O universo colorido de Steven

Há tanta, tanta coisa a se falar sobre Steven Universo (Steven Universe) que cá eu fico planejando vários textos para abordar tantos dos temas que aparecem ao longo dessa bela série. Mas se não vier a ser o caso, ao menos vou apresentar aqui diversas das razões porque acho esse desenho animado tão apaixonante e instigante e porque penso que vale a pena lhe dar uma chance.

Steven Universo, uma criação de Rebecca Sugar, que também trabalhou na equipe de Hora da Aventura e outras séries do Cartoon Network, veio a público em julho de 2013, com um episódio piloto dirigido por Genndy Tartakovsky (conhecido por ser o criador de O Laboratório de Dexter e Samurai Jack), mas estreou oficialmente em novembro daquele ano. Desde então completou 3 temporadas e se encontra no meio da 4ª. Um de tantos fatos notórios de Steven Universo é que foi a primeira série animada do Cartoon Network a ser totalmente idealizada por uma mulher.

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Embora não seja tão popular quanto outras franquias do mesmo canal, tem um sólido público cativo (e, diga-se, bem diverso, o que está relacionado a alguns dos aspectos mais relevantes dessa obra) que acompanha de perto o desenvolvimento da história do pequeno Steven e suas mães/guardiãs, as Crystal Gems (ou Joias de Cristal, como são conhecidas em Portugal).

Quando vi pela primeira vez, acho que em 2013, pareceu-me mais uma dessas séries animadas louquinhas do Cartoon Network, estilo Hora da Aventura ou Titio Avô, e eu estranhava o fato de que a tradução do título Steven Universe fosse Steven Universo e não “Universo do Steven”. Apesar da presença marcante de personagens femininas ter me chamado alguma atenção e embora Steven Universo focasse no amadurecimento do protagonista e na solução de problemas como forma de amadurecimento (diferente de outros desenhos nonsense da mesma época), eu deixei a série de lado. Por um bom tempo.

Então “a internet” chamou minha atenção para a franquia novamente. Grupos sobre cultura nerd elogiando a série e enfatizando seus aspectos pró-diversidade, o entusiasmo de fãs que pareciam estar falando de uma mitologia grandiosa, e finalmente uma resenha em vídeo mostrando que Steven Universo representa a expressão das emoções por parte de personagens masculinos como uma coisa normal e não como sinal de fraqueza… tudo isso me levou a dar um play na série quando percebi que estava no catálogo da Netflix.

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Aí eu descobri que Universo é o sobrenome do protagonista (provavelmente o título da série em inglês é um trocadilho – e trocadilhos são abundantes nos diálogos e músicas do desenho – quem me conhece sabe que adoro trocadilhos). Aliás, seu nome é Steven Quartz Universo, sendo ele filho de Rose Quartz (literalmente, Quartzo Rosa) e Greg Universo, ela uma alienígena e ele um humano.

O fato de o nome de sua mãe ser o nome de uma pedra está ligado a um dos conceitos básicos do universo da série, que é a existência de uma espécie alienígena conhecida como gems (“gemas”, “joias”, “pedras preciosas”). As gems são em essência as pedras que lhes dão nome, e suas formas corpóreas antropomórficas são projeções holográficas que lhes permitem interagir com outros seres e com o ambiente. As principais gems da franquia são Garnet (que em português seria traduzida como “Granada” ou “Granate”), Ametista, Pérola e o próprio Steven, que possui em seu umbigo a gema de sua mãe. Essas quatro personagens juntas formam o grupo Crystal Gems (“Gemas de Cristal”), que se encarregam de proteger a Terra (ou mais especificamente Beach City, onde moram) de monstros alienígenas ameaçadores.

Logo no início chamam atenção essas personagens pitorescas, com fortes e contrastantes personalidades, três mães com estilos totalmente diferentes tentando orientar o pequeno Steven em sua trajetória para se tornar um herói como elas, aprender a encontrar soluções para os problemas que enfrentam e descobrir e controlar seus próprios superpoderes.

Garnet é a líder do grupo, uma mulher centrada, que combina força bruta com poderes divinatórios, uma pessoa que sabe quando ser dura e quando ser doce. Ametista é uma guerreira desleixada e brincalhona, o estereótipo da tiazona divertida que brinca com Steven quase como se fosse sua irmã, aquela figura materna permissiva que alivia as tensões da rígida disciplina. Esta é encarnada por Pérola, uma esgrimista perfeccionista, a mãe que orienta a manter as coisas em ordem e a não perder o foco das responsabilidades.

O pai de Steven, Greg, mora numa van na mesma cidade e, embora não convivam diariamente, eles têm uma forte ligação afetiva e carinhosa. Músico, abandonou a carreira promissora para se dedicar a Rose e, consequentemente, ao filho, a quem ensinou tudo sobre instrumentos musicais, canto e composição. Toda essa configuração familiar já demonstra de cara que a série não está preocupada em reproduzir valores tradicionais de parentesco, e sim apresentar ao telespectador uma diversidade de tipos de pessoas e de laços interpessoais.

As relações interpessoais também aparecem na forma alegórica das fusões, que são o resultado da união de duas ou mais gems, formando um novo indivíduo que combina suas personalidades e poderes. Uma fusão só ocorre de maneira efetiva com o consentimento mútuo de seus componentes. Isso leva a série a explorar diversas situações que simbolizam relacionamentos afetivos, sejam de amizade ou de amor, bem como conflitos que se configuram a partir de mágoas, necessidade de perdão e relacionamentos abusivos. Quando Pérola e Ametista precisam se unir para salvar Steven, por exemplo, elas precisam resolver um pequeno conflito de personalidades antes de tornar uma fusão.

Neste ponto é importante salientar que, à medida em que o telespectador mergulha no universo de Steven e das Crystal Gems, o clima da série vai ficando mais dramático, sério e maduro. A trama vai se constituindo numa trajetória épica de grandes proporções, um universo de ficção científica repleto de detalhes e personagens misteriosas que aos poucos vão se revelando e instigando o telespectador com suspense, levando-nos a elaborar teorias e especulações a cada novo mistério desvendado.

Um dos grandes méritos da série é ser uma combinação bem-feita de comédia e drama, além de ter um alcance etário fenomenal. As crianças que assistem percebem que há algo mais ali do que simplesmente boas risadas, ação e aventura, mesmo que não saibam explicar bem o que é. E os adultos sabem muito bem do que se trata.

Nesse rico universo colorido e animado por uma arte que abunda em tons pastéis, cenários singelos e vivazes, uma animação doce e simples e uma espetacular trilha sonora que aproxima a série de uma animação musical da Disney, com letras e melodias de alta qualidade artística, os próprios aspectos estéticos vão evoluindo com a história, especialmente as canções, que começam como melodias bobas e chegam ao nível de composições dramáticas que enriquecem o entendimento sobre os principais personagens e suas histórias pessoais.

Quanto aos temas mais instigantes abordados em Steven Universo, vemos, entre outros:

  • reflexões sobre os efeitos negativos do colonialismo e a importância histórica da resistência à dominação;
  • ponderações éticas sobre a necessidade ou não da violência e do assassinato em situações críticas de guerra;
  • relacionamentos afetivos queer, que fogem do padrão heteronormativo e cisnormativo;
  • a quebra da dicotomia masculino/feminino na construção e apresentação dos personagens, com certa fluidez de identificações de gênero e a valorização da feminilidade e/ou masculinidade de personagens cisgêneros;
  • a já mencionada diversidade de famílias, bem como o drama dos relacionamentos abusivos.

Esses temas estão perpassados por uma das características fundamentais que diferenciam Steven Universo de outras narrativas sobre o amadurecimento de jovens heróis do sexo masculino. A forte presença do feminino na vida do protagonista, especialmente na forma das Crystal Gems e dos outros membros da raça delas, sejam aliadas, sejam antagonistas – as gems são todas do gênero feminino. Embora fisiologicamente não tenham sexo, não se reproduzindo sexuadamente e sim através de um processo sintético, elas têm todas voz feminina e se referem umas às outras com pronomes femininos.

Essa valorização do feminino salta aos olhos na imagem do templo onde as Crystal Gems moram, esculpido na forma de uma gigantesca mulher de vários braços que as abriga na altura do ventre, como se fosse uma imensa deusa-mãe. Essa estátua também traz em si a aura de uma força sobrenatural que imbui Steven com seus poderes e que remete a sua própria mãe. De certo modo, Rose Quartz deu a própria vida para que seu filho pudesse nascer, ela existe nele através das habilidades concedidas pelo quartzo rosa em seu umbigo.

É bastante significativo que Steven Universo seja um garoto bastante diferente de outros jovens do sexo masculino em histórias de aventura e super-heróis. E uma das coisas que o tornam diferente é que ele abraça sua feminilidade sem tabus. Essa assunção de sua faceta yin é evidente nas principais características do personagem. Seus principais poderes enquanto gem não têm natureza ofensiva e sim defensiva: ele é um protetor e um curandeiro. Além disso, sua empatia o torna uma personalidade extremamente diplomática, compreensiva e acolhedora.

Por outro lado, suas aliadas Crystal Gems assumem alguns papéis normalmente atribuídos a personagens masculinos, especialmente no que tange a seu aspecto guerreiro. É interessante observar como em diversas situações as posições tradicionais nas relações entre homens e mulheres se invertem em Steven Universo. Um exemplo entre vários é quando Sadie e Lars ficam presos numa ilha com Steven: ela se torna uma pescadora audaz enquanto ele se revela um ótimo cozinheiro.

Todas essas inversões nos ajudam a repensar os papéis socialmente atribuídos a homens e mulheres, bem como a arbitrariedade dos comportamentos sexualmente diferenciados. Steven, as Crystal Gems e os outros tantos coadjuvantes e antagonistas pitorescos da série não são apenas espelhos invertidos dos gêneros atribuídos a eles, mas sim pessoas complexas, gemas multifacetadas que incorporam aspectos tradicionalmente classificados como femininos ou masculinos, sem deixar que suas identidades de gênero determinem ou limitem as possibilidades de suas existências.

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