Caro Augusto…

Natal, 28 de agosto de 2015 e.c.

Caro Augusto,

Desde a última vez que nos falamos um vulto alado persiste em rondar minha cabeça. Simplesmente genial sua alegoria da consciência, equiparada a um morcego que volteava sua rede naquela meia-noite desconfortável. Não sei nem quero saber se você tem problemas graves de consciência pesada ou se tudo não passou de fabulação sem conhecimento de causa. Mas de uma coisa estou bem certo: mesmo que se possa provar que há pessoas que não são atormentadas por sentimentos de culpa, todos nós temos, no mínimo, um pouco de insanidade. E tendo em vista uma pitoresca ocorrência pela qual passei outro dia, enquanto tentava descansar na sombra de uma árvore, e que me fez lembrar do seu Morcego, constatei que a consciência quiróptera é apenas uma faceta da loucura humana, ou um tipo de doideira específica (não uma doidice, o que é bem diferente).

O macaco que desceu daquela árvore e me atazanou até que eu desistisse da bendita sesta me inspirou a parodiar você, mestre, pelo que peço antecipado perdão – mas a sátira é um ato perfeitamente perdoável, pois se trata de manifestação dessa mesma loucura inevitável de que estou lhe falando. Se isso não bastar para me perdoar pela não-autorizada “paráfrase”, digo-lhe apenas duas coisas antes que leia o referido soneto, transcrito abaixo: o próprio O Morcego, pelo que me consta, ressoa fortemente O Corvo de Poe (e já me disseram que há neste seu poema pelo menos uma outra referência, a uma certa peça de Hugo); além disso, não tenho grandes pretensões com O Macaco, é apenas uma brincadeira – uma homenagem, ressalte-se – que quero compartilhar com você. (Acrescento, professor, que eu me entendo humildemente como seu discípulo, assim como você teve seus patronos literários.)

O MACACO

Meio-dia, à sombra de um pé-de-planta…
Que Diabo! E este macaco! E, agora, veja:
Na astuta urgência símia da peleja,
Desce o caule e me belisca a garganta.

“Eu vou capturá-lo onde quer que esteja!”
– Falo. Ele sobe e para. Guincha e canta.
Eu miro a copa. E avisto o sacripanta,
Que macaqueia, escarnece e moteja.

Tento apanhá-lo e então pô-lo num saco,
Mas ele foge. A Razão se organiza:
Como domar esse animal imundo?!

A Insanidade Humana é este macaco,
Por mais que a gente o adestre, ele anarquiza
Inusitadamente o nosso mundo.

Natal, 2015.

Portanto, talvez você perceba as bases de meu argumento citado anteriormente. A consciência humana representada pelo morcego tem, fundamentalmente, a mesma função que a insanidade humana representada pelo macaco: desequilibrar o indivíduo em seu cotidiano monótono e sua rotina corriqueira; colocar-nos em meio a um caos momentâneo e nos fazer sentir-nos vivos. Para ser menos inexato, penso que a consciência mesma não seja o morcego, tampouco o macaco: estes animais incorporam muito mais a entropia e a impermanência do mundo. A consciência é o efeito que esses bichos causam em nós após o aperreio, que nos obriga a nos recompor, a colocar nos eixos o corpo com a alma, e nos força a pensar e a reavaliar nossas atitudes e ideias.

A consciência, aliás, em suas diversas nuanças de sentido, causas e efeitos, parece ser uma constante, implícita ou explícita, em uma família de poetas atormentados da qual você, meu caro, faz parte, saiba disso ou não. Não vou me delongar nesse quesito, para não adiar a conclusão de assuntos urgentes a tratar daqui a alguns parágrafos, mas convenhamos: um de seus pais espirituais, o mencionado Edgar Allan Poe, que, não negue, lhe inspirou O Morcego, teve uma de suas obras-primas, The Raven, traduzida por dois contemporâneos seus: Fernando Pessoa, que o traduziu para o idioma lusitano (O Corvo), e Charles Baudelaire, que o transpôs para o francês (Le Corbeau). São dois poetas místicos que, assim como você, admitem a influência do atormentado escritor de Boston.

Some-se a vocês três um outro, talvez não tão ilustre, mas não menos poderoso, conterrâneo de Poe e um dos mais entusiásticos discípulos deste: Howard Phillips Lovecraft. Cada um de vocês, um no Brasil, outro em Portugal, um terceiro na França e o último nos Estados Unidos da América, transmutou à sua maneira a grandiosa herança do autor de The Tell-Tale Heart (O Coração Denunciador), este um dos maiores contos já escritos sobre a consciência. Porém, seja no satanismo botânico de Baudelaire, seja no panteísmo do esquizofrênico Pessoa ou no abissal politeísmo de Lovecraft, todos têm em comum uma poética (no sentido da criação literária e não apenas da poesia) pagã e em muitos sentidos anticristã, até mesmo (e não menos por isso) em seus aspectos ultracristãos, e você compartilha com eles desse paganismo.

Sei que não parece relevante (talvez não seja), mas como deixar de notar a semelhança dessas duas fotos, uma sua, outra de Fernando Pessoa, caminhando na rua? Que sincronicidade é essa que os aproxima até na captura do momento de um passeio, quase com a mesma posição dos membros? Parece que estão agitados nessa caminhada, como que fugindo da consciência. Só vou lhe dizer uma coisa, Augusto: há dois de você: há um Augusto dos Anjos egoísta e ultrarromântico, daquelas “catedrais imensas”, aqueles “templos claros e risonhos” que você – felizmente – quebrou; e há um Augusto dos Anjos Caídos, ultra-altruísta, podre, mundano, técnico, tétrico, científico, raquítico, e ainda mais sublime. São duas pessoas diferentes, como o são Caeiro, Campos, Reis e Pessoa (Fernando tinha consciência de que um indivíduo é uma soma sinérgica de vários caracteres). Só faltou a você batizar com outro nome uma de suas facetas. Mas ainda digo mais: no segundo Augusto a que aludi, há várias vozes num só texto, há escândalos como “defuntos”, “esterco”, “fedor”, misturados com hermetismos acadêmicos tais quais “noumenalidade”, “mônada”, “senectus”, ao lado de ilusões gráfico-fonéticas entre as quais destaco “1 de janeiro”, “33 vértebras gastas” e “no cadáver malsão, fazendo um s”. Você juntou vários heterônimos num só, Augusto, e você tem consciência disso, não tem?

Certa vez, após uma exposição que realizei a respeito da representação do feminino em sua obra (na próxima carta prometo lhe enviar uma cópia dessa monografia), uma pessoa, que aparentemente não ouvira falar de você até então, veio me dizer que havia achado sua poesia parecida com a de Charles Baudelaire e que havia possibilidades de analogias entre ambas as obras. Eu concordei em parte. O simbolista francês também escreveu sobre carne putrefata, mas este estado do corpo morto representa para ele o fim, o término de uma existência de prazer. Você, meu amigo, exalta a putrefação como o fim do sofrimento da vida e o início de um estado transcendente e holístico do ser, ou seja, o “NÃO SER” onde dorme seu filho natimorto. Baudelaire tem consciência da finitude material, que com a carne cessa de existir; você vê a consciência (cuja natureza, no seu entender, poeta, é bem mais complexa do que aquela compreendida pelos filósofos e cientistas) transcendendo a “teleológica matéria”.

H. P. Lovecraft, com sua prosa fantástica de horror, junta de maneira contundente o misticismo de uma mitologia de deuses monstruosos e seus cultos com conceitos científicos, advertindo seus leitores sobre os perigos de tomar consciência da complexa e aterradora realidade multidimensional do universo. Mais ou menos o que você construiu com o Eu. E lhe digo, Augusto – e peço perdão se o ofendo com essa minha opinião –, você não escreve apenas poesia, mas (contrariando Todorov, para quem o lírico e o fantástico são de naturezas distintas), você faz ficção científica com seus versos. Basta observar como a distopia, tropo tão comum à narrativa fantástica, se apresenta no pequeno conto em versos que você batizou de Idealização da Humanidade Futura.

Mas não quero, de modo algum, reduzir sua obra à herança de um escritor cuja cultura representa o que há de mais colonizante hoje em dia. Seria injusto atribuir sua criatividade poética apenas à influência do estadunidense Poe. Seria anacrônico até (mais anacrônico do que eu estar lhe escrevendo a partir do século XXI a você no século XX). Seria impossível reproduzir as condições em que brotou sua obra, pois esta vem da junção de uma miríade de fontes. É uma poesia latino-americana, brasileira, nordestina, paraibana, da Cruz do Espírito Santo, do Engenho Pau d’Arco. Não é um arremedo de produtos importados. É uma obra que concilia contrastes, como você mesmo diz: “Tudo convém para o homem ser completo!”

Há sim resquícios da tradicional poética da “xantocroide raça loura”, mas ela se une em sinergia com a herança ancestral dos filhos da “Hotentoia ufana” e o legado mítico da “prisca tribo e indiana tropa” dos nativos de Pindorama. Sua poesia não é negra, como você às vezes parece pretender. Ela é colorida, une as nuanças quentes do “fogo telúrico profundo” com os tons frios das “fotosferas mortas”. Talvez se possa dizer que seus poemas são como discos de Newton: têm várias cores se os observamos pausadamente, mas quando giramos seus versos eles se tornam um rodamoinho monocórdico que nos arrebata como o voraz Maelström. O cartunista Val Fonseca fez uma bonita tirinha ilustrando esse arrebatamento. (Peço-lhe, a propósito, que me diga o que acha dos quadrinhos que ele faz em sua homenagem. Será que ele faz jus ao que sua obra significa para você? Será que ele entendeu seus poemas como você quis que fossem entendidos? De qualquer forma, acho interessante o fato de seus escritos terem tamanha popularidade e influenciar artistas das mais variadas idades e dos mais diversos ramos, seja do Teatro, da Música ou dos Quadrinhos.)

O que quero dizer é que sua poesia tem a força de uma revolta contra as imposições estéticas eurocêntricas. O desdém de Bilac é um troféu post mortem para você. É claro que estou me referindo muito mais ao Augusto dos Anjos Caídos (pois sua versão mais jovem e romântica, desculpe a franqueza, ainda estava presa aos ditames de uma ideia estrangeira de beleza). Basta mencionar as sinéreses aterrorizantes de versos como “Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o” e “Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!”, cada um com apenas 10 sílabas, desafiando o declamador a se valer de calma e agitação ao mesmo tempo. Qualquer parnasiano defensor do classicismo helenista se irritaria com essas construções, ao mesmo tempo perfeitas e ousadas demais. Você é sempre cheio de contradições com a estética do hediondo.

Essa conciliação de contrastes encontra ecos nos sincretismos das mais variadas naturezas, que marcam a América Mestiça desde o México até a Patagônia. A dança das caveiras de seus versos macabros ressoa o Día de los Muertos da moderna Tenochtitlán, sinistro e alegre, sombrio e colorido, cristão e pagão. Sua poesia é um cântico regido pela cadavérica e lasciva Catrina. Tem tudo a ver com o Vodu que inspirou Carpentier a contar a verdadeira história da Revolução do Haiti (o que significa mais uma relação de sua lírica com o fantástico, um real maravilhoso poético brasileiro). Enfim, não seria justo deixar de mencionar o Candomblé como exemplo dessa mesma poética visceral miscigenada que é propriedade da culinária cultural que borbulha no caldeirão pós-colonial. Um dos resultados da conciliação que promoveu a gênese dessa religiosidade exotérica é o sentimento de solidariedade e tolerância para com a diversidade, que é também uma das marcas mais profundas de sua poesia, Augusto.

A relação das culturas latino-americanas com a Morte é esse animismo politeísta no qual a “carnívora assanhada” é representada como uma entidade e não apenas (mas também sim) uma força impessoal. Ela é aquela Dona Morte da mitologia mauriciana e também a caveirinha encapuzada que acompanha você nas historietas do citado Val Fonseca, que vê o cemitério como uma Necrópole e a passagem como o começo de uma nova vida.

Eu é um tomo de magia, com toda sua hermética mitologia e seus esotéricos rituais. Talvez Lovecraft tivesse imaginado algo parecido com seu livro se o tivesse lido antes de conceber o tenebroso Necronomicon. Seu “Egonomicon”, meu amigo, tem me servido como uma compilação de cânticos de invocação bastante poderosos. Há um encantamento irresistível neles, que atrai os olhos ávidos de leitores até da mais tenra idade, como a filha de uma estimada amiga, com cerca de 12 anos, a quem emprestei seu livro e que leu em voz alta todo o Monólogo de uma Sombra, mesmo sem compreender bem as palavras (segundo o que ela disse, mas tenho certeza de que pelo menos uma das mensagens inscritas nessa magistral oração sacro-profana alcançou o âmago dela).

Mas deixemos as delongas (e as desnecessárias e ridículas loas ao mestre) e nos concentremos no assunto que me motivou a escrever esta carta. Certa vez você me disse que há uma tênue diferença entre tristeza e alegria. Em suas palavras: “a mais alta expressão da dor estética/Consiste essencialmente na alegria”. O que ressoa aquelas tenebrosas palavras ditas a você pelas tétricas árvores que o atormentaram certa noite:

Por isso, oh! filho dos terráqueos limos,
Nós, arvoredos desterrados, rimos
Das vãs diatribes com que aturdes o ar…
Rimos, isto é, choramos, porque, em suma,
Rir da desgraça que de ti ressuma
É quase a mesma coisa que chorar!

Esse é para mim um dos mistérios mais difíceis de solucionar em sua obra, seja a canonizada por você mesmo (Eu), seja a apócrifa (as Outras Poesias reunidas por Órris Soares, seu amigo e mais empenhado apóstolo), da qual faz parte a sextilha acima. Fico no dilema da confusão: a tristeza é uma forma de alegria? ou a alegria é um tipo de tristeza? Eu me arrisco a sugerir que as fortes emoções antagônicas que você apresenta em conflito e em dependência mútua são apenas duas expressões de uma mesma força psíquica, da mesma necessidade comum de explodir como um vulcão sonolento. As paixões não são necessariamente agradáveis ou deprimentes, elas podem ser mistas, como o é o desejo de Florbela Espanca ao afirmar que

No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente no seio dos vulcões…

Assim quando eu te falo alegre, friamente,
Sem um tremor de voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!

Todas as paixões são tristes, pois nos desmantelam, mas são alegres, pois nos dão vivacidade. E todas servem a um mesmo propósito: provocar em nós a consciência, seja através de um macaco zombeteiro, seja pela aparição de um fantasmagórico morcego. O júbilo nos faz tomar consciência do mundo ao nosso redor; a melancolia nos move a tomar consciência de nós mesmos. Como você vaticinou, a consciência humana, por mais que a gente faça, retorna sem cessar, graças à “paixão doida e fremente” daquela bela flor lusitana que nos espanca os estômagos com sua força vulcânica. É uma manifestação da doidice e do frêmito que correm em nossas veias como lava. Pois que doidice, como dito antes, difere de doideira, sendo aquela, como você bem sabe, um misto de dor e ledice, enquanto as doideiras são várias manifestações dela derivadas.

Sendo assim, caríssimo, arrisco-me a lançar minha própria teoria-chave para desvendar o mistério de suas escrituras reveladas. Todos os contrastes presentes em seus poemas, cânticos e orações não são mais do que manifestações dualistas de uma mesma “energia intra-atômica liberta”, a mônada que lhe é tão cara, esse poder doido que se espalha em infinitas formas doudas. Através delas o leitor toma consciência dos “fenômenos do solo”, da “vida fenomênica das formas”, e entra em contato direto com a “forma vermicular desconhecida” a partir da qual tudo, inclusive ele mesmo, se forma.

Mestre, o Eu representa essa doidice primordial que me inspira a escrever minhas doideiras, inclusive esta carta, como deve ter ficado claro. Assim, peço-lhe que, mais uma vez, como nas missivas anteriores, agracie-me com sua crítica implacável e me ajude a lapidar minha poética, tirando um pouco de consciência dessa inconsciência em que durmo.

É o Egonomicon de luz tão tétrica,
Que me ensinou a rima, o ritmo e a métrica,
– Grimório para um aprendiz de mago…
Tomo de versos de dor e ledice
Que despertam consciência na doidice
De um de seus grandes entusiastas,

Thiago.


Este texto foi apresentado à disciplina Poéticas da Modernidade e da Pós-modernidade, do Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem – PPGEL, como avaliação final da mesma, e consistiu em escrever uma carta endereçada ao autor-objeto de nosso respectivo projeto de pesquisa.

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