Sementes quebram rochas
Sabemos que a Árvore tem uma relação com o Fogo e com o Ar, expressa no crescimento de suas ramas e no balançar de suas folhas. Mas ela está enraizada na Terra, como já afirmamos antes; agora nos resta aprofundar o tema.
É dentro do chão que começa a árvore, na forma de uma semente. Aos poucos ela vai nascendo, amparada pela Terra, com a ajuda da Água e do Fogo, despontando no Ar e crescendo para baixo e para cima. Então esta história começa com um pequeno ser frágil que com persistência se imiscui na areia, na lama, na pedra, na rocha, abrindo caminho, até que as radículas moles e flexíveis se fortalecem tanto a ponto de transformar o chão ao seu redor, ao ponto de rachar a dura rocha.
Entretanto, devo me corrigir num ponto. A história não começa com uma semente. Esta foi produto de outra árvore, uma que atingiu a maturidade, o ápice de seu desenvolvimento. Debaixo da Terra começa seu ciclo, e de volta à Terra retornam seus frutos, para continuar seu legado, sua linhagem. Existe uma cadência e repetição na manifestação da energia telúrica, uma força de fractal autorreferenciado na reprodução dos cristais que brotam da Terra.
A energia da Terra, da solidez da matéria dos corpos vivos, é a da troca, do intercâmbio em direção ao equilíbrio. É energia que se movimenta lentamente, que se arrasta na eternidade e vence os outros elementos pela resistência e pela paciência. Na resistência e paciência de uma mãe que gesta outro ser, que o faz brotar de si mesma, acolhe-o e o alimenta, há toda uma dinâmica de investimento energético a longo prazo. A imponência da árvore, aqui, não é mais espetacular, não exalta as alturas brilhantes, como em seu aspecto ígneo, quando falamos de Fogo e do naipe de Paus. Agora ela é um microcosmo da Criação, da Natureza, como no poema “Mater”, de Augusto dos Anjos.
Como a crisálida emergindo do ovo
Para que o campo flórido a concentre,
Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo
Ser, entre dores, te emergiu do ventre!E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,
No lábio róseo a grande teta farta
— Fecunda fonte desse mesmo leite —
Que amamentou os éfebos de Esparta —Com que avidez ele essa fonte suga!
Ninguém mais com a Beleza está de acordo,
Do que essa pequenina sanguessuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,
Essas humanas coisas pequeninas
A um biscuit de quilate muito raro
Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.Mas o ramo fragílimo e venusto
Que hoje nas débeis gêmulas se esboça,
Há de crescer, há de tornar-se arbusto
E álamo altivo de ramagem grossa.Clara, a atmosfera se encherá de aromas,
O Sol virá das épocas sadias…
E o antigo leão, que te esgotou as pomas,
Há de beijar-te as mãos todos os dias!Quando chegar depois tua velhice
Batida pelos bárbaros invernos,
Relembrarás chorando o que eu te disse,
À sombra dos sicômoros eternos!
Os versos do poeta paraibano nos dizem tanta coisa. Mas nos detenhamos por enquanto na força materna que cuida e domestica uma energia masculina, e o faz através do amor. Essa Mãe é um contraponto ao poder autoritário Patriarcal, e exerce sua criatividade pacientemente, investindo a longo prazo, dando e posteriormente recebendo. Através dessa reciprocidade, multiplica seus frutos, crescendo como uma grande árvore, espalhando ramos para todos os lados e deixando uma rica herança para seus filhos.
Não é à toa, portanto, que a Terra seja representada por uma moeda no Tarot. Essa moeda é chamada às vezes de Pentáculo, por ter um pentagrama gravado nela, ou Disco, pelo seu formato. Mas em geral o naipe correspondente é chamado simplesmente de Ouros. É interessante a escolha dessa substância para designar esse símbolo, que poderia ser qualquer rocha, pedra, gema ou metal com peso e robustez. Mas o ouro, além de ser um dos metais mais pesados, é também um dos mais flexíveis. Com ele se podem fabricar múltiplos objetos, utensílios, adornos, ele se transforma sem se desgastar, pode ser derretido e remodelado em infinitas formas.
A preciosidade ligada ao simbolismo aurífero é importante, e interessa notar que o ouro aparece de maneira não sutil no poema de Augusto dos Anjos – “um biscuit de quilate muito raro” -, que fala sobre uma figura materna e eminentemente telúrica. Aquilo que é precioso e sólido deve perdurar,. Porém, não nos restrinjamos ao que é puramente material: valores e relações sociais também se encaixam no simbolismo dos Ouros. Construir uma comunidade coesa e sólida é trabalho análogo ao de edificar uma obra feita de pedra.
Todos esses sentidos relacionados à Terra enquanto elemento simbólico estão presentes no filme A Excêntrica Família de Antonia (Antonia, 1995). A personagem do título retorna a sua vila-natal trazendo consigo uma filha e ideais progressistas. Ela encontra a população viciada e resignada com os desmandos opressivos e os discursos moralistas de uma cultura patriarcal, que sujeita as mulheres locais a opróbrios e violência física.
Ao longo da história, Antonia investe na construção de um lar pautado no acolhimento das pessoas menos favorecidas, e sua família cresce como os galhos de uma árvore, como raízes que aos poucos destroem os alicerces rochosos de uma sociedade tradicionalmente conservadora, assumindo um papel de liderança feminina numa nova ordem matriarcal. Sua história nos remete à sequência do naipe de Ouros do Tarot, o naipe do elemento Terra.
- Ás de Ouros: A semente que Antonia espalha no campo para fazer crescer uma nova safra que suavize a rocha dos costumes retrógrados de sua comunidade. Essa imagem é literal e figurada ao mesmo tempo.
- 2 de Ouros: Retornando a sua vila-natal, Antonia enterra sua mãe delirante e adquire uma casa rósea. Este é seu investimento inicial para um projeto audacioso. Uma mulher de costumes liberais que retorna a uma comunidade tradicional e reacionária.
- 3 de Ouros: Antonia reforma a casa com sua filha Danielle e cria um ambiente acolhedor, onde esta pode montar seu ateliê. O lugar servirá de lar para diversas pessoas que buscarão um lugar seguro para morar.
- 4 de Ouros: O processo de autopreservação perpassa as decisões de Antonia. Ela está acumulando os frutos de suas primeiras safras. Enquanto isso, Danielle decide ser mãe e engravida? Toda essa sequência representa o primeiro momento de espera na história, a primeira etapa de economia de energia.
- 5 de Ouros: Antonia conhece algumas pessoas que sofrem maus tratos e abusos. Um deles é Boca Mole, de quem as crianças tiram sarro por ele ter retardo mental; a outra é Deedee, que sofre estupros de seu irmão Pitte. A própria Antonia é execrada pelo padre, por levar sua filha para a cidade para que esta engravide. É na tal cidade que elas conhecem Letta, uma mulher que protege mães solteiras e que também vive em situação precária.
- 6 de Ouros: A cada um a parte que lhe cabe, de acordo com a justiça. Vários momentos correspondem ao tema da ajuda e do acolhimento. Antonia dá uma lição em dos meninos que maltratam Boca Mole, e este decide trabalhar para ela. Danielle flagra o estupro de Deedee, ataca o estuprador com uma forquilha e leva a moça para casa. O padre é flagrado abusando sexualmente de uma jovem e a hipocresia do sacristão é exposta. Letta aparece sem um lugar para ficar e é acolhida na comunidade. A generosidade de Antonia parece contaminar a todos. Este é o auge da alegria e da expressão do amor na história. O momento de maior alívio para todos é quando Pitte, que retornou de um longo autoexílio, é morto após estuprar Thérèse, filha de Danielle. A comunidade se livra do pior representante do poder opressivo patriarcal.
- 7 de Ouros: Um dos momentos mais importantes da narrativa gira em torno do nascimento da narradora, a bisneta de Antonia. Thérèse está grávida com seu amigo de infância e filho mais velho de Letta, e todos querem opinar sobre a decisão de parir ou não a criança. Há uma grande expectativa sobre a vinda desse rebento: de certa forma, Sarah vai ser a prova de que tudo o que se construiu até então por Antonia e sua família (consanguínea e por afinidade) foi um sucesso.
- 8 de Ouros: Todos já têm seus papéis comunitários bem estabelecidos na vila e formam um corpo coeso e funcional, onde impera o acolhimento e o respeito às diferenças, marcados pela liderança predominantemente feminina, Os aldeões mais velhos começam a falecer e deixar a comunidade para as novas gerações, que vão assumindo os papéis de seus antecessores.
- 9 de Ouros: A linhagem de Antonia está assegurada com o nascimento de sua bisneta Sarah. Antonia percebe que seu trabalho na Terra terminou e que chegou seu momento de partir. Ela se sente plena e sabe que a partir dali seu legado está encaminhado e continuará bem sem ela.
- 10 de Ouros: Sarah olha ao seu redor enquanto a família está reunida ao redor da grande mesa comunitária, e enxerga diversas pessoas que já partiram, como Dedo Torto, Boca Mole, sua tataravó e Letta. Todo o legado dessa excêntrica família está ali, sólido com a presença etérea dos antepassados e dinâmico com as crianças que compõem a nova geração.
Diferente das histórias de Luke Skywalker e de Miguel Rivera, cujas narrativas correspondem quase ponto a ponto à ordem de seus respectivos naipes (Paus e Espadas), a história de Antonia não tem uma linearidade perfeitamente correspondente com o naipe de Ouros, embora todas as cartas, de Ás a 10, estejam representadas. É como se essa fábula se desenvolvesse tal qual as raízes de uma grande árvore, se espalhando em diversas direções e se entrelaçando. É esse entrelaçamento que dá força, coesão e solidez à construção da família e da linhagem de Antonia.
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