Quilombo de Acauã conquista acesso à terra
[Publicado originalmente na Carta Potiguar N.5 – Maio/2013]
O dia 23 de abril de 2013 foi de festa para os quilombolas da Comunidade de Acauã (também conhecida como Cunhã). Na ocasião, o INCRA se imitiu na posse das terras que, a partir do processo de titulação que ocorrerá em breve, serão propriedade definitiva da Comunidade, recuperando um território tradicionalmente ocupado e necessário à sobrevivência do grupo.
Desde décadas antes dos anos 1970, a Comunidade Quilombola de Acauã vivia em relativa paz na margem sul do rio Ceará-Mirim, município de Poço Branco, Rio Grande do Norte. Com a construção da Barragem de Poço Branco, os Negros da Cunhã (como também são conhecidos), perderam todas as suas casas e toda a terra que utilizavam para plantar e sobreviver. Num acordo bastante desfavorável para eles e sem qualquer indenização pela perda, os quilombolas passaram a morar ao norte do rio, longe do lugar a que tradicionalmente pertenciam, num pequeno lote de 4 hectares. As 16 famílias que para lá foram na época se multiplicaram e hoje são mais 60.
Em 2004, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA iniciou o processo de regularização do Território Quilombola de Acauã, dentro das ações do Programa Brasil Quilombola. Um relatório antropológico, realizado pelo professor Dr. Carlos Guilherme Octaviano do Valle, da UFRN, mostrou o histórico de ocupação da comunidade no território e apontou que sua origem remonta a ex-escravos, provavelmente fugidos do cativeiro ou retirantes do pós-Abolição.
Esse estudo justificou o reconhecimento de um território que não apenas abrange as terras anteriormente ocupadas pelos Negros da Cunhã, recuperando o que era seu, mas abarca outras terras necessárias a sua sustentabilidade e existência enquanto grupo étnico. Esse Reconhecimento do Território pelo INCRA ocorreu em 2008.
Porém, a história da Comunidade, do passado até o presente, é mais complexa e conflituosa do que pode parecer para quem leu este artigo até aqui e nunca ouvira falar sobre Acauã. Como grande parte das comunidades rurais negras espalhadas pelo Brasil, Acauã sempre foi marcada pela invisibilidade social. Uma dessas marcas se constata na pesquisa cartorial feita pelo INCRA para averiguar o histórico das propriedades particulares que incidem sobre o Território.
Nas certidões retiradas pelo INCRA, não há qualquer menção a uma comunidade negra ou rural no local onde os quilombolas costumavam morar, às margens do rio Ceará-Mirim. A cadeia dominial da Fazenda Maringá descreve os limites do imóvel, numa época anterior à construção da Barragem de Poço Branco, como abrangendo uma grande extensão de terras que ao norte chega até a margem sul do rio, como se não houvesse ninguém morando ali. Mas as fundações das casas dos quilombolas até hoje ainda podem ser vistas quando o rio está baixo, e a história oral contada pelos anciãos da Cunhã mantém viva a memória desses tempos.
O descaso não diminuiu quando a Comunidade perdeu suas terras para a Barragem, pois não receberam indenização e foram forçados a se espremer em um pequeno retângulo, sem terras boas para plantar, sendo obrigados a arrendar terras de fazendeiros vizinhos, numa situação que ecoa o status quo da Escravocracia.
Além disso, Acauã sempre foi ignorada pela administração municipal local. Numa atitude de extremo racismo institucional, a Prefeitura de Poço Branco não recolhe o lixo da Comunidade com regularidade, dificulta o acesso dos quilombolas ao sistema de saúde e desvia os recursos destinados à educação no Quilombo, recebidos do Governo Federal exclusivamente para cumprir o Programa Brasil Quilombola. Não houve sequer um representante da Prefeitura de Poço Branco na cerimônia de imissão de posse do INCRA.
Não bastassem todas as dificuldades, alguns proprietários cujas terras foram incluídas no território reconhecido tomaram atitudes retaliativas contra a Comunidade, principalmente ao impedir os quilombolas de usar seus imóveis para a agricultura. Um dos proprietários conseguiu se utilizar do desconhecimento de algumas instâncias da Justiça sobre a questão quilombola para anular a desapropriação de sua fazenda, onde justamente se encontram as ruínas da Cunhã Velha. Alguns juizes e desembargadores ainda pensam em quilombo como um conjunto de negros fugidos da escravidão, desconsiderando um conceito atual, usado pelos movimentos sociais e na Academia, que abrange diversas situações de resistência à opressão histórica.
Mas a Comunidade conseguiu se manter de pé até agora, e conquistou o direito de acessar seu território tradicional, com a possibilidade de em breve construir novas casas e articular projetos de beneficiamento para se integrar à economia regional e sair da penúria. A regularização do Território Quilombola de Acauã é uma inegável reparação histórica.
Quem esteve presente na cerimônia de imissão de posse pôde testemunhar o contentamento nas músicas e poemas declamados pelos quilombolas, nas lágrimas dos idosos que vislumbram o retorno de uma vida melhor, na alegria de adultos que encaram novas perspectivas e nos sorrisos de crianças que, talvez sem entender bem do que se trata tudo isso, sentem que algo bom se avizinha.
Acauã é uma comunidade quilombola exemplar, pois representa grande parte dos problemas sofridos pelas diversos grupos rurais marginalizados Brasil afora. Mas é exemplar especialmente porque representa a atitude ideal de uma comunidade étnica racialmente discriminada, buscando seus direitos, transformando sua autoestima e planejando um futuro livre dos grilhões do racismo.
[Na imagem em destaque, Sr. Marino Catarino, um dos anciãos de Acauã, assina como testemunha o mandado de imissão de posse do INCRA no Território Quilombola.]