O peixe pela boca…
O Coringa interpretado por Heath Ledger, no filme O Cavaleiro das Trevas (2008), é provavelmente a melhor tentativa de se representar o arquivilão de Batman. Antes de ver o filme, não gostei da idéia de o personagem não ter as deformações presentes nos quadrinhos e usar uma pintura no rosto. Mas isso se mostrou secundário.
O Coringa é uma espécie de paródia realista do supervilão que faz o mal sem motivos aparentes. Essa crueldade inexplicável é explicada por um temperamento imprevisível e uma visão do mundo fatalista e caótica. Ele é como um menino ferido pelo mundo e que busca vingança (ou seja, ele é semelhante ao Batman na origem, mas diferente no modo de resolver seus conflitos). Seu alvo nunca é uma pessoa, nunca é uma instituição. Seu oponente é o mundo racional, e seu aliado é o lado obscuro e irracional desse mesmo mundo.
Warning: Spoilers!
Como o homem-morcego, ele não possui superpoderes, a não ser sua inteligência. Com esta, e sem obediência a regras morais, ele seria capaz de destruir Gotham City, se quisesse. Mas não é o que ele quer. Ele parece renunciar a isto, talvez por ser fácil demais, e prefere criar um jogo, uma brincadeira, com a sociedade, com o poder instituído. Ele não quer a aniquilação (nihil), mas sim a anomia. Não quer destruir as pessoas, mas enlouquecê-las.
De modo que seus crimes são como piadas, o que está implícito no seu nome inglês, The Joker, que também pode ser traduzido como O Piadista (sentido que se perdeu da palavra coringa, para nós designando uma carta de baralho – que tem a figura de um bobo-da-corte – ou qualquer tipo de substituto genérico).
Ele tem tanto poder que pode ser considerado o maior assediador de Gotham City, tramando os planos de forma ousada e superelaborada. Talvez seu maior êxito tenha sido minar todas as esperanças depositadas pela cidade no Cavaleiro da Luz, o procurador Harvey Dent, e transformá-lo no criminoso Duas Caras. Ele simplesmente remexeu com uma loucura latente do virtuoso procurador, e o converteu ao caos.
É inevitável a comparação que se pode fazer com o aliciamento de Anakin Skywalker por Darth Sidious, em Guerra nas Estrelas: Episódio III – A Vingança dos Sith (2005). Skywalker era o Escolhido, o jadi que traria equilíbrio à Força, a esperança mais promissora. Sidious usou o medo e as emoções mais icontroláveis do jovem para desviá-lo do lado virtuoso da Força e torná-lo o mais poderoso sith da história da galáxia.
Tanto o Coringa quanto Darth Vader causam uma impressão paradoxal nos espectadores. São personagens cruéis, monstros do mal que controlam o universo à sua volta segundo seus desejos. Talvez o fascínio por essas figuras venha de uma experiência infantil comum a muitas pessoas, o desejo egoísta de fazer tudo o que nos foi proibido pelos pais, pela sociedade, pela Lei.
A diferença entre eles é que Vader instituiu, ao lado de Sidious, sua própria lei tirana, ocupando o lugar onde antes havia a República e reprimindo toda manifestação contrária. O Coringa, por sua vez, quer destruir as leis, quer que os impulsos não se reprimam, mas explodam. Aristóteles e tantos outros filósofos já disseram que a virtude está no meio, nem a repressão (que destrói por sufocamento) nem o extravasamento (que destrói por desintegração).
É muitas vezes pelos instintos, pelas emoções e apegos que deixamos descarrilhar nossos investimentos pessoais mais elevados. Por causa de uma pessoa, deixamos de investir em empreendimentos que poderiam beneficiar milhares de indivíduos. Por causa de uma situação confortável, podemos renunciar a um esforço que traria satisfação para a humanidade (e conseqüentemente para nós também).
Mas às vezes a emoção pode levar ao caminho inverso, como em Sindicato de Ladrões (1954), onde o assassinato do irmão do protagonista o leva a lutar contra uma máfia que antes os beneficiava. Algumas vezes, para compreender a situação estagnada em que estamos, precisamos de um empurrão que nos desequilibre e nos mostre que precisamos aprender a usar nossas próprias pernas para andar em liberdade.
Tudo depende do discernimento, que nos ajuda a compreender o que é prioritário e o que é dispensável. Na evolução da humanidade e de cada indíviduo, a busca pelo conhecimento e autoconhecimento cada vez mais nos liberta das crenças e dos apegos que nos dominam. Dominar os próprios impulsos não é jogar fora tudo o que nos distrai e nos conforta. É, mais do que isso, não sentir falta dos prazeres quando estes estiverem ausentes.
3 comments
:- | outra análise mega-foda (ou megaboga?). Não lembro quem disse 'você morre sendo herói ou vive para se ver virando vilão', mas é por aí. O Coringa é como o promotor de justiça que cansou de ver a galera se dando bem e vira um deles (o que aconteceu om Dent); é o desacreditar na ordem: O próprio Coringa diz que só se há justiça no caos. É, ao lado do hannibal Lecter, o melhor antagonista que já apareceu em películas. Lex Luthor poderia estar por aí, mas é um galhorfa do cacete (só o Morrisson soube usar o careca bem, em seu All-Star Superman, parece. Alías, recomendadíssimo aos senhores). Já falando do 'bátima', sua tragetória do herói é clássica, mas vai contra a coisa da luta com fim pacífico; penso que se acabasse os bandidos de Gotham, o Bruce inventava uns novos, só pra dar porrada.
Serennus, o próprio Dent falou essa frase. A propósito, o que o Coringa faz com Dent é mostrar-lhe que a Justiça defendida tão fanaticamente pelo procurador é tão arbitrária quanto o caos que o palhaço traz a Gotham. As noções de certo e errado, justo e injusto, legal e ilegal são inventadas pelo ser humano, e a moeda da sorte, a roda da fortuna de Duas-Caras, é um meio de explicitar essa arbitrariedade.
O Batman não é pacifista mesmo. Ele é fruto da violência e do crime de Gotham, um ressentido que está sempre se vingando da morte do pai. Talvez Gotham City fosse mais pacífica sem ele.