidato seria positivo, eles precisam sustentar essa interpretação através de outros elementos da narrativa fictícia e associações com elementos do cenário real da política brasileira.

De fato, é positivo que o poder não fique monopolizado por um partido, e o fato de muitos concordarem com isso, inclusive na esquerda, torna o argumento dessa interpretação convincente (através do uso de uma falácia lógica). Porém, se buscarmos os detalhes de como se dá a história política em Star Wars, vemos que comparar o Império com o governo do PT e a Rebelião com o eleitorado de Bolsonaro não se sustenta.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que Lula e Dilma Rousseff foram eleitos democraticamente, através da vontade da maioria do eleitorado, enquanto Palpatine se manteve no poder por mais de 20 anos através da imposição da força militar, sem a possibilidade de se eleger um novo governante. Dessa forma, a oposição ao governo petista pôde ser feita através do voto (se houve três reeleições, não foi imposta de cima para baixo), enquanto a oposição ao Império Galáctico só poderia ser feita através de uma Rebelião agindo contra as leis vigentes. Por outro lado, uma comparação que vê no Império uma tendência fascista e de direita e na Rebelião um viés de esquerda, nos termos como essa dicotomia se manifesta no Brasil, faz mais sentido e se sustenta por uma série de elementos.

Antes de tudo, preciso deixar claro que, quando falo das tendências de esquerda, não estou me referindo ao PT, aos petistas ou a líderes como Lula e Dilma. Fazer isso seria cair num equívoco que tem sido mantido por um pensamento de oposição à esquerda, que a considera como homogênea e a descreve como o extremo oposto dos ideais da extrema direita (mesmo que não elabore dessa forma). Meu objetivo com este texto não é defender o PT (que, a propósito, penso que já deveria ter aberto mão de monopolizar o governo), muito menos desenhar o PT como se fosse análogo à Rebelião de Star Wars. Esta metáfora também não se sustenta.

Mostrando que também não dá pra defender uma analogia entre os rebeldes e os bolsonaristas, a teia de analogias que farei a seguir será traçada com base em três eixos: o fascismo histórico (Itália de Mussolini, Nazismo alemão, Franquismo espanhol etc.); o fictício Império Galáctico de Guerra nas Estrelas; e a campanha e governo de Jair Bolsonaro, eleito em 2018 no Brasil.

Revisionismo histórico

Uma das primeiras coisas que os estados fascistas do século XX fizeram foi construir a narrativa de um passado idealizado em que a nação era pura e gloriosa e seu povo era autêntico e livre de influências externas. Nesse discurso, enfatizava-se o perigo da perda da ordem harmoniosa de outrora, a deturpação dos valores da sociedade e o risco de que sua cultura deixasse de ser o que sempre foi. O Fascismo de Benito Mussolini remetia ao passado grandioso de Roma para justificar um projeto expansionista com o objetivo de colonizar as regiões perdidas pelo Império Romano. O Nazifascismo de Adolf Hitler romantizava a pureza racial ariana de um reino germânico antigo que precisava ser reconquistada. O objetivo de ambos era apelar para o ufanismo de seus respectivos povos como fomentador da instauração de um Estado que faria de tudo para retomar a glória perdida.

No universo de Star Wars, o Império Galáctico foi instaurado com base numa justificativa fantasiosa. O senador Palpatine, que perpetrou o golpe, louvava uma suposta época de ouro da República Galáctica, quando todos os povos eram mais felizes e livres, e que se perdeu com a corrupção do Senado e da Ordem dos Cavaleiros Jedi (que deveriam ser os protetores dos valores da República). Dessa forma ele encontrou amplo apoio de diversas facções para criar um governo totalitário que supostamente seria o agente da recuperação dessa autêntica República.

É interessante ver como Bolsonaro se utilizou da mesma estratégia em dois níveis. Primeiro, ele idealizou um Brasil tradicional que tem valores morais cristãos e capitalistas, que não tem influências culturais de povos não-brancos e não-cristãos (numa perspectiva bem específica e estreita do que é o Cristianismo) nem de “ideologias” comunistas e de esquerda.

Num segundo nível, ele romantiza o período da Ditadura Militar no Brasil (instaurada em 1964) como um exemplo a ser seguido de como evitar a perda da autenticidade cultural que ele defende. Em seu discurso, a Ditadura foi um período de perfeita ordem e paz, em que os brasileiros eram felizes. Assim, além de propor o retorno a uma suposta era de ouro original, ele deturpa a história ao negar toda a corrupção e arbitrariedade da violência exercida pelo regime militar.

Esse revisionismo histórico se manifesta também ao manipular os registros sobre os eventos do passado e do presente, fazendo parecer que os agressores são vítimas e vice versa, como quando Palpatine, o perpetrador do golpe, se apresenta ao Senado como vítima de uma tentativa de golpe pelos Jedi; quando o povo judeu, milenarmente em posição subalterna nas sociedades europeias, é retratado por Hitler como um grande perigo que ameaça destruir o povo alemão; quando a população brasileira indígena, negra, LGBTQI+ e demais minorias sociais que são consistentemente perseguidas e que ainda buscam garantir minimamente seus direitos de cidadania, é pintada por Bolsonaro como uma horda que tenta se apossar de tudo o que os grupos privilegiados possuem.

Idolatria e personalismo

Os regimes fascistas são geralmente centrados na figura de um líder totalitário, entendido por seus apoiadores como um indivíduo capaz de estabelecer a ordem social desejada. Embora estabeleçam seu poder através do uso da violência, eles são antes de tudo figuras carismáticas, amados por seus seguidores por características pessoais, como eloquência, sinceridade ou por personificar um modelo de virilidade visto como ideal para um líder. Adolf Hitler usou seu carisma e sua retórica para seduzir o povo alemão e foi colocado na posição de liderança máxima na Alemanha. Na Espanha ditatorial de Francisco Franco, o regime e o ideário do governo ficou conhecido como Franquismo, tão importante era a figura do líder.

Palpatine usou estratagemas e lábia para convencer o Senado Galáctico de que dar a ele o poder absoluto para conter os separatistas era a melhor opção, colocando-se enfim como o salvador da Galáxia e líder supremo que traria a ordem a todos os sistemas e espécies. Palpatine foi ardiloso ao ponto de criar uma situação de crise em nível galáctico, só para se mostrar como a única figura capaz de contornar esse conflito.

Do mesmo modo, Jair Bolsonaro construiu para si a ideia de um personagem que carrega características ideais para combater tudo o que uma boa parte da população considera nefasto na política e nos “costumes” do país: agressividade, pró-atividade, coragem para dizer o que precisa ser dito (o que na verdade é apenas a tendência de revelar os obsoletos preconceitos que nossa cultura mantém sobre minorias sociais), a aparência de um homem que, usando frases de efeito, pode resolver o problema da corrupção da política brasileira. Os eleitores de Bolsonaro não parecem enxergar uma proposta de governo, o que eles querem é um indivíduo com essas características e com um determinado discurso para governar o Brasil.

Ufanismo e unidade contra o “separatismo”

Ditaduras fascistas costumam se sustentar pela defesa do nacionalismo, pela manutenção de uma unidade baseada numa identidade, e constroem sua propaganda sobre a ideia de que a degeneração da sociedade se deve a uma divisão causada por um conflito de interesses. Cria-se um tenso clima de medo e terror, a ideia de um inimigo e da necessidade de medidas drásticas para se combater essa ameaça. Foi através de um discurso racista, que via nos judeus e outras “raças” o motivo da degradação da Alemanha, que o Nazismo ganhou forças. Para o Fascismo de Mussolini, na Itália, era preciso combater a ameaça de uma revolução comunista.

Também foi sobre os riscos de um movimento separatista, que ameaçava a unidade da República Galáctica, que Palpatine baseou seu complô, sustentando a ideia de que a própria República e seus defensores (a Ordem Jedi) permitiram que essa cisão ocorresse. Além disso, se observarmos como os integrantes do alto escalão e das fileiras militares do Império são representados, existe uma homogeneidade racial, uma absurda preponderância numérica de humanos, que compõem o núcleo do poder do Império, subjugando os diversos sistemas e planetas habitados por outras raças da Galáxia.

A estratégia de Bolsonaro para ser eleito passou, entre outras coisas, por fomentar a crença de que os governos anteriores criaram um conflito no país e uma ameaça “comunista”, além do perigo de uma certa “ideologia de gênero” que colocaria em risco a hierarquia “natural” entre homens e mulheres e a sexualidade das crianças. Essa “cisão” entre “minorias” e “maioria” corresponderia, na cabeça de muitos, a uma divisão entre esquerda (inerentemente imoral) e direita (defensora moralizante de costumes tradicionais). Vendo essa suposta divisão como a causa da corrupção no Brasil, ele propõs acabar com qualquer tipo de ativismo político que buscasse garantir direitos iguais das minorias sociais, defendendo a ideia de que o país pertence a “cidadãos de bem”, constituintes de famílias patriarcais, heteronormativas, brancas e de classe média.

Seus discursos eivados de machismo, homofobia e racismo não representam apenas suas opiniões pessoais, mas são valores patentes de nossa cultura, ressoam a visão de mundo de seu eleitorado conservador e reacionário e pautam seu próprio plano de governo. Ele não concebe a convivência igualitária entre os diversos grupos, pois afirma que “as minorias têm que se curvar à maioria”.

Total repressão da oposição

Governos totalitários combatem a oposição através de uma sistemática perseguição que envolve a captura e, em muitos casos, a tortura e o assassinato dos inimigos do Estado. A ditadura militar no Brasil, instaurada em 1964, com forte viés fascista e anticomunista, perseguiu, torturou e matou muitos militantes que combatiam o governo autoritário, mesmo que esse combate fosse apenas no nível do discurso e das ideias. Mas tudo começa com a extinção de quaisquer partidos e o estabelecimento de uma única facção ocupando o poder.

Toda a repressão perpetrada pelo Império se fez com a supressão dos movimentos contrários a ele, sendo o poder ocupado apenas pelos sith e pelos militares sob seu comando. Essa repressão se executava na base do uso da violência física, uma verdadeira guerra armada contra a Aliança Rebelde. O Império utilizava a tortura como instrumento para obter informações de seu principal inimigo. Duas cenas importantes da trilogia clássica mostram Darth Vader se preparando para torturar a Princesa Leia na Estrela da Morte, em Uma Nova Esperança, e fazendo o mesmo com Han Solo em Bespin, no filme O Império Contra-ataca.

Bolsonaro deixou muito claro que a oposição teria que se calar (supressão da liberdade de expressão), ser enquadrada como inimiga (e portanto como criminosa) ou sair do país. Já é notório e amplamente divulgado que ele é um ferrenho apoiador da tortura e da guerra civil como instrumento de combate à oposição. Em entrevista, ele já disse com todas as letras: “eu sou favorável à tortura”; em mais de uma ocasião declarou nutrir uma profunda admiração pelo General Ustra, um dos maiores torturadores da Ditadura Militar. Sua visão de governo passa pela defesa do uso da repressão armada, e ele não voltou atrás a respeito de uma afirmação que fez em um de seus comícios: “vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre!”

Militarização

Fortalecer e empoderar as forças armadas faz parte do modus operandi de um governo fascista. Com a justificativa da necessidade de se combater inimigos internos e externos, fomenta-se o alistamento e engrossam-se as fileiras militares a serviço do Estado. Uma das principais características do Fascismo italiano era o uso do exército como instrumento repressor do Estado totalitário, o que foi repetido por outros regimes de extrema direita, como o de Hitler e o de Franco na Espanha.

Uma das primeiras providências de Palpatine ao realizar o golpe sobre a República foi a criação de um imenso exército de clones e o estabelecimento de um governo composto por militares fardados. A militarização do Império era tão importante que foi criada uma Academia Imperial focada em formar soldados, desde os stormtroopers de baixo escalão até os generais da mais alta patente, um corpo hierarquizado responsável por manter a ordem na Galáxia.

Para Bolsonaro, é preciso dar mais poder e privilégios às forças armadas, ao exército e à polícia, e carta branca para que ajam com a máxima violência. Sua fixação com a militarização do país é tão grande que ele propõe transformar escolas públicas em escolas militares, propícias ao aprendizado da obediência e desfavoráveis ao desenvolvimento do conhecimento e do pensamento crítico.

Considerações finais

Durante as campanhas para a eleição presidencial no Brasil, várias pessoas apontaram para a semelhança entre, por um lado, a postura e as propostas de um candidato com tendências fascistas e, por outro, a postura e as medidas do Império Galáctico nas histórias de Star Wars. Um aprofundamento dessa interpretação alegórica revela muitas coisas interessantes, como vimos acima.

Analisando as características da instauração do Fascismo e ditaduras com viés fascista em diversos contextos históricos e vendo como elas se encaixam na história da instauração do Império Galáctico, ao mesmo tempo em que percebemos semelhanças com acontecimentos que antecedem o início do governo de Jair Bolsonaro, entendemos que há muitas semelhanças entre os vilões de Star Wars e o candidato eleito à presidência do Brasil.

Por sua defesa da liberdade de expressão e de existência, da convivência com a diversidade de gênero, sexual e étnico-racial, da cidadania vivida sem o medo e o terror de uma extrema vigilância armada, da possibilidade de escolher democraticamente o governante, aqueles que se opõem ao que esse governo promete ser (e a toda uma onda de violência motivada pelo candidato de extrema-direita que teve início já no período de campanha eleitoral) se assemelham muito mais aos Rebeldes.

Neste texto eu decidi me ater ao Império Galáctico, principal vilão da trilogia clássica (Uma Nova Esperança, O Império Contra-ataca e O Retorno de Jedi) e cuja formação é tema da segunda trilogia (A Ameaça Fantasma, Ataque dos Clones e A Vingança dos Sith). Porém, é possível também ver muitas semelhanças com a Primeira Ordem, assim como os opositores do fascismo se assemelham à Resistência da nova trilogia (O Despertar da Força, Os Últimos Jedi e A Ascensão Skywalker).

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2 comments

  • Rapaz, considere-se carinhosamente abraçado. Que texto, senhoras e senhores, que texto!

    Se me permite uma observação, a Primeira Ordem acaba se tornando uma alegoria da juventude hitlerista, veja que são mais jovens que aqueles Morfs em reunião numa das primeiras cenas de Uma Nova Esperança (1977). O general Hux grita e esbraveja em seu discurso e em suas ordens aos subordinados, como o próprio Hitler fazia. Acredito que a personagem foi construída assim exatamente por tal analogia. Lembro uma conversa entre George Lucas e James Cameron em que Lucas fala que o Império de Palpatine foi pensado a partir do imperialismo inglês, do próprio imperialismo norte-americano em ação no Vietnã.

    Se me permite outra observação, um cena que ficou muito bacana em Rogue One, que, para mim, é a melhor coisa que a Disney fez com a franquia até agora, é o diálogo entre Jyn Erso e Saw Guerrera, quando ele pergunta sobre ver as bandeiras do Império tremulando por toda a galáxia “Você não se importa com a causa?”, ela responde “Não é problema se não olhar pra cima”, ou seja, abaixar a cabeça aí não é apenas literal, é submeter-se à vontade ditatorial do Império. Mas essa frase vem de uma personagem que sofreu por toda a vida sob tal regime, que perdeu a família e sobreviveu como pôde, o que torna a frase perfeitamente compreensível sob o ponto de vista dos insurgentes que perdem suas forças e esperanças em meio à luta prolongada. Vejam que o mesmo aconteceu com o caminho que a Disney escolheu para Luke ao tornar-se um eremita, não diminuindo o valor de sua trajetória, muito pelo contrário, deixou Luke muito mais próximo de seus fãs, muito mais real que aquele Luke, que, recentemente, vimos ao final de The Mandalorian.

    Sou fã de vocês, FAÇAM UMA LIVE !

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