A morte e o texto

O texto, expressão escrita da língua — literário, ficcional, filosófico ou científico —, tem o caráter simbólico da morte. A inércia do texto o faz ter essa cara de epitáfio, que simboliza o signo do qual só se tem a lembrança, evocada em cada leitura, como o morto evocado na memória inscrita na lápide.

O texto científico é conhecimento cristalizado, como a crisálida, letárgica, numa condição de quase morte, e que ressuscita como um ser feérico, quase etéreo como a ideia. A partir do momento em que publica seu texto, o cientista tem em mãos um fruto morto, obsoleto em relação ao conhecimento que está sempre mudando e se aperfeiçoando.

Roland Barthes, na Aula, diz que todo texto literário é libertário, por subverter a ordem da instituição mais repressora — a língua. Ora, liberdade é morte; é na morte que se desfazem os grilhões da dominadora cultura, inevitável para a vida humana. E, na experiência pseudolibertadora do texto — para o autor e para o leitor — pode-se sonhar; e no sono/sonho se experimenta antecipadamente a morte. Pode-se vivenciar uma realidade que ultrapassa a prisão das instituições humanas. Assim, a morte como transformação também caracteriza o texto artístico, que transforma a língua; o texto filosófico/científico, que transforma a realidade.

O texto acaba sendo a principal forma de transmissão de conhecimento em sociedades que conhecem a escrita. Na transmissão pela fala, os saberes se transformam mais rapidamente, porém mais caoticamente. É possível a gradual mudança do conhecimento sistematizado, racional ou artístico, através dos textos, periódicos ou livros. Mas a lentidão, que se sente na leitura de cada texto, na experiência pessoal, é comparável às sucessivas mortes e renascimentos da vida, tanto da matéria quanto da consciência. A sensação, no leitor, da desilusão, da angústia sadia, da solidão, que o conhecimento traz ao descortinar a realidade, da arte ao transformá-la, é a angústia da mudança brusca, da morte.

Não é à toa que a linguagem é feminina, passiva, instrumento do autor para sua paixão. Feminina porque idealmente inerte (e a inércia/morte é feminina; o feminino é inércia/morte), aparece aos humanos como sujeita a eles. Porém, o citado Barthes já disse que, longe de permitir dizer, a língua obriga a dizer. E os homens ficam sujeitos a essa bruxa, prostituta que se aproveita dos indefesos meninos que estão dentro deles. A meretriz(/bruxa) é um dos grandes arquétipos femininos relacionados à morte: a mulher que nega a maternidade, Medéia que mata seus filhos. Mas, além disso, não vamos negligenciar o caráter de mãe/parteira, que dá à luz imagens, idéias, conhecimento, discernimento.

Notas póstumas

Este texto foi publicado originalmente em 14 de dezembro de 2004, na primeira Teia Neuronial. É um exemplo de texto que eu não escreveria hoje em dia, pelos seguintes motivos:

  1. O encadeamento das ideias é desordenado, seguindo o rumo caótico do pensamento em devaneio. Os parágrafos seguem um rumo parecido com o dos veios de um rio, como se a escolha dos afluentes fosse feita ao acaso. As ideias foram jogadas uma depois da outra e não me preocupei em esgotar as alusões e referências.
  2. Há muitas figuras de linguagem expostas numa tentativa de compor um texto literário-filosófico. Abundam as afirmações e escassam os questionamentos. Não deixei muito espaço para a autocrítica nem heterocrítica, e o texto acabou ficando naquilo que ele mesmo descreve: na morte estática.
  3. O que me leva a outro ponto: não tive, quando escrevi esse texto, a intenção de revisá-lo depois. Qualquer coisa que viesse posteriormente seria acréscimo e nunca cortaria nada. Hoje em dia, todo texto meu é passível de revisão, de desmembramentos que fujam da linha original. Ou seja, procuro fazer meus textos vivos e subverter a ideia de que eles têm necessariamente de se manter imutáveis.
  4. Apesar do caráter quase autocrítico do texto, havia ali a manifestação de uma obsessão pela morte, uma tanatomania adolescente que há pouco tempo abandonei. O texto era uma forma de me manter cultivando ideias mórbidas que me fizeram mal por um período da vida.
  5. Enfim, já não concordo totalmente com as ideias em si do texto.
    1. Em Obra Aberta, Umberto Eco mostra que os textos escritos são passíveis de releitura e de ampliação muito além daquilo que porventura o autor pensou originalmente. Todo texto pode ser resscrito pelo seu autor e revisto pelos leitores.
    2. Dizer que alguma coisa tem caráter feminino é verdade até certo ponto. Se o caráter passivo do texto lembra a representação de que o lado feminino da dualidade (idealizada) de gênero é passivo, isso só se aplica a alguns aspectos (pois o “feminino” tem características ativas, é só ver a própria imagem da bruxa). Além disso, a divisão masculino/feminino da realidade é um ideal que serve mais para justificar certas divisões arbitrárias do que a representação da realidade.

Talvez eu devesse escrever um novo capítulo desta saga: A Vida e o Texto ou O tear como metáfora da ramificação infinita do texto escrito.

No entanto, o tema do fascínio humano pela morte e a relação dele com a escrita pode render elucubrações interessantes. Só o Livro dos Mortos egípcio já serve de mote para um texto.

13 comments

  • Olá!

    Quando comecei a ler o texto, não parecia realmente que tivesse sido você o autor, hehe! Mas tudo ficou claro!

    Quanto ao texto em si:

    Devo dizer que entristece-me ler que após o "…momento em que publica seu texto, o cientista tem em mãos um fruto morto, obsoleto em relação ao conhecimento que está sempre mudando e se aperfeiçoando". Uma frase pesada, não? Hehe!

    A escrita mutável é tão viva quanto a ciência e em ambas a menor alteração, ou contribuição, é sempre benéfica, de fato, é por esse motivo que ambas andam lado a lado. Mais ainda, devemos sempre cuidar para que o "apego", digamos assim, a uma idéia ou fato, não nos deixe cegos durante a busca do aperfeiçoamento da escrita/ciência. Essa talvez seja minha maior preocupação como quem faz e pratica ciência, do perigo que há de que, algum dia, passe a nutrir um "amor incondicional" por uma idéia, de forma que faça questão que ela se torne imutável, somente para não vê-la cair ou sumir. O que, no fim, faria exatamente isso: torná-la um fruto morto. Como você pôs ao final, não poderia citar obra melhor, se não a de Umberto Eco, para argumentar a favor da produção textual passível de revisão, incorporação, ampliação e por aí vai… Interessante ver que sua opinião tenha mudado com o tempo, prova do processo dinâmico a que estamos sujeitos e de que revisar as próprias idéias sempre é fundamental! Hehehe!

    Quanto ao fascínio do ser humano pela morte e seu efeito, de fato, esse seria um tema interessantíssimo a ser abordado aqui, que adoraria vê-lo discorrer sobre. Bom, falar sobre as indagações humanas "de para onde vamos" e "de onde viemos", seja por um ponto de vista científico ou artístico, sempre é ter ótimo material em mãos para tecer algo!

    Inté!

  • Escreveu, virou pó, virou passado… o conhecimento é dinâmico, o passado pode até nos guiar, nos nortear, mas é o presente a única realidade, se é que existe presente, se é que existe realidade. Céus… eu tenho lido Hayden White… Meta história… que belo e medonho…

  • Meu amigo, será que seu texto reflete seu interesse na época sobre o assunto da morte? Quando penso na prática das religiões e dos sistemas de direito legislado, bem como na versão de obras literárias, não vejo que as pessoas acreditam que o texto esteja morto; pelo contrário elas pensam que é um corpo sempre vivo ou a ser vivificado.

  • Não tenho muito o que dizer sobre o seu texto, dada a grande experimentação de idéias, símbolos, imagens e linguagem. Mas ler suas "notas póstumas" foi bastante esclarecedor sobre as reais condições de produção e revisão dos nossos pontos de vista sobre o mundo. Um belo esboço de auto-análise estético-literária.

  • Interessante como não reconheci a clareza e abertura no primeira parte do texto, realmente parecia outra pessoa escrevendo.
    Mas o ler a segunda parte, vejo que além de ter evoluído em sua “didática literária” vc acaba de exemplificar como um texto não morre e pode ser alterado com o tempo.
    Entretanto vemos que na prática o habitual é um aproveitamento de idéias originais para novos textos e não a alteração do texto em si, portanto volto à idéia original: o texto é praticamente estático, porém ele renasce em outra –ou outras – forma, que por sua vez será estática e dará origem a uma nova forma… e assim por diante.
    Isso fica mais evidente ainda com a nova mídia gravada. Seja áudio ou vídeo. Onde edições são mais complexas ainda serem feitas postumamente. Seria este tipo de mídia ainda mais estática que o texto?
    Mas fiquei aqui pensando.. seria legal se a cada edição de um texto este fosse realmente alterado conforme a alteração íntima e vontade do autor. Teríamos assim diversas versões de um mesmo texto, tendendo a última ser a melhor mas não necessariamente..seria perda de tempo? vou pensar mais nisso.

  • @Anderson, certamente tem a ver com meu mindset da época. Porém, era minha forma de ver as coisas, mas sei que o texto, notadamente as obras sacralizadas, como a lei ou os textos sagrados e até algumas obras acadêmicas, é representado por muitos como uma constante fonte de novas descobertas ou "invenções".

    @Pescador, obrigado. 🙂

    @Tiago, também já pensei muito nisso. Seria muito bom que os autores tivessem essa prática de renovar seus textos ou até de refutá-los e expurgá-los quando quisessem e precisassem reccriar algo totalmente novo. Mas nossa cultura valoriza a obra de autor, acabada e fonte de consulta…

    @serennus, vou tentar me lembrar disso em 2017… 😀

  • É interessante como encaramos a mudança, como todo mundo fiquei me perguntando se o texto era realmente seu enquanto eu o lia… De uma certa forma, creio que considerando de uma forma diferente do texto, eu acho qualquer forma de expressão e passagem de mensagens, coisas extremamente vivas sejam, e eu acho isso pois essas coisas provocam reações das mais diversas em quem as recebe, quando eu leio um texto ele me faz pensar num assunto, refletir, pode ou não gerar mudanças, mas sempre causa alguma reação e isso pra mim acontece pq estou tendo contato com um coisa viva, que é mais que só um texto, é o resultado de um pensamento, de uma idéia, é o reflexo da produção de uma mente(tudo bem… as vezes eu me pergunto se alguém que pensa foi capaz de escrever certas coisas =p).

    E seu blog causa essa vontade de pensar e refletir =D
    Pra mim ele etá cheio de coisas vivas gritando por todos os lados.

    Grande abraço

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