O paradoxo da misoginia
Em nossa cultura, o sexo das pessoas e suas respectivas identidades sexuais preconcebidas são objeto de controle e coerção. Os XY são coagidos a serem machos/homens/masculinos, enquanto as XX são coagidas a serem fêmeas/mulheres/femininas, com todo um conjunto de comportamentos, trajes, parafernália e ocupações pré-estabelecidos.
Embora muita coisa já tenha mudado, em muitas instâncias de nossa vida cotidiana essa estrutura sexista se mantém forte, e a paradoxal misoginia continua a existir em pequenos gestos coercitivos de desprezo ao feminino e às mulheres que fogem dos ditames da feminilidade.
Boys will be boys
Nesse universo, a satisfação da sociedade e dos indivíduos que conservam o status quo dessa sociedade se dá quando cada membro da comunidade se encaixa perfeitamente nesse esquema “ditado pela natureza” ou “concebido por Deus”. Se mulheres e homens não se adequarem, a ordem do universo estará comprometida e os “sinais do fim do mundo” se mostrarão bem claros.
Nossa tradição sexista só encontra contentamento na adequação dos indivíduos às identidades e aos papéis preparados para eles, segundo a presença de um pênis ou de uma vagina. Uma mulher se realiza de forma “natural” quando usa vestido e maquiagem, cuida da casa e dos filhos e se entrega aos caprichos do marido, “pela graça de Deus”. Do mesmo modo se espera dos homens que sejam “masculinos”, vestindo calças, provendo a família e explicitando sua heterossexualidade.
A costela de Adão
Mas, ao mesmo tempo, o feminino pende desigualmente na balança com o masculino. As qualidades que formam um ser humano moralmente ideal e superior são geralmente as características do homem/masculino ideal: coragem, assertividade, liderança, competitividade, autonomia, foco, senso de direção etc. Não é à toa que o termo virtude provém do latim vir, significando “homem” (pertencente ao sexo masculino e não o ser humano em geral). As características tradicionalmente atribuídas à mulher/feminina não são valorizadas em si mesmas. Vaidade, passividade, dependência, submissão, superfluidade, emocionalismo e atenção dividida não são virtudes em seu sentido próprio e não são consideradas qualidades nobres.
Não é por acaso que a mulher que tenciona uma carreira independente e toma decisões sem submeter o rumo de sua vida a outro é acusada de ser muito ambiciosa, “querer demais”. Porém, o homem que não tem ambição, que se satisfaz na posição de dono-de-casa, não confraterniza com outros homens torcedores de um time e/ou não se sente atraído sexualmente por mulheres é rebaixado à condição de sub-homem, como se a feminilidade o diminuísse. A mulher/masculina é um excesso, “quer ser mais do que é”; mas ao homem/feminino falta algo, é um doente que tem que ser “curado”.
Isso explica a misoginia. Quando uma mulher é feminina, ela é colocada numa posição “naturalmente” inferior. “Você não passa de uma mulher”, canta Martinho da Vila. Paradoxalmente, “o melhor é que a mulher seja feminina, assim é que se pode aceitá-la”; mas se ela for feminina ela será inevitavelmente rebaixada. Sensibilidade e vaidade não são consideradas virtudes humanas nobres, então a mulher não seria tão humana quanto o homem (masculino).
Entretanto, se a mulher foge dessa camisa-de-força, o perigo está à solta. A violência simbólica (e em tantos casos a violência física) é ativada para colocá-la “em seu lugar”. Nessas situações o medo de bruxas acomete os conservadores, pois é um perigo para a ordem social androcêntrica ter mulheres tomando decisões, afinal, supõe-se que elas são destituídas naturalmente da capacidade de julgar e discernir. Sua “natureza” é se postar de diante de um espelho com um pente na mão e um batom na outra, e ela mesma não será feliz se não se entregar à “futilidade” que faz parte de seu âmago.
Então, se é para manter as mulheres “em seu lugar”, se é mais adequado que elas sejam femininas, o paradoxo da misoginia aparece novamente. Pois é sendo femininas, como está em sua “natureza”, que elas encarnam o papel de demônios sedutores, capazes de dominar o coração e (pior) a cabeça de um homem, destituindo-o de sua autonomia, “tirando seu sossego”, “mexendo com seu juízo”. Tanto a esposa-mãe quanto a amante-prostituta (dois extremos do confuso espectro das identidades femininas) têm o poder de domesticar um homem, seja pela chantagem emocional, seja pelos decotes e minissaias, entendidos como principais culpados pelo descontrole sexual dos estupradores.
As mulheres que, por algum motivo, não conseguem se enquadrar no moldes instituídos da beleza feminina também sofrem por não poderem ser aceitas como mulheres completas, e o desprezo pela “mercadoria defeituosa”, que não tem condições de competir no mercado de corpos, é profundamente sentido pela alma vilipendiada. O que paradoxalmente poderia ser uma libertação para elas, mas as que agradam aos consumidores desse mercado é que se sentem felizes por ser objeto da possessividade dos homens.
Exemplos de misoginia
Muitos homens não entendem o que é a misoginia, pois simplesmente pensam no sentido mais próprio da palavra, como sinônimo de ginofobia, medo de ou aversão à mulher (o que às vezes é atribuído, por exemplo, à aversão dos homossexuais pelo sexo feminino, mas não a um homem heterossexual que gosta de mulheres). Com base no que foi dito acima, eis alguns exemplos de comportamento misógino por homens (e em vários casos mulheres) heterossexuais, ainda muito comuns:
- O medo de “perder o controle” diante de uma mulher gostosona vestindo uma microssaia e a consequente atribuição da pecha de “puta” a essa mesma mulher, o que se constitui num mecanismo de defesa para o homem se eximir da culpa e da pecaminosidade, atribuindo-as ao seu objeto de desejo; “Eu odeio essas mulheres que usam decote só para a gente olhar e ficam com raiva quando a gente olha!”;
- A aversão a mulheres que não se encaixam no modelo ideal de feminilidade, especialmente quando são “feias”, embora elas mesmas não tenham nenhuma dúvida sobre sua identificação como mulher e não tenham nenhum traço “masculino” de personalidade; “Mulher de bigode nem o Diabo pode”; o desprezo a essas mulheres se acentua com o imperativo de que a mulher “tem que se cuidar” e de que “não existe mulher feia, mas mulher que não se cuida”; pouco se admite a possibilidade de um homem heterossexual gostar de uma mulher “feia”, como se este gosto fosse errado, o que fortalece ainda mais a pressão para as mulheres serem “bonitas”, sob pena de “não encontrarem um namorado” e consequentemente não serem felizes;
- A antipatia pela esposa exigente que reclama das aventuras sexuais do marido e se torna uma “megera” a infernizar sua vida, nela recaindo toda a culpa pelos problemas do relacionamento, como se sempre só fosse a mulher a responsável por “complicar” tudo;
- O rancor declarado pela “ex-amiga” que não quis sair dos limites da “zona de amizade” (“friendzone”), como se o fato de ele sentir atração sexual por ela fosse motivo suficiente para ela sentir o mesmo por ele; a imagem de femme fatale (“mulher fatal”) que recai sobre ela e consequentemente sobre todas as outras mulheres, supostamente propensas a brincar com os sentimentos de “caras legais como eu” e se entregar a “babacas como ele”;
- A raiva contida pela mulher que se destaca no emprego, superando seus colegas homens, alguns dos quais se acham desonrados e emasculados por terem sido colocados para baixo por um ser humano do sexo feminino; a vontade de se vingar dessa mulher por tê-lo colocado numa condição “inferior”;
- A raiva que muitos homens têm das feministas e o medo de que as ideias do Feminismo sejam adotadas pela sociedade; a alcunha pejorativa de “feminazis” a todas a mulheres que desejam ter os mesmos direitos dos homens; a indignação desses homens sob a justificativa de que as reivindicações feministas são “besteira”, refletindo o próprio estereótipo de que as mulheres só pensam em coisas fúteis e ou não merecem atenção ou merecem uma punição física.
As mulheres sofrem quando assumem o papel que se espera delas, pois este implica em menos liberdade de escolhas para ela, e sofrem quando fogem desse papel, pois são constrangidas a repensar sua adequação e fidelidade a um ideal de feminilidade “natural” . É claro que muita coisa mudou, mas isso não significa que essas manifestações de misoginia tenham se extinguido. Antes, significa que há aqueles que já não vivem na mentalidade dos séculos passados e que há muita gente (mulheres e homens) que não manifesta seus preconceitos e/ou procura superá-los.
Pelo que luta o Feminismo?
Então, pelo que luta o Feminismo? Pela subjugação dos homens pelas mulheres? Por uma ditadura matriarcal? Por um mundo em que as mulheres não usem maquiagem? Por uma sociedade cor-de-rosa?
O Feminismo luta por muitas coisas, mas com certeza ele não quer que o sexismo se inverta, criando uma sociedade ginocêntrica; nem que os homens sejam impedidos de assumir cargos de poder; nem que as pessoas sejam obrigadas a abandonar os papéis de gênero tradicionais; nem que se crie uma sociedade homogênea em que cada gesto e pensamento seja patrulhado em favor de uma ordem misândrica.
O Feminismo propõe uma sociedade diferente, onde as pessoas sejam mais livres. Em que as mulheres possam ser “femininas” sem serem menosprezadas por isso, ou que sejam “masculinas” sem se sentir culpadas, e onde também os homens sejam livres para fazer as mesmas escolhas. Em suma, é pela liberdade individual de ser quem é e de escolher ser quem quer que seja que o Feminismo e qualquer movimento social libertário luta.
5 comments
Uma delícia de texto.
Recentemente eu adverti um professor que falou que se o feminismo se tornasse o sistema social vigente, os homens seriam subjugados pelas mulheres. E eu falei pra ele não falar do que não sabe, que ele fosse ler Simone de Beauvoir e não Valerie Solanas, porque estava falando sobre o que desconhecia.
Ele ironizou, foi rude, dizendo que povão não leria uma Simone de Beauvoir se eles não tinham nem o básico e que eu não tinha que falar dele… etc.etc.etc.
Ele deu uma de privilegiado oprimido, falando o que não sabe, como sempre acontece quando começam a falar de feminismo sem a menor base. Que deprimente…
Abraço!
Dizer que o Feminismo é uma proposta de "sistema social" é uma incompreensão absurda.
Toda vez que um grupo oprimido apresenta à sociedade propostas para a igualdade, os grupos tradicionalmente privilegiados se sentem tão ameaçados que imaginam que os movimentos estão propondo uma inversão de papéis. Os brancos acham que o Movimento Negro quer privilégios para os negros e a opressão dos brancos, os heterossexuais acham que o movimento dos LGBTs querem privilégios para gays, lésbicas, transexuais e a opressão dos heterossexuais… E há homens (e também algumas mulheres) que acham que o feminismo é a proposta de uma sociedade ginocêntrica.
O discurso desse professor reflete a estratégia do menosprezo aos movimentos sociais, que é reflexo do próprio menosprezo tradicional aos atores desses movimentos (sejam mulheres, negros, homossexuais etc.). Também é muito cínico ao menosprezar a capacidade do povo de entender as propostas do Feminismo e insinuar que as coisas não vão mudar nunca.
Mas estão mudando e vão mudar ainda mais. 🙂
"O medo de “perder o controle” diante de uma mulher gostosona vestindo uma microssaia e a consequente atribuição da pecha de “puta” a essa mesma mulher, o que se constitui num mecanismo de defesa para o homem se eximir da culpa e da pecaminosidade, atribuindo-as ao seu objeto de desejo; “Eu odeio essas mulheres que usam decote só para a gente olhar e ficam com raiva quando a gente olha!”;"
Esse ponto aqui está dissimulando o machismo feminino.A auto-objetificação da mulher não deixa de ser machista.Nenhuma de nós é inocente quando se veste,sabemos exatamente as reações que vamos provocar nos homens. Além do mais,tal comportamento reforça o ideal de "mulher personificação do sexo",cujo poer se limita a seduzir.Não tem nada de libertário nisso apesar de eu ver feministas insistindo e se utilizando de discursos pseudo-cultos para justificar.Se nós queremos ser vistas como seres-humanos,por que ficamos defendendo o direito de personificar um objeto sexual? Roupas masculinas não são apertadas,nunca vi micro-short para os homens,não vejo os homens indo trabalhar sem camisa…creio que já está na hora de acabarmos com esta hipocrisia,porque tudo o mais que foi dito neste texto,cai por terra se nós esmas somos agentes do machismo.
Embora eu considere interessante o tema que você levantou, não acho tão relevante para o tema do texto.
O que eu quis focar no texto foi a forma pela qual a misoginia se manifesta em situações reais. Esteja ou não a mulher com a intenção de provocar os homens heterossexuais com sua forma de vestir, e sintam-se ou não estes seduzidos por ela, nada justifica a violência simbólica (misógina) que se dirige a essas mulheres pelo fato de estas usarem uma estrutura sexista a seu favor. A causa dessa tensão toda não é a vontade das mulheres de serem objeto (esta é uma consequência do sexismo), mas sim a estrutura social de dominação machista, da qual a mulher é mais vítima do que culpada.
Independentemente de qual seja a motivação para uma mulher se vestir de uma ou outra forma, ela não deveria ser repreendida por isso. Ninguém deveria. Eu defendo justamente que as pessoas deveriam ser livres para se vestir como querem sem ser alvo dessa violência simbólica.
Tenho dúvidas se a objetificação da mulher diminuiria se elas passassem a se vestir com recato. Não é a forma em si com que elas se vestem que reforça essa estrutura, mas sim o significado que a cultura imputa a uma determinada forma de vestir. Se esse significado muda, a forma como vemos e representamos as pessoas muda.
Pois esse comentário tem toda a pinta de ter sido escrito por um homem…… E um machistinha ainda por cima.
Porque as observações escrotas nele, do tipo "Nenhuma de nós é inocente quando se veste,sabemos exatamente as reações que vamos provocar nos homens" são típicas de comentários de mascus e machistas que acham que se uma mulher veste shorts é porque ELA QUER provocar, e não porque está 36ºC à sombra lá fora.