Sapos e princesas no Beleléu: livros da infância

Ando muito defasado em relação à Teia, ao mesmo tempo com muita vontade de escrever e com dificuldades para me sentar diante de caderno e caneta ou na frente de um computador para atualizar o blog. Vários textos inacabados, algumas ideias concebidas e não-realizadas… então decidi aderir a uma blogagem coletiva sugerida pela Sybylla em seu blog Momentum Saga e listar, comentando, alguns livros que foram importantes para minha idade pueril e dos quais até hoje lembro com carinho.

Não vou me delongar demais, até porque faz tanto tempo que li esses livros que não tenho condições de lembrar deles suficientemente bem para tecer resenhas elaboradas. Aliás, vou abordá-los segundo o que a memória me traz deles e de acordo com o impacto que eu penso que tiveram em minha vida até hoje.

A maioria dos livros que listo abaixo têm em suas edições atuais capas diferentes das edições que li, mas procurei no Google as ilustrações originais, pois a capa faz parte da identidade afetiva das obras que lemos em qualquer idade. Além disso, pesquisei os nomes dos autores, dos quais eu não lembrava, e dei uma espiada nas sinopses só para garantir que estava lembrado dos livros certos. Os livros estão na ordem cronológica que li (eu acho).

Falando pelos Cotovelos – Lúcia Pimentel Góes

Este livro, escrito por Lúcia Pimentel Góes, foi comprado por meus pais como parte do material escolar que as escolas exigiam (não sei se ainda exigem hoje em dia). Se bem lembro, eu podia escolher qualquer livro infantil na papelaria e foi esse que peguei, talvez por ter achado o título e a capa engraçados. Depois eu descobriria que o livro faria parte da minibiblioteca da sala de aula, junto com os livros que os outros alunos tivessem escolhido e levao, mas eu não esperei as aulas começarem e li meu exemplar antes.

Nessa história, o protagonista é um garoto que interpreta literalmente todas as expressões idiomáticas que escuta. Quando a irmã mais velha fala que seu namorado é um “bundão”, por exemplo, o garoto imagina um cara com enormes nádegas. Ele fica o tempo todo intrigado com essas expressões, tentando entender como elas se aplicam na realidade.

A ideia do livro é ótima para apresentar às crianças as peculiaridades da língua portuguesa em suas figuras de linguagem e como elas enriquecem nossa experiência comunicativa. Não sei exatamente qual foi o impacto desse livro em minha vida, mas desconfio que minha tendência a interpretar literalmente (de propósito) certas expressões nas conversas com amigos (transformando-as em papos surreais) tenha alguma coisa a ver com o fato de eu ter gostado desse livro.

Sapomorfose ou O Príncipe que Coaxava – Cora Rónai

Este conto de Cora Rónai ilustrado por Millôr Fernandes foi uma leitura de sala de aula quando eu morava em Carajás (Pará) e estudava a 4ª série no Colégio Pitágoras. Mas se a memória não me falha eu cheguei a pegar o livro na biblioteca de novo, pois era uma história muito interessante.

Eis a premissa da história: um sapo é transformado num príncipe por uma bruxa e só poderá se tornar um sapo novamente se receber um beijo de amor (acho que era isso). O sapo então precisa se acostumar com sua nova forma humana, tenta caminhar com suas pernas desajeitadas e se esforça para não ceder ao impulso de saltar (quando o faz, as pernas humanas pouco flexíveis o levam a se esbofetear no chão). Ele passa a viver numa corte, e é cortejado por princesas, mas elas não o agradam e a única coisa que ele realmente anseia é voltar para o pântano onde morava, coaxar e comer insetos.

Embora tenha sido um dos meus livros preferidos na infância, não lembro de quase nada dos detalhes da história, mas lembro bem de algumas das ilustrações de Millôr Fernandes. Acho que esse livro teve um impacto positivo em mim ao me fazer pensar em formas alterativas de contar histórias, inverter papéis e questionar as tradições veiculadas pelo folclore.

No Reino Perdido do Beleléu – Maria Heloísa Penteado

Esse eu encontrei perdido na biblioteca da escola. A sabedoria popular diz que, quando uma coisa se perdeu, ela “foi pro Beleléu”. A partir desta premissa, Maria Heloísa Penteado concebeu um mundo mágico, um universo paralelo, para onde as coisas perdidas vão: o Reino do Beleléu.

A protagonista da história é uma menina muito organizada, que sempre deixa suas coisas nos devidos lugares e dessa forma nunca perde nada. Em contraste, seu irmão é muito bagunceiro e já fez sumirem tantas coisas em seu próprio quarto que ele tem algumas meias e sapatos sem par. O menino é tão desorganizado que certo dia perdeu a si mesmo e desapareceu. Sua irmã acaba descobrindo uma forma de chegar ao Beleléu através da vendedora de doces da escola, que é na verdade a rainha daquele reino perdido. Em sua jornada, ela encontra um orangotango gigante que é lacaio da rainha e descobre como funciona a logística das coisas perdidas.

Este foi um livro especial. Lembro principalmente de ele ter a ilustração de uma paisagem do Reino do Beleléu, por onde a heroína caminhava. Nessa imagem, havia diversos objetos escondidos e a autora oferecia ao leitor o desafio de encontrá-los. Isso simbolizava a própria natureza do Reino do Beleléu, um lugar onde as coisas (e pessoas) se perdem, mas não deixam de existir e podem ser reencontradas. Para mim esse elemento narrativo-lúdico representou uma mudança na forma de ver um livro de estórias, como algo para além do texto, uma mistura multimídia em que palavras escritas e elementos gráficos se juntam para formar uma obra envolvente. Talvez por isso eu goste tanto de quadrinhos hoje em dia.

O Fantástico Mistério de Feiurinha – Pedro Bandeira

o-fantastico-misterio-de-feiurinha-pedro-bandeira-86-MLB4645155375_072013-OTambém da vertente da releitura dos contos de fadas, a história de Feiurinha, escrita por Pedro Bandeira, unifica os contos das conhecidas princesas Bela Adormecida, Cinderela, Rapunzel, Branca de Neve e outras.

Todas essas princesas são amigas e costumam se encontram para conversar. É pitoresca a forma como cada uma delas é retratada, com personalidades que remontam a suas histórias: Bela Adormecida é dorminhoca, Chapeuzinho Vermelho é comilona, Rapunzel não corta os cabelos… o que todas têm em comum é que cada uma delas se casou com um Príncipe Encantado (todos eles com esse mesmo nome).

Durante um desses encontros, elas se dão conta de que falta uma princesa encantada sobre a qual ninguém nunca mais falou: Feiurinha. Para redescobrir sua história e descobrir onde ela está, as princesas recorrem a um escritor (o próprio autor do livro), para que ele se inspire e reescreva o conto de Feiurinha. Ele consegue, claro, e a parte principal do livro é a própria história de Feiurinha, uma menina bonita que foi criada por três bruxas feias que a fizeram pensar que feia era ela.

Apesar de hoje, em retrospecto, eu achar que a ideia da dicotomia absoluta beleza/feirúra (ligada ao dualismo bem/mal) seja bem retrógrada e obsoleta (a propósito, eu aprendi a palavra “obsoleta” nesse livro), toda essa recriação do universo dos contos de fadas, que ressoam Sapomorfose, ainda me fascina.  Esse tipo de brincadeira com o universo dos contos de fadas me levaria, bem mais tarde, a gostar de coisas como a série de filmes do Shrek e em especial a série de quadrinhos Fábulas.

Muitos anos depois apareceu uma adaptação cinematográfica com a Xuxa, mas eu achei que a probabilidade de terem feito besteira nessa transposição era tão grande (xega de Xuxa!) que preferi ficar só com a lembrança daquela pequena obra literária.

Arqueologia da bibliofilia reconstruída

Ainda há outros livros de que me lembro com carinho. Um dos mais instigantes era uma espécie de apologia ao Lobo Mau, recontando Chapeuzinho Vermelho sob o ponto de vista do lobo, mostrando que ele não tinha culpa pela morte da Vovó, que na verdade tinha sido morta por um homem que, para se safar, usou o lobo como bode expiatório (ou seja, mais uma reimaginação dos contos de fadas). Infelizmente, não me lembro do nome do livro e não consegui encontrar nenhuma referência na internet.

Eu não coloquei Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, porque, pelo que me lembro, não consegui terminar de ler minha edição da Ediouro (comprada por meu pai através do boleto postal) na infância, e só o leria completo na época da faculdade. Mas o pouco que eu tinha lido era muito interessante. Outro cuja maior parte se perdeu no Beleléu da memória foi O Pequeno Fantasma, de Otfried Preussler (também comprado pelo boleto postal da Ediouro), que era interessante, contando a rotina do noite-a-noite de um fantasminha, mas por algum motivo não concluí.

De qualquer forma, dá para refletir por que alguns livros são mais fáceis de lembrar do que outros e o que isso pode dizer sobre mim mesmo e sobre a forma como eu mesmo me vejo. Às vezes eu me pego relembrando esses livros e com vontade de reencontrá-los e relê-los, para relembrar os detalhes e investigar melhor as marcas que eles deixaram em mim, com certeza muito significativas.

Mas o mais interessante deste exercício autobiográfico é constatar o caráter artificial da memória (re)construída. Essa foi a primeira vez que parei para pensar sobre os livros que li na infância e dispô-los numa categoria histórica. As memórias são dados esparsos e desconexos, e só ao juntá-las é que preenchemos as lacunas e elaboramos um (novo) sentido para elas, criando um fio de lembranças que só existe no presente e diz muito mais a respeito do nosso eu atual do que do eu infante de um passado recente.


Hashtag da blogagem coletiva: #BCLivrosdaInfância

4 comments

  • Um dos livros que guardo com mais carinho das minhas leituras da infância é o Reino Perdido do Beleléu! Uma ideia original e encantadora. Lembro de ter contato com todos os livros citados, mas só me lembro com certeza de ter lido esse da Maria Heloísa Penteado.
    Também acho muito interessante essas brincadeiras com os contos de fadas. Adoro Fábulas de Bill Willingham. Mas no meu caso acredito que esse gosto venha das minhas leituras na infância dos livros do Sítio do Pica-pau Amarelo, onde o Monteiro Lobato também usava e abusava dos personagens clássicos dos contos de fadas.
    Excelente lista, Thiago! Adorei relembrar esses títulos que já se encontravam no Reino Perdido do Beleléu da minha memória 🙂

    • Interessante que eu nunca li Monteiro Lobato na infância, mas pelo que sei realmente ele explora várias histórias mitológicas, folclóricas e literárias, misturando com a turma do Sítio. Talvez até alguns dos livros que li tenham sido influenciados pela literatura de Lobato.

      Valeu, Beto!

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