Espada afinada, violão afiado

A árvore é um ser da Terra que cresce com o Fogo vital. Quando espalha a rama pelo Ar, ela respira. É pelas pequenas lâminas clorofiladas que a árvore conhece o mundo. É através delas que executa o processo de inspirar e exalar o Ar; este é seu ato de comunicação com o ambiente e com os seres que respiram oxigênio. E é pelas folhas que a árvore purifica suas nervuras.

Assim como uma arma branca, a folha é forjada no Fogo para cortar o Ar. Ela é o resultado de um trabalho de calor e suor, e é por isso que algumas correntes tarológicas confundem os dois elementos e consideram que a Espada é símbolo do Fogo. Mas a natureza da pequena lâmina verde é aérea, ela se sente à vontade em meio ao elemento etéreo e invisível. A natureza da arma branca é deslizar suavemente pelo Ar para alcançar seu objeto de violência e atravessá-lo.

Os floretes, katanas, sabres, claymores e cimitarras são famosas pelas analogias com a Música: elas silvam quando cortam o Ar, e um duelo de espadas é quase um dueto de violas, em que cada desafiante tenta violar as defesas do outro. Um dos usos tradicionais da viola e do violão em nossa cultura é o desafio de repentistas. Cada desafiante empunha seu instrumento como uma arma enquanto tenta vencer o outro com sua agilidade de pensamento, improvisando versos perfeitamente metrificados e rimados para responder às provocações do outro.

Armas de corte e instrumentos de corda têm muito em comum, pois são ferramentas que demandam perspicácia e rapidez de pensamento. Se a arma precisa ser afiada para cortar, o instrumento deve ser afinado para tocar. Associar instrumentos de corda com armas brancas não é novidade. João Bosco deixa bem evidente em “Kid Cavaquinho” qual é a utilidade de seu utensílio dedilhado:

Mas se eu contar o que é que pode um cavaquinho
Os homem não vai crer
Quando ele fere, fere firme,
E dói que nem punhal

O bardo de Bacurau

Também não é à toa que o violeiro Rodger Rogério, no filme Bacurau (2019), simule uma espingarda (variação moderna e elaborada da arma medieval) com seu instrumento em riste, para anunciar que seus versos improvisados são uma forma perspicaz de alfinetar e cutucar os forasteiros enxeridos. A viola, o violão e o cavaquinho me parecem formas de atiçar a mente para entender melhor certas coisas. A Música é um meio eficaz de instigar o pensamento e a memória, servindo como ferramenta mnemônica e de aprendizado. Infelizmente, algumas pessoas menosprezam esse poder e não entendem a mensagem do violeiro, como é o caso dos forasteiros sudestinos que visitam Bacurau.

O Ás de Espadas no Tarot de Marselha

Portanto, espadas e violões me parecem símbolos isomórficos em diversos níveis. A história de um aprendiz de esgrima pode ter fortes ressonâncias com a jornada de um aspirante a mariachi. E é por isso que encontro algumas correspondências entre o naipe de Espadas do Tarot e o filme Viva – A Vida é uma Festa (Coco, 2018). A sequência de Ás até 10 de Espadas representa uma história de descoberta, de aprendizado sobre o mundo, empreendida através de debates, sejam internos (confrontos entre novas experiências e crenças arraigadas), sejam com outras pessoas, e marcada por desilusões e desmoronamentos de crenças.

Essa é a história do jovem Miguel Rivera, um apaixonado por Música numa família que a execra. Uma de suas antepassadas, Imelda, baniu qualquer interesse na arte sonora depois que o marido sumiu no mundo para ser artista. A trajetória de Miguel será marcada pela descoberta de segredos que poderão desestabilizar sua vida e a de seus parentes, confrontando a visão de mundo da matriarca da família, sofrendo diversas desilusões que desmontarão suas crenças mais arraigadas e levando-o à compreensão de sua verdadeira origem e à reconciliação entre o passado e o presente.

O naipe de Espadas no Tarot de Pamela Smith e Edward Waite

(A sequência a seguir contém revelações sobre o roteiro de Viva – a Vida é uma Festa, ou seja, spoilers sobre o filme.)

  • Ás de Espadas: O violão que Ernesto de la Cruz roubou de Hector Rivera há muitos anos atrás. Um artefato carregado de uma história de ardis e tramoias e que vai servir como meio de se descortinar um conhecimento revelador sobre o passado e promover desanuviamento e purificação. Como a Espada, é uma ferramenta que serve para cortar os obstáculos dos caminhos.
  • 2 de Espadas: Miguel começa sua jornada quando ele trava secretamente um dueto de violões com Ernesto, seu ídolo da Música e do Cinema. Logo em seguida, mexendo nas ofrendas do altar dos mortos, a primeira revelação vem à tona: o violão estilizado de Ernesto está escondido na foto de sua trisavó Imelda, e Miguel passa a ter certeza de que Ernesto é seu antepassado. Há uma profunda identificação entre o jovem e seu ícone, mas há muita coisa que o menino ainda não sabe sobre o artista.
  • 3 de Espadas: A avó de Miguel descobre o santuário secreto do garoto, onde ele guarda fotos, cartazes e objetos dedicados a Ernesto, além de seu violão, que ele mesmo construiu. Essa revelação traz muita tristeza ao coração dela e ela destrói tudo o que liga Miguel a seus sonhos de musicista. Já ele, de coração ferido, foge de casa.
  • 4 de Espadas: Miguel se recolhe em seu próprio abatimento. Ele tenta participar de um concurso de mariachis, mas não pode se inscrever nele sem seu violão. Os outros participantes do concurso se recusam a lhe emprestar seus instrumentos, e o garoto se sente desamparado. Introspectivo, ele reflete sobre o que deve fazer. Sua única alternativa é se voltar para o recém-descoberto antepassado, e ele vai ao cemitério para adentrar a cripta de Ernesto.
  • 5 de Espadas: Lá dentro, Miguel encontra o violão do falecido e decide profanar a tumba, roubando o instrumento, que está lá como uma relíquia, e que o menino considera como sua herança legítima, Ele experimenta o violão e se conecta com o mundo espiritual, mas demora a se dar conta disso. Ao infringir o devido respeito aos antepassados, o próprio instrumento responde com uma burla, que o leva à dimensão dos mortos. O ardil lhe serve como meio de seguir sua jornada, mas isso lhe traz uma série de transtornos.
  • 6 de Espadas: Os parentes falecidos de Miguel o encontram perdido na outra dimensão, e decidem levá-lo à cidade dos mortos para que a matriarca Imelda lhe conceda a bênção necessária para seu retorno ao mundo dos vivos. O menino faz uma espetacular viagem, atravessando uma enorme e brilhante ponte de pétalas de cempasúchil, vislumbrando um grande conglomerado que mistura arquitetura ocidental com construções astecas. No entanto, chegar à necrópole está longe de ser o fim de sua jornada.
  • 7 de Espadas: Imelda exige uma condição de Miguel para lhe dar a bênção: que ele prometa não se envolver mais com Música. O garoto se nega, e esse pretexto vai levá-lo a uma longa série de encontros e descobertas difíceis. Seu caminho agora é marcado por diversos subterfúgios para escapar de seus parentes mortos e encontrar aquele que lhe dará a bênção que ele realmente deseja: Ernesto de la Cruz. Com a ajuda do pícaro Hector, ele avança em sua procura. O violão se mostra uma ferramenta útil para driblar obstáculos: ele participa de um concurso cujos vencedores poderão visitar a mansão de Ernesto; lá, ele toca e canta para abrir caminho até seu trisavô.
  • 8 de Espadas: Durante essa jornada, Miguel descobre que sua trisavó sempre adorou Música e sua decisão de bani-la da família foi uma forma de esquecer seu amado. Ela ainda está presa a essa mágoa e não tem mais condições de remediá-la. Por outro lado, Miguel descobre que Ernesto não é seu trisavô, e sim Hector, que foi assassinado por aquele e roubou suas composições para ficar famoso, enquanto Hector ficou esquecido. O artista desiste de lhe dar a bênção, para proteger sua reputação, e prende o garoto no fundo de um fosso, junto a seu trisavô. Todos, Miguel, Imelda e Hector, estão de mãos atadas e a única forma de se libertarem é confrontando as verdades que acabaram de ser reveladas.
  • 9 de Espadas: Os fantasmas do passado vêm à tona para Ernesto e ele precisa encontrar um meio de escapar à verdade. A família Rivera consegue fazer com que Ernesto confesse o que ele fez a uma grande plateia de mortos. Ao mesmo tempo, um novo problema surge: o fantasma do esquecimento. Hector está desaparecendo, pois a única pessoa viva que se lembra dele é sua filha, Coco, que está senil e prestes a esquecê-lo. O garoto precisa se apressar para encontrar sua bisavó e tentar fazê-la se lembrar do próprio pai.
  • 10 de Espadas: A fama de Ernesto chega ao fim, subjugado pelo peso de um enorme sino que simboliza o fardo da verdade que revelou seus segredos sórdidos. Paralelamente, a descoberta de que Hector cantava para Coco quando ela era pequenina, e de que ele não abandonou Imelda, mas foi assassinado por Ernesto, ajuda Miguel a refrescar a memória de sua trisavó enquanto canta para ela, e toda a família sucumbe à sobrepujante verdade, obrigando-a a rever sua relação com a Música.

O naipe de Espadas fala sobre entendimento, aprendizado, racionalidade, percepção objetiva do mundo. A história de Miguel não se resume a isto, mas este tema perpassa todos os episódios do filme. O garoto revela um segredo na foto de sua trisavó, descobre o mundo dos espíritos, aprende que sua antepassada adorava Música, contrariando o que todos achavam, descobre seu verdadeiro trisavô e o que aconteceu com ele, e encontra um meio de recuperar a memória de sua bisavó, salvando a alma de Hector.

O mais interessante é que todo esse aprendizado, que está no nível mental, é motivado pela emoção, pelo desejo de “seguir o que seu coração manda”. Porém, vale lembrar que desde a Antiguidade se considera que a mente e a memória se localizam no coração. Até hoje usamos a expressão “lembrar de cor” (cor = coração), como se as lembranças estivessem no imo peito. E não deve ser à toa que uma das cartas mais chamativas do naipe da razão tenha um grande coração vermelho atravessado por três espadas. Também não é à toa que a toada de Miguel foi responsável por tocar as cordas do coração de Coco e fazê-la recordar seu querido pai. Miguel maneja o violão com maestria e toda a narrativa de Viva serve para que ele seja capaz de recuperar a mente de sua querida bisavó e trazer a razão para a família Rivera.

#estacaoblogagem

2 comments

  • Tendo visto COCO mais de uma vez, posso garantir que lendo esse texto passo a enxergar a trama por ângulos inusitados, mesmo sem entender de TAROT. Reza a lenda ou talvez alguma regra NÃO ESCRITA, que cinéfilos ou espectadores comuns, ao reverem qualquer filme, SEMPRE descobrem pontos, cenas, diálogos não percebidos na primeira audição. Se for um filme que foi apreciado, como é o caso desse, a admiração pela obra cresce.

    • É isso mesmo, amigo Eduardo. O Thiago sempre nos provoca a uma nova investida em qualquer obra literária ou cinematográfica, que tenhamos visto, nos apresentando, involuntariamente, um visão nova, diferente ou mesmo semelhante aquilo que tenhamos visto e de onde podemos absorver mais e mais…. Acabei de ver que esse tecelão ganhou mais fã.

Deixe uma resposta