Homo familiaris
Nesta semana, a CartaCapital publicou uma matéria sobre a Lei da Guarda Compratilhada. Apresenta-se ali um debate entre a defesa de que as mulheres deveriam ter mais direitos sobre crianças e a posição segundo a qual os pais deveriam ter direitos iguais aos delas na criação dos filhos.
A primeira posição se baseia em idéias preconcebidas da cultura ocidental sobre o papel da mãe, discutidas em obras como Mãe de todos os mitos: como a modela e reprime as mães, de Aminata Forna, e Um amor conquistado: o mito do amor materno, de Élisabeth Badinter. Tendemos a pensar numa predisposição natural que levaria a uma obrigação para com os filhos maior por parte das mães.
Não há determinação natural. Conheço casos de pais mais dedicados e responsáveis do que as mães e vice versa. Além disso, é bom lembrar que dedicação não é sinônimo de boa criação. A superproteção, seja na forma do confinamento, seja por meio de agrados ilimitados, é prejudicial. Embora eu não seja pai, acho que não é suficiente querer “aprender fazendo” o métier paterno. A experiência com filhos de outras pessoas, parentes e/ou amigos, deveria servir como preparo.
Isso me leva a outra matéria que li, no caderno sobre cultura do jornal Valor Econômico, intitulada “Tristes trópicos” (o título é referência a um livro de Claude Lévi-Strauss), na qual se trata do caso de uma menina guarani (chamada na matéria de “A.”) cuja mãe é alvo de uma ação de perda de poder familiar pelo Fórum Regional da Lapa, o que levou à decisão de encaminhar a garota à adoção por uma família não-indígena. Não se levou em conta que os guaranis vivem um modelo de família no qual vários adultos da aldeia, não só a mãe, cuidam das crianças.
Desde que os valores culturais indígenas passaram a ser mais respeitados pelos acordos supranacionais, como a Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os povos indígenas de setembro 2007, assinada pelo governo brasileiro, e o Brasil regulamenta, a partir da Constituição de 1988, as relações com os povos indígenas, os velhos e as crianças de qualquer etnia, uma teia de conselhos, estatutos, leis e portarias trava as relações cotidianas. No caso de A., a perda do poder familiar dirigido à mãe, Andrea, responsável legal na lei brasileira, não reconhece, segundo as tradições indígenas, a noção de famílias extensa.
Os guaranis, assim, continuam à mercê do Brasil (mesmo com as boas intenções do Estado, seja reconhecendo sua especificidade cultural, seja impondo o modo de vida ocidental), como nesta gravura de Jean-Baptiste Debret, que retrata uma família capturada pelo escravismo:
Os problemas na relação entre o Estado e as etnias a ele subjugadas não podem ser resolvidos unilateralmente. Algumas etnias indígenas praticam o infanticídio de crianças com deformidades físicas. É uma prática retratada de forma dramática no filme Hakani, produzido pela ONG Atini e patrocinado pela instituião evangélica Jovens com um Ideal (Jocum). A Fundação Nacional do Índio (Funai) está tentando impedir que o filme seja divulgado, e busca um instrumento jurídico que legitime esta intenção. A Funai argumenta que ele tem um teor que sugere a generalização do infanticídio entre todas as tribos indígenas.
É comum se generalizar a partir de um simples fato. E isso é ainda mais comum quando se trata de uma prática que consideramos errada, criminosa ou, no mínimo, muito exótica. É o caso do uso de cocares de penas, que costumamos reputar aos índios em geral, mas que é só usado por algumas etnias. Ou a poligamia, também não generalizada. E mesmo, como neste caso, o infanticídio. É uma forma de a mente do colonizador organizar melhor sua administração sobre os povos subjugados, o que é um dos principais temas do livro Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente, de Edward W. Said.
O infanticídio, segundo a Lei brasileira, é um assassinato, portanto, é um crime. Mas ele tem um motivo de ser para algumas culturas, é um meio de se manter a ordem das coisas, na visão de quem o pratica, como o é toda prática institucionalizada. Às vezes é um controle populacional, outras vezes é uma maneira de se criar apenas as crianças economicamente viáveis.
Portanto, a melhor forma, a meu ver, de se lidar com os grupos que praticam infanticídio é promover um diálogo para se avaliar a viabilidade de adoção por famílias não-indígenas das crianças destinadas à morte, como em alguns casos em que ONGs (muitas vezes cristãs) promovem esse tipo de ação. Mas é preciso atentar para a possibilidade de um determinado grupo indígena considerar perigoso que a criança continue viva, mesmo longe da tribo. Talvez seja pior que todo um grupo se desagregue devido à crença numa maldição do que uma criança morrer.
Mas tudo muda no decorrer da História, e é um processo lento, que exige estratégia. Assim como queremos que se acabem a violência, a corrupção e as relações de poder (tradicional e fortemente institucionalizadas) em nossa sociedade, deveríamos ter em mente que o infantícidio, a extirpação do clitóris e o confinamento das mulheres a papéis servis, entre muitos outros costumes, são formas de violência. Mas também é uma forma de violência, talvez ainda mais prejudicial, impor costumes como se tem feito na história mundial da colonização e do imperialismo.
One thought on “Homo familiaris”
"Mas também é uma forma de violência, talvez ainda mais prejudicial, impor costumes como se tem feito na história mundial da colonização e do imperialismo."
Concordo em gênero, número e grau.
Essas situações dos indígenas me sensibiliza, principalmente quando juntos de instituições "salvadoras" de cristãos! Nossa, e é o que tem aqui.
Aqui em Rondônia vc pode observar índios de todas as formas: dos que usam mp3 e dirigem hillux até uns que se escondem atrás dos representantes da FUNAI, totalmente desprotegidos.
São tantas culturas diferentes, de sabe-se lá de quanto tempo de existência…
Concordo contigo quando vc diz sobre subjulgar as mulheres, de etnias e tribos (incluindo a nossa tribo, dita civilizada- outro conceito muito estranho para mim). Já o infanticídio, não consigo enxergar na mesma categoria… porque analisando a teoria evolucionista de Darwin e o comportamento animal, essas mesmas atitudes são tomadas por várias espécies animais. (ixe, acabei de lembrar de abelhas e formigas… aff, penso melhor depois).
Sobre a guarda compartilhada, ela não será obrigatória, pois não? Cada caso deverá ser avaliado e determinado situação diferente. Eu não tenho filhos, só filhotes (são 4 gatos e 4 cães). Faz quase um ano que estou separada, Djalma sugeriu guarda compartilhada….. Ai, sou muito possessiva!
Abração.