Reino de ninguém
Acordei cerca das 8:45, para escovar meus dentes e tomar sossegado meu café-da-manhã. Alguém bate palmas à porta, e Edilma, a empregada doméstica, está ocupada limpando a casa. Meus pais e meu irmão estão fora, minha irmã e minha prima ainda estão dormindo, e tenho que interromper meu tranquilo café-da-manhã para atender a duas senhoras que se apresentam como “pessoas que decidiram sacrificar um pouco do seu tempo para ler a Bíblia com os moradores da vizinhança”. Por alguma razão que ainda desconheço, vieram fazê-lo, certamente sem sabê-lo, com um ateu.
Bem, naquele momento eu queria mesmo é estar terminando calmamente minha refeição, e procurei atentar para que o encontro fosse o mais breve possível, não só porque eu tinha outras coisas para fazer (além do desjejum) como porque não estava muito disposto a redarguir com minha posição sobre o assunto, devido à hora do dia e às circunstâncias do encontro, duas senhoras, uma com mais idade, com quem seria desgastante trocar uma discussão. Mas me dispus ao menos a dar-lhes a mínima atenção.
Uma delas, a que se apresentou e à outra, começou a conversa dizendo que iam falar sobre segurança:
“Hoje em dia nos preocupamos muito em colocar grades em nossas casas, cercas elétricas, não é?”, disse ela, olhando para as grades da minha casa.
“É.”
“Você já se perguntou se um dia essa necessidade de segurança vai acabar, se vamos viver em paz?”
“Já.”
“E a que conclusão você chegou ao pensar nisso?”
Então, tantando ser o mais sucinto possível para abreviar o mais rápido possível o encontro, eu disse:
“Acho que é muito difícil, mas não impossível. Se depender da postura íntima de cada um, podemos mudar o mundo.”
Ela escutou minhas palavras com um olhar que dizia: “Embora eu não precise prestar atenção ao que você está dizendo, tenho certeza de que você está equivocado, pois tenho a resposta certa bem aqui na minha manga.” Não era exatamente na manga, mas na bolsa, da qual ela retirou um pequeno exemplar da Bíblia, dizendo que a resposta àquela pergunta ali poderia ser encontrada.
“Você tem uma Bíblia em casa?”
“Tenho.”
“Então depois você dá uma lida melhor para entender, tá certo? Aqui o capítulo 37, versículos 10 e 11 de Salmos, diz: ‘Ainda um pouco [ou seja, tendo paciência] e não existirá o ímpio [ou seja, os maus]; examinarás o seu lugar: já não estará ali. Mas os humildes possuirão a terra e desfrutarão de abundante paz.’ E depois, no versículo 29: ‘Os justos possuirão a terra e a habitarão para sempre’. Ou seja, os maus serão exterminados pelo Senhor e os justos viverão num mundo de paz, onde não haverá doenças. Entendeu agora? Quando Jesus vier, nosso mundo será um mundo onde as pessoas não envelhecerão, não haverá morte e, principalmente, não haverá doenças. Entendeu agora?” (Os trechos em colchetes são explicações da mulher sobre a passagem que leu, que aliás, lembro bem, não corresponde exatamente às mesmas palavras aqui escritas, copiadas da tradução que tenho, diferente da que ela tinha em mãos.)
“Ãrrã.”
Ela me entregou um panfleto sobre o novo mundo das Testemunhas de Jeová, dizendo que eu o lesse depois para compreeneder melhor aquele projeto escatológico, e nos despedimos sem mais delongas. Mas depois eu me perguntei se não teria valido a pena ter complementado minhas curtas respostas com observações que lhes mostrassem que suas palavras não foram para mim nenhuma lição. Eu poderia ter dito: “Entendi o que quer dizer, mas, como eu já disse, penso que é um projeto que para ser realizado depende de nosso trabalho, não da espera(nça) em um mito. Além disso, esse seu deus poderia ser mais justo e tentar ensinar os “maus” a serem “bons”, ao invés de excluí-los.”
Essas palavras seriam realmente breves, e não custaria muito para mim pronuciá-las. Mas se o tivesse feito, talvez eu as estivesse convidando a prolongar ainda mais minha espera(nça) de terminar meu café-da-manhã…
Nota
Esta crônica foi publicada originalmente na primeira Teia Neuronial, no dia 20 de janeiro de 2005 e. c., mesmo dia no qual ocorreram esses acontecimentos. Esta versão está atualizada com a nova ortografia da língua portuguesa.
9 comments
Segunda edição.
"(…) as estivesse convidando a prolongar ainda mais minha espera(nça) de terminar meu café-da-manhã…"
Fizeste bem. Inúmeras vezes, testemunhas de jeová bateram à minha porta, sempre com uma abordagem dessas, de pegar um problema ou situação real e trazer para dentro dos escritos bíblicos. E sempre foi esse papinho mole, lendo alguma passagem e "interpretando" as partes mais "obscuras" para se fazer entender.
Acho que eles querem vencer pelo cansaço, sabe? Logo, mudei de estratégia: não atendo a campainha se não reconhecer quem for de longe. Com isso, evito duas coisas: testemunhas de jeová e visitas surpresa. Não sei dentre as duas qual gosto menos, rs.
Inté!
Acho que todo mundo que conheço tem uma experiência parecida para contar. Felizmente, pelo menos onde moro,essas "visitas" rarearam bastante, mas ainda é comum ser abordado na rua ou num ponto de ônibus por “pessoas que decidiram sacrificar um pouco do seu tempo para ler a Bíblia com os moradores da vizinhança”.
Hoje, assim como o Joey eu prefiro não atender. Quanto a ser abordado na rua posso dizer que mudei minha postura de uns tempos para cá. Se antes eu procurava questionar e discutir as mensagens lidas na Bíblia por estes crentes, de modo a fazê-los se arrepender por terem parado a pessoa errada, hoje eu agradeço a mensagem, digo que estou com muita pressa, agradeço o "Deus lhe abençôe" que sempre recebo e me despeço com um "fica com Deus". Geralmente é rápido e indolor. Não adianta prolongar muito esse tipo de diálogo _ se bem que algumas vezes pode ser bem interessante.
Há alguns anos dois jovens evangélicos se aproximaram de mim num ponto de ônibus para oferecer uma mensagem impressa numa espécie de "santinho" e ao ouvir a minha recusa em aceitar, um deles perguntou qual a minha religião."É Católico? Espírita?" Respondi que não. "É o que, então? Não é nada?", o rapaz perguntou. "Só existem essas opções?", perguntei. "Existem muitos caminhos", o outro respondeu, "mas só um leva até Deus. Só Jesus Salva"! Emendou.
uma vez disse a um tio meu, pastor, que acabara de dizer 'ide aos povos e pregai a palavra': 'vá e encha o saco dos outros'. É como vender herbalife, sem emagrecer nem nada. Toda vez que me aporrinham com essas arrogancias eu ligo o modo 'professora do Charlie brown': mounmonmomomomom! É só o que escuto.
Realmente uma coisa é certa, quem sai para pregar uma 'verdade' não está interessado em ouvir nenhuma outra opinião (sei disso porque já fui crente rsrsrs). Então a melhor estratégia é responder com um: "…É verdade…" (concordar sempre) e se o papo demorar demais avisar que você vai sair para algum lugar e não pode continuar a atende-las.
Ou, claro, dizer logo que é ateu, que não acredita em nada disso e não está com tempo para ouvir a palavra de Deus, Muito obrigado e passar bem (com uma voz suave claro). heheheh
O que eu acho curioso nessas pessoas (olhando para o indivíduo e não para a instituição) é que elas se dedicam a uma causa (por mais equivocada ou inútil que possa me parecer).
Olá Thiago, ao ler estas suas linhas me lembrei deste vídeo. Não é exatamente sobre as Testemunhas de Jeová, mas é sobre uma seita igualmente pertubadora da nossa paz…
Pagando com a mesma moeda – pregando ateismo a lá mormon
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Abraços
@Joey, felizmente agora moro em apartamento (eu morava na casa dos meus pais na época em que escrevi o texto), e não tenho mais esse problema.
@Eduardo, esses evangélicos que afirma só haver um caminho (o que eles conhecem) precisam de umas aulas de Antropologia…
@dyego, talvez essa estratégia funcione às vezes, mas pode causar confusão se perceberem que você não está prestando atenção… se bem que isso pode até fazer com eles se deem conta do inconveniente que é ficar blablablando na cara dos outros.
@AmBAr, pessoalmente, incomoda-me ser hipócrita nessas horas. Prefiro ficar calado a concordar…
@Roberto , tenho a sorte de nunca ter sido abordado por mórmons, mas imagino que seja parecido. E o vídeo é realmente interessante. Qualquer tipo de proselitismo, seja religioso ou político, é um constrangimento para as outras pessoas. Mas normalmente a liberdade alheia (nem a de si mesmo) não é relevante para esses pregadores da "verdade".
Absurdamente clássica essa cena q vc descreveu.
Lembro de uma que se ofereceu (impetuosamente) a voltar em minha casa para me "ajudar" a ler a bíblia.
Um amigo, depois de dizer incessantemente que não poderia atender, resolveu abrir a porta e mostrar que estava apenas de cueca.
As duas senhoras praticamente fugiram, enquanto pediam desculpas e tentavam tapar os olhos de tal cena.
Nunca mais foi incomodado por novos pregadores.
^^