Uma bota úmida

Caule e ramagem são as duas facetas visíveis da árvore, seus aspectos expansivos, associados aos elementos Fogo e Ar, respectivamente. As raízes estão ocultas e se entrelaçam no elemento Terra, enquanto seu cerne úmido é embebido no elemento Água, e ambos simbolizam aspectos restritivos da existência, o corpo denso e as emoções fluidas.

A parte úmida da árvore é responsável pela comunicação entre as raízes e a copa, ela integra todo o sistema do ser vivo. Ela é como o sistema cardiovascular do ser humano, que integra todo o organismo através de seu centro, o coração que bombeia o líquido vital. Nas flutuações da corrente sanguínea, podemos mudar de ânimo.

De fato, o Sangue já foi considerado um de quatro humores ou temperamentos, junto com a Cólera (ou bile amarela), a Melancolia (ou bile negra) e a Fleuma. Embora os humores sejam líquidos, eles se associam de certa forma com os quatro símbolos elementais: o colérico com o Fogo; o sanguíneo com o Ar; o melancólico com a Terra; e o fleumático com a Água. Assim, é a Fleuma, o humor mais impassível e imparcial, que serve como medida aos outros humores; analogamente, a Água, o elemento mais conformista (que se conforma em qualquer recipiente), o mais incolor, inodoro e insípido, integra os outros elementos, promove sua intercomunicação e o funcionamento do sistema no qual circula. A Água é muito versátil, pode se tornar sólida e fria como a Terra, vaporosa e expansiva como o Ar, quente e volátil como o Fogo.

A maior motivação da Água e de qualquer outro líquido é sempre uma busca incessante pela Terra, o elemento mais denso. Ela vai escorrer por qualquer superfície possível até encontrar o chão, e vai penetrar o solo poroso até encontrar a rocha maciça. Então, a Água,com essa sua característica, o conformismo, assume a forma do recipiente em que é depositada, seja um copo, uma garrafa, uma cuia, um guarda-chuva virado, uma bota.

Ás de Copas no Tarot de Marselha

Então faz sentido que o principal símbolo da Água seja um recipiente genérico como o Cálice ou a Taça, ou seja, a Copa. Ainda mais porque a Copa é um utensílio profundamente ritual, usado para consagrar laços sociais quando compartilhamos uma bebida ao redor de uma mesa, para estabelecer um pacto, para trair outra pessoa com veneno ou para administrar-lhe uma poção curativa.

Duas substâncias têm enorme importância simbólica quando associadas à Copa: a Água e a bebida alcoólica. Como duas facetas do poder transformador da magia líquida, Água e vinho são referidos no antigo adágio romano: “In vino veritas, in acqua sanitas” (“no vinho está a verdade, na água está a saúde”). O vinho (e outras beberagens) é referido ao redor do mundo como um potencializador da capacidade de se revelar verdades secretas e desejos ocultos. O vinho na Copa é por excelência o símbolo da manifestação das emoções humanas.

“A Donzela do Santo Graal”, de Dante Gabriel Rossetti (1874)

Esse poder de revelar a verdade íntima é o que torna o vinho um instrumento de comunhão, uma forma de aproximar visceralmente as pessoas que compartilham uma bebida ao redor de uma mesa e que se abrem umas às outras na confidência mútua. O pacto que Jesus Cristo estabelece com os apóstolos é feito através do vinho, e o simbolismo dessa cumplicidade fraternal é reforçado pela referência à semelhança do vinho com o sangue que corre nas veias de todos os presentes. Séculos depois, os cavaleiros da Távola Redonda se uniram para buscar o Santo Graal, o Cálice usado por Jesus na Última Ceia. Mesmo distantes no tempo e no espaço, o artefato mágico teve o poder de congregar companheiros para uma tarefa sagrada em comum. Esse mesmo Cálice foi procurado por nazistas em busca de poder, mas essa busca fracassou por se desviar dos valores solidários inerentes ao dito Cálice. Henry e seu filho Indiana Jones, por outro lado, usaram-no para promover uma reconexão entre pai e filho e curar suas feridas e mágoas.

A Água, por outro lado, como substância é essencial para nos mantermos vivos, para aplacar o mal da sede, para nos lubrificar por dentro. Mas, além disso, seus aspectos incolor, inodoro e insípido imbuem-na com o poder de se parecer com aquilo que cada um de nós procura dentro da Copa cheia. Há um elemento ilusório na apresentação da Água, ligado à memória afetiva, ou seja, a nossas emoções. A forma da Água numa garrafa de vinho sempre nos remeterá à ebriedade; numa caneca, ela se parecerá com café ou chá até que alguém a beba; num prato fundo, será virtualmente sopa, quente e repleta de ingredientes. Quando sulca a Terra e percorre seus meandros, a Água carrega o potencial da fertilidade.

Daí a Água entra na Terra que está dentro de uma bota velha e encontra uma semente, e esta germina. Num futuro seco e árido, um pequeno robô trabalha incessantemente para organizar todo o lixo deixado pelos seres humanos, e em meio a um ambiente inóspito e sem formas de vida biológica, ele encontra uma bota úmida cheia de Terra, de onde brotam folhinhas verdes. Esse é o recipiente que condensa toda a alma repleta de desejos e esperanças de Wall-E e Eva, dois robôs que aprendem a ter empatia, a cuidar do outro, a sentir emoções complexas. Uma Bota úmida é o símbolo de uma nova aliança que envolve a humanidade e os robôs.

Do Ás ao 10 de Copas no Tarot de Waite-Smith
  • Ás de Copas: A bota que Wall-E encontra no lixo, com uma plantinha nascendo dentro dela. Um objeto que sintetiza a atitude de cuidado e os laços que podem ser estabelecidos com outros indivíduos, como aquele que ele vai estabelecer com Eva e com outras pessoas que encontrará em sua aventura.
  • 2 de Copas: O momento em que Wall-E e Eva se conhecem, ainda sem saber nada um do outro. No início ele está disposto a conhecê-la, mas ela não tem interesse nele, até mesmo ignora sua existência. Mas no momento em que eles ficam frente a frente e cada um diz o próprio nome e sua respectiva diretriz (na verdade Eva não o diz de imediato, pois sua diretriz é “sigilosa”), eles começam um processo de comunicação. Ele demonstra uma grande alegria, enquanto ela, que até então tinha um comportamento bem robótico, passa a expressar sentimentos, curiosidade e empatia.
  • 3 de Copas: Wall-E e Eva se divertem em meio aos tesouros que ele acumulou em sua casa. Eles dançam ao assistir a um musical antigo numa velha TV, riem e se embebem no júbilo de compartilhar momentos alegres com outra pessoa.
  • 4 de Copas: Toda essa alegria se esgota no momento em que Wall-E mostra a bota a Eva. Esta automaticamente apreende o objeto, seguindo sua diretriz, e entra em estado de animação suspensa. Wall-E fica um pouco frustrado, mas percebe que Eva precisa de sua atenção, e ele passa a cuidar dela e se contentar com a espera pelo momento do retorno dela à consciência.
  • 5 de Copas: Eva é capturada pela nave que a havia deixado na Terra, Wall-E entra em desespero, ele considera que sua amada foi sequestrada e fica em estado de luto. Felizmente ele não se deixa abater e vai resgatá-la.
  • 6 de Copas: O desejo de recuperar a breve felicidade que viveu com Eva leva Wall-E a procurá-la a todo custo. Em meio aos percalços que passam na espaçonave Axiom, eles se reencontram e vivem momentos felizes, voando e brincando no espaço à luz das estrelas.
  • 7 de Copas: Depois de desvendar as tramoias do antagonista, Eva e Wall-E se veem confusos diante de escolhas difíceis. Eva em certo momento desiste de levar adiante sua diretriz, que é assegurar a recuperação da vida orgânica no planeta Terra. Ela passa a apenas desejar a companhia alegre e leve de Wall-E. Mas este, que só priorizava sua relação com Eva, percebe a importância da diretriz dela.
  • 8 de Copas: Wall-E leva tão a sério a missão que ele toma a frente, com muita coragem e apesar de suas limitações. Ele coloca tudo acima do próprio bem-estar, e desaparece, some, de certa forma morre.
  • 9 de Copas: Wall-E é ressuscitado por Eva e eles conciliam a consecução da missão com o desejo de ficarem juntos. É um grande momento de contentamento para os dois e para toda a população de robôs e humanos que retornam à Terra para reconstruir o mundo.
  • 10 de Copas: Uma nova geração de seres sencientes, robóticos e humanos, reconstrói as relações afetivas de uma nova sociedade, uma nova grande família, cuja descendência se beneficiará dessas conquistas.

Um dos aspectos da Bota úmida e verdejante que a aproximam do sagrado símbolo da Copa é o fato de ser um tesouro, e como tal precisa da proteção, de uma alma guardiã que entenda sua importância e a carregue até seu destino, cumprindo uma missão. A Copa sempre está repleta de algo valioso e imbuído de possibilidades, e estas se realizarão de acordo com as emoções e motivações de quem a carrega e de quem administra seu conteúdo. Ela tem o potencial de separar as pessoas, se mal utilizada, e é capaz de unir os povos se contiver dentro de si a semente da solidariedade.

#estacaoblogagem


Este texto deveria ter sido publicado entre 22 e 28 de novembro de 2020, como parte de uma blogagem coletiva (#estacaoblogagem) sobre os naipes do Tarô. Os outros três naipes, Paus (Sabres-de-luz), Espadas (Violões) e Ouros (Sementes) foram publicados nas datas propostas, mas o naipe de Copas (Botas) tinha ficado no rascunho e eu meio que negligenciei a conclusão da blogagem. Bem, nunca é tarde para retomar a redação de um texto que eu queria muito ter terminado, por abordar um de meus filmes preferidos, WALL·E (2008).

Um brinde a todes.

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