O sequestro do trema
O ano de número 2009 da era comum começa, para lusófonos, com algumas mudanças de ortografia. Algumas pessoas estão reclamando da dificuldade que será aprender novas regras ortográficas. Algumas críticas, porém, se referem à arbitrariedade das novas regras, principalmente no que toca o uso do hífen.
O Acordo Ortográfico foi realizado com a justificativa de aproximar as culturas dos países falantes do português, mas vai de encontro à tendência normal das reformas ortográficas de se adequar às mudanças da língua falada, ou seja, do uso da língua. Se fosse realizado com esse objetivo, o acordo não seria internacional, pois cada país (e cada região de um mesmo país!) desenvolve sua própria pronúncia.
Se se decidisse por uma reforma ortográfica fonética, aí sim haveria motivos para pânico geral. Teríamos que acrescentar inúmeros acentos para diferenciar a pronúncia de cordeiro (côrdeiro) e corte (córte), e dessa forma a regra geral que preside a tonicidade das sílabas sofreria uma mudança escalafobética (êscalafôbética). Além disso, em algumas regiões do Brasil, cordeiro seria córdeiro e, em Portugal, seria curdairo.
Até há pouco tempo, havia duas ortografias oficiais do português: a lusitana e a brasileira. Os diplomatas estão contentes com a possibilidade agora da não necessidade de se escrever duas versões de um mesmo documento. Mas, esperem aí! É para unificar, não é? É. Então por que permanece a diferença entre o tônico brasileiro e o tónico lusitano? O português lusitano vai sofrer mais mudanças do que o brasileiro, mas ainda vai permanecer essa variação de agudos e circunflexos. Para que então a unificação, se não haverá diferença gráfica entre o presente do indicativo da terceiro pessoa do singular do verbo atear e a denominação da mulher que nega a existência de Deus? Como saber qual tem o e agudo e qual o tem grave?
É interessante ter uma gramática e uma ortografia unificadas, mesmo que esta unificação tenha restrições. Afinal, dessa forma, na comunicação entre pessoas de regiões diferentes do mundo lusófono, a escrita é compreensível. Se cada região lusófona tivesse sua ortografia, haveria mais dificuldades na comunicação. Neste aspecto, acho que unificar é, em teoria, uma boa ideia.
Em teoria. Pois, pessoalmente, não vejo nenhuma dificuldade na leitura de textos escritos em português de Portugal. Já ouvi algumas pessoas reclamando por terem que aturar a leitura de um livro de que só encontraram a versão lusitana. Ora, qual a dificuldade de substituir fato por facto, objeto por objecto, econômico poreconómico e idéia por ideia? Tenho dúvidas se os enormes gastos para reimprimir milhares de textos e livros valem uma unificação que muda menos de 1% das palavras de um idioma (até este ponto neste texto, só houve duas palavras escritas segunda a nova ortografia). Será que já houve algum manifesto ambientalista contra essa reforma?
E se vão retirar o hífen de muitas palavras, por que não o extirparam de uma vez? Se pára-quedas agora é paraquedas, por que anti-higiênico não é antigiênico? Ora, se vamos mudar, porque não mudar para melhor e simplificar as coisas? Se subumano continua assim, deveriam estipular circunavegação e não o esdrúxulo circum-navegação.
Está-se enfatizando, como se isso representasse algum atenuante, que a reforma não mudará a pronúncia. É claro que não existe a intenção de modificar a pronúncia, mas lembremo-nos que sempre há as consequências (olhe, mais uma!) imprevistas. Se a palavra tóxico, cultamente pronunciadatócsico, se popularizou em grande escala como tóchico, consequência da leitura fonética que naturalmente pensa o x com som de ch, o que impedirá algumas pessoas em processo de alfabetização ou com alfabetização deficitária de difundirem em alguns meios a pronúncia sekestro ou consekência? E o que será da hilária empresa de uns metidos a cultos que pensam que falar cuestão é sinal de erudição? Afinal, agora ninguém mais sabe quais são os os us que tiveram seus tremas sequestrados, e não haverá fiscais em todo lugar para assegurar que a linguiça foi mutilada e o banguela não.
Se ainda não se inteiraram das novas regras ortográficas, confiram este link.
Nota pós-texto
Este texto fora publicado originalmente em 5 de janeiro de 2009.
5 comments
Já cheguei a conclusão que a língua portuguesa não e para se entender, mas apenas para se obedecer cegamente.
Eu, por exemplo, tenho uma deficiência vergonhosa em português. Nunca sei quando se deve usar: "S", "SS", "Ç" ,"C" ou "Z". Sempre procurei uma regra (no estilo antes de "P" ou "B" não se escreve "N") que me orientasse na ora de escolher o "S" correto, mas nunca encontrei.
Graças a Deus existem os programas corretores ortográficos, eles me livram do estresse de ver o PEDANTES discutirem meu erro de escrito no lugar de minhas idéias.
Nossa vários erros escaparam do corretor ortográfico no meu comentário acima.
Bizarra essa linguiça do banguela…
A Reforma Ortográfica veio mais para contemplar alguns interesses que pare facilitar a vida do falante do Português. Infelizmente. Fosse uma reforma de verdade acabaria com esquisitices complicadas de palavras com mesmo som serem escritas com letras diferentes. Seria tão mais fácil aprender a escrever "prócimo" com "c" ou "esigir" com um "s" ou com "z", mesmo, sei lá.
Mesmo o escritor José Saramago, único Nobel falante do Português, sofreu com essas reformas na língua escrita. Numa entrevista ele comentou que quando entrou na escola insistia em escrever a palavra mãe com "i" no final (mãi)e foi com muita luta e insistência da professora que passou a escrever conforme a ortografia oficial. Passados alguns anos uma reforma ortográfica mudou a grafia da palavra "mãe" para "mãi" e ele precisou fazer todo o caminho de volta. Mais alguns anos e, quando escrever mãi já não era mais um problema, a grafia da palavra muda novamente e volta a ser escrita com a letra "e" no final. O problema só não foi maior na cabeça do jovem Saramago porque, segundo o escritor, sua mãe continuava a mesma.
José Saramago não se opunha a unificação ortográfica da Língua Portuguesa, mas já adiantava que não mudaria seu jeito de escrever. Os editores que se preocupassem em corrigí-lo.
Tudo bem que eu não sou nenhum Saramago, mas desencanei um pouco de assimilar as novas regras. Para mim escrever ideia sem acento ainda causa estranheza. Mas aos poucos eu chego lá. Pena que os corretores ortográficos que uso no PC ainda não incorporaram a nova grafia. Tomara que sejam atualizados logo porque, assim como o Ambar Amarelo, eu não sei o que seria de mim sem eles.
Talvês fôssi interesânti uma escrita mais fonética, mas daria múintu trabálhu escrever asim.
Só que eu acho que a retirada do acento de "ideia" e do trema são até uma economia de esforços para as gerações que crescerem aprendendo essa grafia. Para quem foi educado na grafia anterior, infelizmente, o esforço da adaptação é grande…