O Chinês Americano [Resenha]

O Chinês AmericanoHá uma lenda chinesa que conta a história de Sun Wukong, o Rei Macaco. Nascido de uma pedra, ele empreende uma busca de autoaprimoramento, pela qual tenta se tornar cada vez mais poderoso e provar que pode se igualar aos deuses, mas acaba se obrigando a negar sua natureza, o que o leva à necessidade de uma busca espiritual.

Jin Wang é um menino de ascendência chinesa nascido nos EUA. Neste contexto, ele é estigmatizado e luta entre a necessidade de ser feliz e a urgência de se adaptar a um meio no qual ele é pária. O contrário acontece com Danny, que é americano e se vê às voltas do embaraço causado pela visita do primo chinês Chin-Kee. As três histórias estão mais interligadas entre si do que parece à primeira vista.

O Chinês Americano é uma história em quadrinhos escrita e desenhada pelo norte-americano de origem chinesa Gene Luen Yang. Trata, numa linguagem simples, singela e profunda, de racismo, xenofobia, bullying, autoaceitação, crises de identidade e outros temas. Tendo, aparentemente, aspectos autobiográficos, possui um viés infanto-juvenil que, no entanto, não tira o interesse do público adulto.

Recontando uma lenda antiga

Pintura do Palácio do Verão em Beijing, mostrando cena da Jornada ao Oeste

Gene Yang reconta a Jornada ao Oeste, clássico épico chinês cujo protagonista é Sun Wukong, o Rei Macaco. Este personagem é tão importante no imaginário do Extremo Oriente que serviu de inspiração para Akira Toriyama e seu Son Goku, protagonista de Dragon Ball.

O Rei Macaco buscando aprimoramentoA história do Rei Macaco é uma alegoria da busca pela própria natureza. Ele inicia sua jornada tornando-se um mestre em várias técnicas espirituais, como voar em cima de uma nuvem e lutar com grande força e habilidade. Para a desgraça dos deuses, ele dá uma surra em todo o panteão depois de ser recusado a entrar numa festa.

Sua busca por aprimoramento continua, mas agora com outra motivação. Ele quer ser indestrutível como o deuses e ser aceito como um. Passa a calçar sapatos e, dominando a técnica da metamorfose, assume aspecto humano. Apesar disso, nunca consegue esconder que é um macaco, pois seu rosto ainda é de símio.

Quando finalmente se depara com a entidade mais poderosa do universo, o criador de tudo, este o ensina algumas coisas sobre autoaceitação e arrogância. Só depois de muitos séculos é que o Rei Macaco vai perceber que poderia ter saído debaixo da montanha de pedras simplesmente assumindo sua forma original e pequena de macaco. Ao ser chamado como discípulo de um monge, este lhe diz que não precisará dos sapatos em sua nova jornada.

Os outros entre nós

Jin Wang é um menino norte-americano cujos pais são chineses. Suzy Nakamura é sua colega de classe, cuja origem é japonesa. Wei-Chen é seu melhor amigo, e veio de Taiwan. Todos eles são “orientais” para os colegas de escola e, portanto, são todos iguais. Pior, são culturalmente atrasados e têm sorte de estar vivendo na América.

Danny recebe Chin-KeeMas têm o enorme azar de ainda serem “orientais” e, portanto, diferentes, e não podem participar da vida comum aos alunos “brancos”. Por mais que dominem o inglês, por mais que incorporem o american way of life, por mais adaptados que estejam, não conseguem realizar os desejos comuns a todo jovem norte-americano de sua idade sem que renunciem à própria liberdade de serem quem são.

Para Danny, norte-americano, o maior embaraço é ter que acolher todos os anos seu primo chinês Chin-Kee, que mal sabe pronunciar a língua inglesa, que é extremamente estudioso e sempre responde certo às perguntas dos professores, que é bastante desengonçado quando tenta dançar músicas ocidentais, que tem modos bizarros ao se alimentar e, talvez o pior de tudo, tem costumes bárbaros quando se trata de cortejar as meninas.

Abrindo a obra

O interessante na história do Rei Macaco não é “aprender a aceitar quem nós somos e nos manter fiéis a isso pela eternidade”. Afinal, todos nós mudamos com o passar do tempo e das experiências. Porém, precisamos aprender os limites dos autossacrifícios, que podem muitas vezes nos fazer sofrer mais do que a situação em que somos párias. Por que querer ser humano, se o que me faz realente feliz não pode ser apreciado por um ser humano?

Da mesma forma, o drama de Jin Wang é enfrentar o racismo. Ele chega ao ponto de achar que só se tornando um norte-americano (ou seja, um branco, já que, na ideologia norte-americana, nem índios nem negros nem imigrantes se enquadram nessa categoria) poderá ser feliz.

A lição de que temos que aceitar nossas origens é previsível e um tanto simplória. Como disse acima, podemos mudar se isso for melhor para nós. Mas a profundidade filosófica do conto é a de que o mundo (formado ao mesmo tempo pelo espaço e pelas pessoas que o habitam) precisa aceitar as diferenças idiossincráticas como singularidades e não como defeitos.

E temos surpresas quando nos deparamos com as diferentes facetas dos personagens. Nennhum deles pode ser critalizado pela primeira impressão que temos deles. No final, não se os pode classificar simploriamente como bons nem maus.

Amarrando a trança

As três tramas têm elementos em comum, relativos ao tema do preconceito, da autoestima e da autoaceitação. Mas também elas se entrelaçam, e cada uma das três passa a ter um significado diferente depois que percebemos essa ligação. Três peças bem construídas passam a formar uma obra maior e bem-feita.

Crash: no LimiteOutra proeza  de Yang é abordar as três histórias com três estilos narrativos diferentes. A primeira tem um aspecto épico e poético, com elementos de ação e emoção que remontam ao mesmo tempo a um drama e a uma história de super-herói. A segunda se apresenta como um drama, quase um melodrama com aspectos trágicos. E a terceira é uma comédia, uma paródia dos sitcoms televisivos norte-americanos, que satiriza a forma como os meios de comunicação de massa utilizam os estereótipos étnicos para fazer humor.

Tanto o entrelaçar de histórias como a quebra de expectativa em relação aos personagens lembram o excelente filme Crash (2004), de Paul Haggis, cujo principal tema é racismo e xenofobia. O mérito de O Chinês Americano, como o de Crash, é iludir o expectador e fazê-lo experimentar, na própria degustação da obra, os sentimentos dos personagens ao descobrir as consciências pensantes por trás das máscaras das etnias, das raças ou das espécies.

5 comments

  • Pois é, @Samuel, no Brasil temos a ilusão de sermos um país branco com negros e índios como hóspedes. Mas somos um país amalgamado.

    a aceitação do outro e de nós mesmo…

    O outro muitas vezes nem é o estrangeiro, mas o menino de rua que pede esmola no sinal de trânsito ou, como alternativa, rouba. O estrangeiro rico aqui geralmente é tratado melhor.

    Mas há uma situação paradoxal e esquisita, que é quando um africano está visitando o Brasil. Não sei se você já presenciou algo assim, mas o africano negro no Brasil recebe um tratamento ao mesmo tempo desconfiado e atencioso. Não sei bem o que é, mas é como se pensássemos nele como inferior e importante ao mesmo tempo. Inferior por ter vindo da África, por representar a contribuição mais repudiada da cultura brasileira. Mas importante porque tem dinheiro para viajar e participar do mercado turístico (como freguês).

    • “por representar a contribuição mais repudiada da cultura brasileira” Na verdade a Africa representa a maior contribuição para a cultura brasileira e não a mais repudiada. A escravidão sim, mas a cultura africana só nos deu coisas boas.

      • Concordo, mas com “repudiada” eu quis dizer “desprezada”, “renegada”, “rechaçada”.

        Aí está a contradição da cultura brasileira, pois temos uma enorme contribuição das culturas africanas na constituição de nossos costumes e identidade, mas ainda tendemos a nos pensar como herdeiros mais da Europa do que dos outros povos que formaram o Brasil, e através do racismo repudiamos os elementos de matriz africana que estão tão presentes em nosso cotidiano, em nossas vidas.

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