Copa do Mundo – parte 1
Não há nada mais brasileiro do que um esporte inventado na Inglaterra. A bola no pé faz parte da cultura brasileira de uma forma que impressiona os outsiders. Digo isso porque nunca fui fã de futebol e sempre achei exagerada a “cultura futebolística”, as incessantes conversas sobre “o jogo de ontem” e os usuais cumprimentos entre amigos: “E aí, flamenguista!” – “Diga lá, fluminense!”
Mas desde há muito tempo reconheço o esporte como um espetáculo de inteligência corporal digno de ser visto e apreciado. E a Copa do Mundo é uma chance de se ver os melhores (é o que se espera) jogadores de cada país mostrando suas habilidades numa competição acirrada e emocionante, com bons exemplos de extrapolação das habilidades do corpo humano. Mas estou longe de ser um típico brasileiro quando o assunto é futebol.
Um brasileiro (não muito) longe do futebol
Meu padrinho, flamenguista, me deu uma camisa rubro-negra quando eu tinha 2 anos, e eternizou o momento em que desejou passar adiante seu fanatismo. Não conseguiu, e eu só lembro muito vagamnente daquele momento. Provavelmente a falta de entusiasmo do meu pai, pouco afeito aos campeonatos nacionais, e de minha mãe, mulher tipicamente desinteressada por futebol, contribuíram (e eu lhes agradeço) para que eu não me interessasse tanto (quase nada) por futebol.
Acho que foi em 1994 que, em clima de Copa do Mundo, 13 anos de idade, com meu irmão e com um primo, treinávamos na garagem de uma casa vazia, na vizinhança de uma tia-avó, alguns chutes e defesas. Eu me convenci que tinha jeito para goleiro. Mas as recomendações oftalmológicas eram de que eu evitasse esportes de impacto, que poderiam causar descolamento das retinas. Vicissitudes da Síndrome de Marfan…
Torcer para um time era algo que nunca me atiçou. A camisa do Flamengo que vestiu minha pele na infância não tocou meu coração, e houve até certa época em que eu acompanhei um campeonato norte-americano de basquete, torcia para o Chicago Bulls (d’oh!), mas não me tornei fã e nem voltaria a torcer (eu acho).
Num episódio de escola, meus colegas perceberam que eu não acompanhava as conversas futebolísticas. Um deles me perguntou qual era meu time, e eu respondi “Chicago Bulls”. Zombaram de mim, e alguns tentaram me convencer a escolher seus times preferidos. Contei que era flamenguista por imposição avuncular, e um deles, corintiano, se revoltou. A filiação a um time, em nossa cultura, é quase uma obrigação, especialmente para os homens, chegando a ser uma forma de manifestar virilidade competitiva. Na época em que eu tinha um Mega Drive, eu nem sequer entrava em discussões para discutir se a Sega era melhor do que a Nintendo.
Até hoje nunca me dei ao trabalho de jogar um video game de futebol. FIFA Soccer e quejandos sempre me causavam certa repulsa, não via graça alguma em simular o técnico de um time e controlar vários bonequinhos levando uma bola para fazer gols. Acho que isso tem muito a ver com minha dificuldade com jogos de estratégia, como Warcraft II e Total Annihilation. Controlar várias unidades a mesmo tempo, ou seja, fazer duas ou mais coisas concomitantemente, sempre foi uma dificuldade.
A última vez em que me envolvi mais de perto com a Copa do Mundo foi em 1998, quando eu tinha 17 anos e me deixava levar pelo clima festivo, anotando os resultados dos jogos numa tabela da revista Veja, que meu pai assinava. A final superdisputada entre Brasil e Itália, com um pênalti atrás do outro, prolongou inusitadamente a decisão. O interessante, ao rever o vídeo abaixo, é observar Dunga, atual e rabugento técnico da seleção brasileira, como capitão e chutador que ajudou a decidir os pênaltis, com um semblante bem diferente da carranca de treinador.
Em 2002, a Copa aconteceu num período em que eu estava com problemas na retina direita, fazendo cirurgia em São Paulo, com tampão num olho (o outro já tinha a visão ruim) e sem condições de ver os jogos. Ma eu me emocionei especialmente com um jogo acirrado entre Inglaterra e Argentina, que acompanhei só ouvindo.
Acho que foi uma experiência que me mostrou como é possível acompanhar um jogo pelo rádio, sem altos recursos áudio-visuais, o que para muitos da juventude contemporânea é impensável. Mas minha mãe conta que a final da Copa de 1970 ela e toda a sua vizinhança ouviram pelo rádio, e se emocionaram tanto quanto os telespectadores atuais.
A imaginação humana é poderosa.
Eu impliquei muito com o futebol em minha vida. Mas passei a me interessar pelo seu aspecto “arte”, pelo espetáculo corporal, a inteligência somática e estratégica levada para fora dos limites do cotidiano. Mesmo em casos que extrapolam a própria normalidade do âmbito do futebol, como as estripulias de um René Higuita, são motivos para prestar atenção.
Nas raríssimas vezes em que vejo jogos, ou seja, a cada 4 anos, procuro apreciar o jogo em si, ver as seleções mais preparadas, as partidas mais desafiadoras. Jogos como Eslováquia x Itália foram bonitos de se ver.
Pequeno ensaio despretensioso sobre antropologia do futebol
Mas as pessoas não se atêm muito a uma apreciação do esporte pelo esporte. As conversas sobre futebol costumam girar em torno de superficialidades, que às vezes nada têm a ver com a partida em si. O senso comum, com seus muitos preconceitos, se manifesta com vigor nessas conversas e não menos nos comentários dos narradores.
Ouvi, por exemplo, alguém dizer que “os negros jogam melhor”. E pouco tempo depois li um artigo de Luiz Carlos Azenha criticando, com muita razão, a infeliz afirmação de um comentarista de que “o negro é cientificamente mais forte” e, pior ainda, a de um narrador que completou a ideia sugerindo que aos times africanos falta inteligência. Isso tudo sem mencionar as várias vezes em que a plateia xingou algum jogador com ofensas racistas ou homofóbicas. O próprio nacionalismo que incita ufanismos e etnocentrismos, além dos ódios aos rivais e xenofobias, é para mim uma excrescência que deveria ser superada.
Penso que essa tendência geral a colocar em segundo plano o esporte em si tenha a ver com a função social do futebol, como um meio mais de congregar as pessoas e atender a uma necessidade psicossocial do que uma oportunidade de se debater sobre as potencialidades psíquicas e somáticas humanas. Como disse certa vez meu amigo sociólogo Flaubert Mesquita, a experiência do torcedor é análoga à experiência religiosa, na comunhão e no êxtase. É uma forma também de se ter um meio de socialização, como observou meu amigo antropólogo Samuel Cruz.
Além dessa observação mais básica e óbvia para qualquer cientista social, sempre percebi uma relação mais estreita entre o meio do futebol e a religião, especialmente me reportando à teoria ainda atual de Émile Durkheim (As Formas Elementares da Vida Religiosa) e de Sigmund Freud (Totem e Tabu). A forma elementar da vida religiosa pode ser extrapolada para quase qualquer tipo de instituição social, pois os elementos básicos da religião são formas de se criar coesão social e dar sentido ao mundo humano.
As sociedades menos complexas se organizam como grandes grupos denominados tribos, que representam um grupo étnico maior (a tribo dos torcedores de futebol), subdividido em vários clãs (os times), cada qual com seu totem, que é um animal, planta ou algum ser da natureza (o mascote), com seus símbolos específicos que o diferenciam dos outros clãs (o brasão do time e as cores) e com uma noção de ancestralidade comum (geralmente os filhos torcem para o mesmo time que os pais; mas mesmo nos casos em que se foge à regra, o importante é que os torcedores de um mesmo time se sentem como uma família). Isso tudo se amplia planetariamente na Copa do Mundo: a tribo é o conjunto dos países que participam, os clãs são as seleções, com seus símbolos, brasões e cores e com a noção de pertencimento a um mesmo grupo étnico e linhagem.
Seleção universal
Minha esposa gosta mais de futebol do que eu, e ela acabou me levando a gostar um pouco mais, principalmente neste campeonato mundial. Recentemente, comentei no Botecagem S.A., dos irmãos Heering, que não me daria ao trabalho de fazer considerações sobre os posts que tratem de futebol. Ironicamente, aqui estou eu escrevendo um texto sobre o famigerado esporte (e ainda mais com a parte 2 em forma de rascunho.)
Este ano o Brasil não é favorito. De qualquer forma, nem para o Brasil eu torço. A onda, na Copa, para quase todos os brasileiros, os leva para a torcida ferrenha pela seleção canarinho. Embora seja apenas uma diversão, não compartilho do espírito competitivo, não tomo partido nenhum, nem mesmo do time do “meu país”. Para mim, os jogos são um show para ser apreciado. O importante para mim é ver um jogo bem disputado no final.
Anteontem vi o jogo em que disputaram Brasil e Portugal. Vesti minha camisa da seleção da Federação Unida de Planetas, camisa 10, do Sr. Spock. Um símbolo do que eu acho que deveria ser o espírito da Copa. Não uma competição entre nações (que leva os times desclassficados a ficarem deprimidos – ora, alguém tem que vencer, uns perdem, outros ganham, os que já venceram antes devem dar a chance para que outros levem a copa dourada para casa), mas a celebração da humanidade, com todos os povos pisando o mesmo gramado e desmentindo qualquer teoria que coloque numa hierarquia natural os diversos grupos humanos.
Links
- Botecagem S.A.
- Camiseta Trekkers F. C. – Red Bug
- E depois ainda dizem que Dunga é o “atrasado” – Vi o Mundo
- Nerdcast 214 – Copa 2010 – Cala Boca, Galvão! – Jovem Nerd
Nota pós-texto – 27/06/2010 10:03
Errata
- A Copa do Mundo em que a Itália e o Brasil disputaram a final dos pênaltis foi em 1994, como mostra o vídeo, e não em 1998, como afirmei. Eu tinha 13 anos.
- O vídeo sobre a partida entre Itália e Eslováquia que eu incorporara ao texto foi retirado pelo usuário; coloquei outro no lugar.
13 comments
Brasil e Itália foi em 1994. O vídeo diz o ano certo, você disse o ano errado. Foi a única copa do mundo que me interessou, por isso eu lembro. Tafarel defendeu dois pênaltis. Raridade. E Baggio chutou pra fora.
@Diego,
Realmente, foi 1994, eu tinha 13 anos e você tinha 12.
Muito bacana a sua análise sobre a dimensão antropológica do que você chama de "cultura futebolística". Acrescentaria apenas que essa relação "mágica" com o futebol não é algo exclusivo do Brasil ou de sociedades periféricas, como costumam defender certos sociólogos midiáticos. Mas o produto de toda uma alquimia social que se reproduz geracionalmente em muitos países, inclusive o ditos países centrais (vide o exemplo da Alemanha, França e Itália). Aliás, essa reprodução geracional da cultura do futebol nunca está dada a priori; você é o exemplo empírico disso. É preciso sermos constantemente submetidos a uma atualização dessa "cultura" em contextos de prática. Sobre o alcance coletivo e nacional do futebol, creio que, de fato, tal experiência reforça laços de pertencimento e integração grupal, mas numa outra escala diferente do que se processava nas religiões das sociedades primitivas. Agora, nas sociedades modernas, o centro de comunhão gira em torno da auto-imagem ideal coletiva da Nação. São esses sentimentos nacionais, a exemplo do "orgulho nacional" ou "nacionalismo" que o futebol desperta coletivamente. Sempre é bom lembrar que se trata de uma integração social na ótica de laços de solidariedade mais horizontais, diferentemente do que se observava nas sociedades tradicionais.
Abração
Thiago eu pensei que você iria "meter o pau" no futebol! Já ia te apoiar! hehehe
Eu tb não gosto de futebol (meus pais também nunca gostaram), na verdade eu vou além: Eu considero não gostar de futebol uma qualidade! Espero que meus futuros filhos também não gostem, e ficarei muito decepcionado se chegar a ver meu filho torcendo para algum time.
O futebol por si só é apenas um esporte, porém como todos sabemos ele é usado em nossa sociedade para manipular as pessoas. Ver os jornais da TV dedicarem mais de 60% do tempo para falar de copa do mundo mostra que há algo errado nisso tudo.
Ver dois proletários, muitas vezes vizinhos, se agredirem em brigas de torcida, mostra que eles descarregam sua insatisfação no futebol e não em seu verdadeiro inimigo, o patrão.
O futebol é muito útil para ajudar a manter, junto com outras ferramentas culturais, o "status quo".
Acredito que se meu filho não gostar de futebol, isso será uma semente que o fará refletir sobre nossa sociedade, o acostumará a ter idéias diferentes dos demais, o fará não temer pensar diferente. Isso pode ser uma "bola de neve" positiva.
Espero criar um filho questionador, pensador, que venha tentar melhorar nossa sociedade, e para isso ensinarei a ele dês de cedo a pensar e refletir sobre as coisas. A começar fazendo-o ver o quanto futebol é usado para controlar e acalmar essa população explorada.
PS: Estou torcendo para que o Brasil perca vergonhosamente essa copa.
A semelhança entre a torcida de futebol e o culto religioso já era uma ideia recorrente, mas o seu texto foi o primeiro que li que explicitou de maneira objetiva e bastante clara os pontos de correspondência.
Há poucos dias atrás, ouvi uma entrevista onde falavam da questão da competição futebolística como forma de congregação entre nações, substituindo a antiga solução de rivalidades que era feita pelas guerras por disputas em campeonatos, e me vi pensando nessas seleções de pequenos países sem tradição conseguindo orgulhosamente bons resultados nesta copa, e da transferência de orgulho coletivo de uma nação deslocado para um time de futebol.
E em seguida, ouvi outra reportagem falando sobre refugiados palestinos, exilados no Líbano, que praticamente ficam isolados em campos tipo de prisioneiros, que, por não terem a nacionalidade reconhecida, entram numa espécie de limbo jurídico, não podendo exercer profissões, nem requisitar nacionalidade libanesa. São pessoas que atingiram um nível de pária abaixo mesmo dos critérios convencionais de miséria, atingiram uma espécie de fundo-do-poço em termos de existência legal.
E não consegui deixar de pensar na contradição entre os orgulhos nacionais sendo postos em disputa na copa do mundo, e essas pessoas que não têm nem podem fazer parte de nação alguma. Especialmente quando vi pessoas próximas a mim comentando durante a eliminação da Itália que era "Eslovaco desde criancinha", ou seja, podemos abrir mão até de nossa nacionalidade (e nosso orgulho patriótico) desde que nosso rival no futebol se estrepe!
Se Spock era o camisa dez, qual número que dariam para o Kirk?
O Kirk era porradeiro, ia pra zaga.
Oi,Thiago,
gostei do seu texto (confor). Sou solidária. Contudo incluo mais uma vantagem do futebol, que tenho usufruído – estar ao lado da família e amigos em momento de integração.
A mídia vinha tratando a copa do mundo como o principal evento do universo! Os comerciais da TV eram mesmo emocionantes, faziam até eu me emocionar com tamanha besteira!
Agora a mesma mídia já está falando que: FOI APENAS UM JOGO!???
Como assim? agora que o time de futebol do BR perdeu a copa, já mudaram o discurso???
É minha gente, não há como negar essa manipulação! Isso tem um propósito, não é aleatório não!
@Cadu,
E eu não quis dizer que essa relação "mágica" é exclusiva dessas sociedades. Sei que em países como a Escócia há o mesmo entusiasmo que vemos no Brasil. Se não me engano, nos EUA é o basquete que tem essa força. Podemos encontrar a mesma estrutura em qualquer lugar, revestida por outros esportes, fanatismos religiosos, entusiasmos políticos (no interior do RN, o eleitorado se divide como se fossem torcidas de futebol, do mesmo modo que nos EUA).
Esse caráter horizontal das relações de pertencimento ligados à identificação com a Seleção lembra também o caráter do Carnaval…
@AmBAr,
Eu acabei esquecendo de tratar desse assunto. Certamente há esse aspecto de pão e circo no mundo do futebol, tanto nos campeonatos nacionais quanto no mundial. Mas não é culpa do futebol em si. De qualquer forma, penso eu, a postura de quem aprecia o esporte sem se tornar um fã é menos comum do que quem adota uma postura arredia.
E o Brasil já está fora. Que vença o melhor.
@Fernando,
Há muito tempo vejo a partida de futebol e de qualquer outro esporte como um simulacro de uma guerra, e acho que esse aspecto era uma motivação a mais para eu não gostar de esportes competitivos. Mas é muito interessante quando perder se torna secundário e vemos posturas muito maduras como a da Holanda, que estampa na camisa a bandeira do adversário.
Sobre Kirk, @Dyego já respondeu. 🙂
@Clara,
Pelo menos temos esse evento para situações infalíveis de integração, relevando, é claro, o fato de ser um pretexto. Pode haver outros inúmeros motivos para juntar a família e os amigos.
futebol e o opio do povo brasileiro.