A evolução do homem branco
Desde que as teorias sobre a evolução biológica do Homo sapiens começaram a ser elaboradas, tornaram-se comuns os esquemas gráficos que representam os diversos estágios que vão desde os primatas que deram origem aos hominídeos modernos até o ser humano como o conhecemos nos dias de hoje.
A Ciência se guia pelo ideal da objetividade, embora reconheça que a limitação dos sentidos humanos tenha que ser relevada e implique sempre na aproximação da realidade e não em sua pura apreensão. Os valores e pré-noções culturais também marcam a forma como construímos o conhecimento científico e os esquemas evolutivos humanos são exemplos de como as representações do mundo restringem o alcance das representações científicas.
Os esquemas evolutivos do ser humano normalmente mostram o ápice da escala como um homem branco. Daí já tiramos, pela simples pinçagem de duas palavras significativas, que a maioria dos desenhos que representam a genealogia da espécie humana está pintada por um ideal androcêntrico e eurocêntrico. Vejamos o gráfico abaixo, conhecido como A Marcha do Progresso, de autoria de Rudolph Zallinger, na famosa obra Early Man.
Esta é uma das inúmeras representações científicas que se podem encontrar e que servem para nos dar uma ideia aproximada de como um primata peludo se tornou um antropoide pelado. Mas quase todos esses esquemas culminam num homem branco, de traços europeus. Isso se justifica em parte pela tradição científica, que herdou diversos esquemas de pensamento do Iluminismo europeu. Os europeus fizeram os primeiros esboços desses esquemas e, portanto, desenharam a si mesmos ali.
Essa justificativa dá ao suposto (por mim) racismo/etnocentrismo dessas representações uma origem relativamente inofensiva, afinal, o homem ali representado poderia ser qualquer um do imenso universo da diversidade humana. Porém, a ideia evolucionista moderna de que a civilização europeia representa o auge da realização humana não deixa de aparecer implícita nessa escala, principalmente se nos lembrarmos de tantas teorias do chamado “racismo científico”, que infelizmente ainda têm muitos adeptos (que muitas vezes nem se dão conta de que o são).
E mesmo considerando o contexto (europeu e androcêntrico) em que se elaborarm esses esquemas (afinal, se um melanésio tivesse desenhado a Marcha do Progresso, seu ápice seria um homem melanésio; se tivesse sido construído numa sociedade ginocêntrica, o ápice da evolução seria uma mulher), eles ainda são, em nossos dias de ideiais mais humanistas, propagados sem modificações, o que implica em efeitos indesejáveis para a democracia moderna.
Evolução branca
Nesse racismo que permeia nossas mentes, que vê, por exemplo, os negros africanos como pertencentes a um estágio anterior ao dos brancos europeus, surgem piadas absurdas como a que se segue:
Esse gráfico, encontrado alhures na internet, mostra bem a ideia que expus acima. Os africanos são vistos como menos evoluídos do que os europeus, do que os norte-americanos e do que os asiáticos. São ainda hoje apelidados, em muitos contextos, de “macacos”. A pilhéria acima, curiosamente, evoca certas ilustrações do século XIX, que representavam o racismo científico da época (como o desenho ao lado).
Num estudo publicado em 2008 por um grupo de psicólogos de duas universidades norte-americanas, foi averiguada a presente e constante representação dos negros como mais próximos dos primatas e menos próximos da humanidade do que os brancos.
Essa pré-noção, que durante alguns séculos serviu para justificar a escravidão de africanos, se alia a uma visão dos negros como parecidos fisicamente com os primatas. Tendo em vista que os chimpanzés e gorilas, os antropoides mais conhecidos e mais próximos da espécie humana, têm pêlos negros (e no caso dos gorilas também a pele negra), a associação imediata entre pessoas de pele escura e macacos nos faz pensar numa proximidade evolutiva.
Mas é bom salientar que os humanos em geral são parecidos com os macacos, e há traços nos humanos brancos que os aproximam mais dos chimpanzés do que os humanos negros (como os pêlos mais abundantes, a pele clara, as narinas bem visíveis e os lábios finos). Um esquema como o desenho ao lado mostra que é preciso forçar a barra para sustentar as teses racistas. Neste caso, o artista se vale da cor escura das duas figuras inferiores para aproximá-las; as dos dois homens são caricaturais, uma na forma do ideal grego e outra exageradamente bruta; além disso, vê-se que o crânio do negro foi propositalmente inclinado para se parecer mais com o do chimpanzé.
Provavelmente, num contexto histórico diferente, em que os negros tivessem colonizado e escravizado os brancos, estes seriam vistos como mais próximos dos primatas do que os negros, e jogadores de futebol como Kaká e Cristiano Ronaldo poderiam receber bananas de presente das torcidas racistas.
A ideia de que o branco representa o humano normal, sendo os outros tipos considerados meras variações secundárias, é tão forte que até numa história em quadrinhos de Jornada nas Estrelas (Star Trek), franquia conhecida por veicular ideais libertários, a reproduz de maneira sub-reptícia e quase despercebida. No quadrinho abaixo, retirado da revista Klingons: Herança de Sangue (IDW/Devir, 2008), vê-se um klingon (uma das espécies alienígenas do universo de Star Trek) sofrendo uma brutal cirurgia plástica para se parecer com um humano, o que inclui ter sua pele “clareada”.
O que deixa implícita a exclusão de diversas cores que caracterizam os grupos humanos, que variam desde um tom escuro quase negro, passando por uma pele avermelhada e morena até tons brancos e propriamente pálidos. O klingon em questão poderia muito bem passar por um ser humano sem precisar clarear sua pele.
Evolução masculina
Outra pré-noção presente na “marcha do progresso” é a de que o ser humano é basicamente macho, tendo a fêmea um papel secundário na espécie. Quase todos os desenhos mostram um homem no auge da escala e seus antepassados também são todos machos. Os desenhos que representam a mulher são em geral feitas a partir dos desenhos androcêntricos já consolidados ou, em muitos casos, são paródias.
Mas vemos na imagem ao lado que os primeiros estágios são idênticos aos do modelo masculino que lhe serviu de base, ignorando inclusive que outras espécies de mamíferos são tão dimórficas quanto os humanos.
Pensando nisso, o artista Tom Rhodes concebeu o desenho abaixo, que mostra a evolução dos dois sexos humanos, mostrando também o dimorfismo nos estágios anteriores ao Homo sapiens.
Essa é uma perspectiva interessante e mais aberta quanto à questão de gênero. Mas se voltarmos ao racismo discutido acima, vemos que os dois últimos exemplos ainda são eurocêntricos, mostrando mulheres e homens brancos no final da evolução. Vemos nesta última ilustração que o Homo sapiens usa roupas que remetem à vida na Europa, como se o ser humano tivesse surgido lá e não na África.
De qualquer modo, a mulher ainda não aparece como protagonista na história evolutiva humana. Mesmo neste último exemplo, os rostos de algumas de nossas antepassadas está oculto e elas sempre aparecem em segundo plano, exceto no último estágio. Mas mesmo neste a mulher meio que parece estar mais próxima da primitividade, com menos roupas do que o homem, imagem que reproduz a ideia sexista de que os homens são mais racionais (e portanto mais humanos).
O papel coadjuvante da mulher na representação da espécie humana é tão marcado que até mesmo a mensagem das sondas espaciais Pioneer 10 e 11, lançadas ao espaço pela NASA, que deveria ser a mais objetiva possível, mostra o ser humano macho na posição de representante, enquanto a mulher ao seu lado assume a postura de um papel secundário. Além disso, essa imagem não mostra o ser humano em sua diversidade, pois os traços são europeus (embora, em termos práticos, seja bem provável que uma espécie elienígena não vá perceber isso, os humanos podem ser todos iguais para ela).
No senso comum, em nossa cultura e em muitas outras mundo afora, homens e mulheres costumam ser encarados como duas espécies diferentes. É muito mais comum percebermos e salientarmos as diferenças (pensadas como irreconciliáveis) do que as semelhanças que nos tornam uma espécie única. Isso pode ser notado em algumas charges anedóticas que utilizam como base a Marcha do Progresso. Fica subjacente a ideia de que a evolução do gênero feminino segue uma rota alternativa em relação ao masculino.
Considerações finais
Se, por um lado, as representações da evolução humana segundo os gêneros valorizam as diferenças entre estes, esquecendo as semelhanças, as representações com cunho racista deixam de reconhecer a diversidade fenotípica humana. Mas as duas coisas estão misturadas, e elas ficam mais explícitas nesta elaborada ilustração de Milo Manara:
Neste esquema, o homem da Europa, com origens na Mesopotâmia, é o protagonista. A mulher aparece desde o início até o fim como coadjuvante da história, normalmente tratada como mercadoria e/ou objeto sexual. Além disso, os povos ameríndios e asiáticos só aparecem em episódios da história humana em que houve contato significativo e impactante deles com o Ocidente.
É certo que se podem encontrar marchas do progresso que fogem meis ou menos das pré-noções racistas e sexistas. Algumas das paródias até contêm elementos de crítica. Porém, as mais bem-humoradas e interessantes permanecem reproduzindo sub-repticiamente o racismo androcêntrico.
Este texto é dedicado a Dyego Saraiva, que me deu a ideia de escrevê-lo.
Links
- March of Progress – Wikipedia
- Sur la voie de l”Homo sapiens – Flickr
- Discrimination Against Blacks Linked To Dehumanization, Study Finds – Science Daily
- Stages in human evolution – Science Photo Library
- Stages in female human evolution – Science Photo Library
- The Evolution of Man and Woman – Plan to Fail
- Evolution of Man and Woman – Toonpool
Sobre as ilustrações
Todas as imagens usadas neste texto foram copiadas da internet. Quando possível, atribuí os créditos devidos, mas não arrogo propriedade de nenhuma dessas ilustrações. Façam-me o favor, portanto, de não dizer que essas imagens são minhas, caso queiram copiá-las para usar em outros sítios da rede.
Quanto ao texto, se quiserem copiar e compartilhar, fiquem à vontade. Agradeço se citarem a autoria, e podem até não citar, mas jamais digam que o texto é de outra pessoa.
Obrigado.
9 comments
Excelente artigo! Cultura divertida e interessante. Que bom que ainda há quem se ponha a escrever com criatividade, estilo e senso crítico e outros, como eu, que nunca perdem o prazer de ler belas palavras.
excelente o texto, mais uma vez, caro Thiago. Queria reforçar aqui como foi feliz o Stan Lee ao criar o conceito "mutante" dos X-men, trazendo perguntas como "o menos evoluído deve ser exterminado como aconteceu no passado, ou viver em paz?" e recomendar a você a fase do Grant Morrison, que foi relançado há pouco tempo até, chama-se "E de Extinção" e é fodástica. Abraço!
@lala,
Obrigado. Fique sempre à vontade para comentar.
@dyego,
Vou procurar sim. X-Men traz boas reflexões sobre a questão da discriminação. Inclusive assisti ao novo filme, X-Men: First Class, e achei bem interessante.
Belo artigo. Observo que tens um um senso crítico apurado. O texto é um exemplo da produção do conhecimento a serviço da sociedade.
@José,
Obrigado. 🙂
Se todas as raças humanas derivam do mesmo primata, como explica a ciência, por que é que só a raça negra é associada ao macaco e a branca não? Se ambas as raças vieram da mesma espécie de macaco, então ambas as raças partilham o mesmo estereótipo. O ato de imitar o macaco como forma de injuria contra os negros é burrice porque todos, brancos e negros, descendem de macaco.
As figuras que colocam o Homo neanderthalensis como antecessor do Homo Sapiens estão ERRADAS! O sequenciamento genético dos esqueletos de Homo neanderthalensis mostram que esta espécie não é antecessora do Homo Sapiens e na verdade existia ao mesmo tempo do Homo Sapiens.
Houve inclusive cruzamentos férteis entre Homo neanderthalensis e Homo sapiens, de modo que todos nós que temos algum ancestral na Europa possuímos de 2% a 4% de genes de Homo neanderthalensis em nossos corpos. Somente algumas populações isoladas na África não apresentam genes de Homo neanderthalensis e seriam neste enfoque Homo sapiens “puros”!