Pretas versus brancas
O desenho animado A Turma do Bairro (KND: Codename Kids Next Door, no original) retrata uma fantasiosa guerra entre crianças e adultos. Aquelas têm uma organização militar mundial que visa a enfrentar a tirania destes. Entre os grown-ups, há vários supervilões com seus capangas, que se esforçam para manter os pirralhos em seu devido lugar.
Além dessas frentes, ainda há os adolescentes, que formam uma organização à parte, que também são inimigos das crianças. Outras vezes também aparecem os idosos. Qualquer que seja o contexto de conflito, tanto crianças quanto adolescentes quanto adultos quantos velhos não se dão bem com as outras gerações. De modo que, quando uma criança completa 12 anos de idade, é automaticamente desabilitada do status de criança, e se torna um inimigo da Turma do Bairro. Foi esse curioso aspecto da série que me fez escrever este texto.
Não se trata, portanto, de uma congregação baseada em afinidades de ideais. E o conflito não é um embate entre ideais divergentes. A não ser que se considerem as disparidades entre os interesses das crianças e dos adultos (e as outras gerações). Neste caso, temos simplesmente a instituição da não-conciliação entre grupos cujas diferenças, por si só, não deveriam ser motivo de desarmonia (mas o são).
Num episódio da primeira temporada de Babylon 5, “A Geometria das Sombras”, os Drazi, espécie de aparência reptiliana, põem em prática uma antiga tradição segundo a qual, a cada 5 anos, toda a população Drazi entra em “guerra civil”, e eles se dividem, por sorteio, em dois grupos, o verde e o roxo, e cada integrante de cada grupo porta uma fita com a cor correspondente. Dá-se então uma guerra entre os dois grupos, durante um dia. Se alguém, por acaso, trocar a fita, automaticamente muda de grupo e se torna aliado dos que antes eram seus inimigos, e inimigo dos que eram seus aliados. A tenente Susan Ivanova consegue impedir que os Drazi residentes em Babylon 5 provoquem uma catástrofe, simplesmente tomando dos líderes dos dois grupos as suas fitas e se tornando líder de todos eles.
Ambas as situações representam grande parte dos conflitos encenados pela humanidade. Os preconceitos não são apenas baseados na ignorância sobre o outro, mas também na pressuposição de que deve ou deveria haver algum conflito entre pessoas de grupos tradicionalmente reconhecidos como rivais ou, no mínimo, como diferentes. Não é à toa que algumas pessoas usam a palavra diferença como sinônimo de desavença. Certa vez ouvi uma mulher dizer:
Você sabe que aqueles dois têm uma diferença.
Provavelmente se trata de uma corruptela, da mesma forma que “menino impossível” certamente deriva de “menino impulsivo”. Mas esse uso guarda uma chave para se entender a forma como as pessoas vêem as relações interpessoais conflituosas. Pois a diferença percebida, mesmo que falsa ou forjada, provoca reações espontâneas de discriminação. Vejam o caso da mulher israelense que passou alguns dias “disfarçada” de palestina e foi alvo de olhares recriminadores e até de ameaças.
Ainda no âmbito do Oriente Médio, Marjane Satrapi, em sua autobiografia Persépolis, mostrou sua situação quando viveu na Alemanha, adolescente, longe dos pais. Em alguns momentos, para ter um pouco de sossego, fingiu ser francesa, até adotando o pseudônimo Marie Jeanne. Mas não conseguiu se disfarçar por muito tempo, pois as pessoas percebem alguns detalhes que evidenciam a “real identidade” de alguém, e não perdoam sua tentativa de se passar por quem não é.
Mas a defesa de uma autenticidade é tão importante? O que é “ser fiel a si mesmo”? Eu posso mudar grande parte de minha personalidade, se eu achar que isso é melhor para mim, e ninguém venha me dizer que estou traindo a mim mesmo. Tudo aquilo que cada um tem de potencial para ajudar a tornar o universo um lugar melhor pode ser cultivado e aprimorado. Mas há coisas que é melhor descartar. Tais quais o preconceito e a belicosidade que nos dividem arbitrariamente. Por que não, arbitrariamente, decidirmos derrubar de vez as fronteiras invisíveis? Talvez isso aconteça, como sugere Pablo Neruda (falando da América, mas podemos estender esse horizonte infinitamente),
cuando nuestra América sea libre, cuando sus pueblos se hablen y se den la mano a través de los muros de aire que ahora nos encierran […]
9 comments
Oi Thiago, vim aqui através do blog da Tina. Adorei esse texto.
Não tenho a mínima paciência para a Turma do Bairro, nunca assisti por completo. Fiquei chocada com essa colocação. Caramba, "eles" (sujeito indeterminado) vão detonando a cabeça das crianças, assim, na lata, né! Estava lendo um texto de Sto. Agostinho que dizia assim: "O objetivo das guerras é a paz."
Ahhhh, fala sério. Dá vontade de tirar "as fitinhas verdes e roxas" do braço de todo mundo, né não?
Beijos e parabéns por esse texto. (agora vou ter que assistir TB).
Flávia, obrigado pela visita, muito estimada.
O interessante é que A Turma do Bairro diverte mais os adultos do que as crianças, pois é cheio de referências à cultura popular de algumas décadas atrás, como cinema e TV. Tem uma veia satírica que dificilmente um infante vai entender. E eu até gosto, pois acho muito criativo, apesar do viés belicoso (coisa de norte-americanos).
Há grande hipocrisia nessa história de “si vis pacem, para bellum”. Se queres a paz, prepara-te para ela, isso sim.
Nessa linha de cartoons atuais, curto muito ben10
recomendado para pessoas "jovens ainda"!
Samura, eu tentei assistir a esse tal de Ben 10, mas achei sem graça. A receita até que não é má, mas penso que faltou recheio.
Primeiro , gostaria de agradecer imensamente pelo banner acrescentado ao teu blog. Acho ótimo que você e a Flávia se tenham encontrado através do meu blog.
Não tenh omuita paciência para desenhos animados mais. Gostava muito do Tom & Jerry,
nas maatinês da Metro na Tijuca. Vi n oSedentário e Hiperativo o curtíssimo que precede o
filme Wally-E. Aliás, confesso que gosto de todos os filmes animados da Pixar.
A mulher que fez Persépolis foi embora da França porque eles proibiram o cigarro nos cafés e restaurantes. Pode?
Tina, também agradeço a você.
Também não sou fã de desenhos animados, mas há alguns que divertem.
Há também Os Simpsons, que é um caso à parte.
E há os filmes da Pixar, que eu não classificaria como desenhos animados, não porque sejam feitos em computação gráfica, mas porque superam em muito e de forma positiva todo o conceito consagrado do que é cartoon.
É, eu havia lido que Satrapi se indignou com essa proibição. Em Persépolis, ela mostra que um médico lhe deu a chance de parar de fumar, sob o risco de morte. Caprichos humanos.
Oi Thiago! Pois é, também vou sentir muita falta dela.
As visitas diárias, risadas garantidas. A gente trocava emails divertidíssimos escrachando a "homarada"…;)
Tinha combinado com ela, que iria visitá-la em janeiro… Ficou muito longe. Deveria ter me apressado.
Mas essas coisas a gente não controla.
também espero encontrá-la, no seu universo anárquico.
Beijão.
Curto bastante o Padrinhos Mágicos 🙂 Assim como em KND, é repleto de referências culturais. Genial!