Desumanização

De vez em quando surge uma notícia sobre jogadores de futebol negros que sofrem ofensas raciais mundo afora. Via de regra, essas ofensas comparam os jogadores com macacos, reproduzindo o velho preconceito de que certos grupos humanos são menos evoluídos do que outros, até mesmo menos humanos.

Um estudo feito em 2008 por pesquisadores de Psicologia da Universidade de Stanford mostrou que ainda é muito presente a associação que aproxima negros de macacos. De 2008 para cá, nada parece ter mudado. A seguir, reproduzo uma matéria do site ScienceDaily, traduzida do inglês, que descreve as condições em que foi feita essa pesquisa e seus resultados.

Discriminação Contra Negros Está Ligada A Desumanização, Conclui Estudo

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Grotescas representações históricas de afro-americanos como simiescos podem ter desaparecido da cultura mainstream norte-americana, mas nova pesquisa revela que muitos norte-americanos inconscientemente associam negros com macacos. (Crédito da Imagem: cortesia da Universidade de Stanford.)

ScienceDaily (8 Fev. 2008) — Desenhos históricos grotescos de afro-americanos parecidos com macacos podem ter desaparecido da cultura mainstream norte-americana, mas uma pesquisa apresentada num novo artigo por psicólogos em Stanford, Universidade do Estado da Pensilvânia e Universidade de Califórnia-Berkeley, revela que muitos americanos associam inconscientemente os negros com macacos.

Além disso, os achados mostram que a sociedade está mais propensa a autorizar a violência contra suspeitos criminais negros, o que resulta de sua ampla dificuldade de aceitar afro-americanos como plenamente humanos, de acordo com os pesquisadores.

A co-autora Jennifer Eberhardt, professora adjunta de psicologia em Stanford, que é negra, disse que ficou chocada com os resultados, particularmente porque envolveram sujeitos nascidos depois de Jim Crow e o movimento dos direitos civis. “Este foi realmente um dos trabalhos mais deprimentes que fiz”, ela disse. “Isso me abalou. Você tem suspeitas quando faz o trabalho – intuições – você antevê os resultados. Mas foi difícil me preparar para aceitar quão forte [a associação negro-macaco] era – como nós pudemos encontrá-la em todas as situações.”

A pesquisa levou oito anos na estadual de Stanford e Penn, sob a supervisão de Eberhardt. Envolveu especialmente graduandos homens brancos. Numa série de estudos que subliminarmente mostrava faces de negros e brancos numa tela por uma fração de segundo, para “preparar” os estudantes, pesquisadores descobriram que os sujeitos podiam identificar desenhos borrados de macacos mais rapidamente depois de ser “preparados” com rostos negros do que com rostos brancos.

Os pesquisadores descobriram consistentemente uma associação negro-macaco até quando os jovens adultos diziam que não sabiam nada sobre suas conotações históricas. A conexão era feita somente com rostos afro-americanos; o terceiro estudo do artigo não conseguiu encontrar uma associação com macacos em outros grupos não-brancos, tais como os asiáticos. A despeito destas descobertas especificamente raciais, os pesquisadores afirmaram que a desumanização e o imaginário animal têm sido usados através dos séculos para justificar a violência contra muitos grupos oprimidos.

“A despeito da oposição hegemônica ao racismo, a discriminação permanece entre nós”, Eberhardt disse. “Afro-ameticanos ainda são desumanizados; ainda somos associados com macacos neste país. Essa associação pode levar pessoas a endossar o espancamento de supeitos negros por policiais, e penso que há muitas outras consequências a ser reveladas”.

Antecedentes históricos

O racismo científico nos Estados Unidos foi promovido graficamente num livro da metade do século XIX, escrito por Josiah C. Nott e George Robins Gliddon, intitulado Types of Mankind (Tipos da Humanidade), que usava ilustrações deturpadas para sugerir que os “negros” eram o elo entre os “gregos” e os chimpanzés. “Quando temos uma história assim neste país, não dá para saber quanto disso já foi erradicado completamente, especialmente considerando que ainda lidamos com sérias desigualdades raciais, que alimentam e mantêm essas associações de uma forma da qual as pessoas não se dão conta”, disse Eberhardt.

Embora tais caracterizações históricas dos afro-americanos tenham amplamente desaparecido da sociedade mainstream norte-americana, Eberhardt notou que a educação científica poderia ser parcialmente responsável por reforçar a visão de que os negros são menos evoluídos do que os brancos. Uma ilustração icônica de 1970, “A Marcha do Progresso”, publicada no livro da Time-Life Early Man (O Homem Primitivo), representa a evolução começando com um chimpanzé e terminando com um homem branco. “Trata-se de um legado de nosso passado que o ponto final da evolução seja o homem branco”, disse Eberhardt. “Não penso que seja intencional, mas quando as pessoas aprendem sobre evolução humana, elas saem com uma noção de que as pessoas de descendência africana estão mais próximas dos macacos do que pessoas de descendência europeia. Quando se pensa numa pessoa civilizada, um homem branco vem à mente”.

Consequências da violência socialmente aceita

No quinto estudo do artigo, os pesquisadores subliminarmente prepararam 115 graduandos, todos homens brancos, com palavras associadas tanto com macacos (tais como “mico”, “chimpanzé”, “gorila”) ou grandes felinos (tais como “leão”, “tigre”, “pantera”). As últimas foram usadas como elemento de controle, pois ambas as imagens são associadas a violência e à África, disse Eberhardt. Os sujeitos então assistiram a um vídeo de dois minutos, similar a um programa de TV policial, mostrando vários policiais espancando violentamente um homem de raça indeterminada. Um retrato falado de um homem negro ou um homem branco era mostrado no começo do vídeo para indicar quem estava sendo espancado, com uma descrição afirmando que, apesar de descrito por sua família como “um marido e pai amável”, o suspeito tinha uma séria ficha criminal e poderia estar drogado no momento da prisão.

Pedia-se aos estudantes que avaliassem quão justo era o espancamento. Os participantes que acreditavam que o suspeito era branco eram mais propensos a apoiar o espancamento quando eram preparados com imagens de macacos ou de felinos, disse Eberhardt. Mas aqueles que pensavam que o suspeito era negro eram mais propensos a justificar o espancamento se tivessem sido preparados com palavras relacionadas a macacos do que com palavras relacionadas a felinos. “Juntando tudo, isso sugere que o conhecimento implícito de uma associação negro-macaco levou a diferenças marcantes nos julgamentos dos participantes sobre suspeitos criminais negros”, escreveram os pesquisadores.

De acordo com os autores do artigo, esta ligação tem consequências devastadoras para afro-americanos porque ela “altera a percepção e atenção visual, e aumenta o encorajamento à violência contra suspeitos negros”. Por exemplo, o sexto estudo do artigo mostrou que, em centenas de notícias de 1979 a 1999 do Philadelphia Inquirer, afro-americanos acusados de crimes capitais tinham seis vezes mais chances do que brancos acusados dos mesmos crimes de ser descritos com termos relacionados a macacos, como “bárbaros”, “feras”, “brutos”, “selvagens” e “animalescos”. “Aqueles que são implicitamente retratados como mais parecidos com macacos nestes artigos têm mais chances de ser executados pelo Estado do que aqueles que não são”, escreveram os pesquisadores.

O caminho daqui para a frente

A despeito das descobertas do artigo, Eberhardt disse ser otimista quanto ao futuro. “Este trabalho não afirma que não houve progresso ou que estamos vivendo na mesma sociedade que existia no século XIX”, disse ela, “progredimos muito nas questões raciais, mas deveríamos reconhecer que a discriminação racial não está morta. Ainda precisamos ficar atentos a isso e a todos os diferentes meios pelos quais [o racismo] pode nos afetar, a despeito de nossas intenções e motivações para ser igualitários. Ainda temos trabalho a fazer”.

Para Eberhardt, duas histórias de raça existem nos Estados Unidos, “uma é sobre o desaparecimento da discriminação – de como ela não está mais entre nós”, disse ela. “Mas a outra é sobre a transformação da discriminação. Não é mais aquela discriminação horrível, mas uma discriminação moderna, uma discriminação sutil”. Com ambas as histórias, ela disse, há um entendimento de que a sociedade caminhou para além das batalhas históricas centradas na raça. “Nós queremos dizer, com esse trabalho, que há uma velha batalha racial que ainda estamos lutando”, disse ela. “É a batalha para que os negros sejam reconhecidos como plenamente humanos”.

Jennifer Eberhardt ganhou o Stanford University Dean’s Award por essa pesquisa.

Fonte

4 comments

  • Olá Thiago, é preciso que nós tomemos cuidado com certas "descobertas" de certos artigos científicos. Principalmente quando a parte mais polêmica da "descoberta" é fruto da opinião (interpretação) do autor.
    Não estou certo de que possamos concluir que existe uma associação entre a imagem do negro e a do macaco com base nesse experimento.

    No primeiro experimento, os homens conseguiram identificar mais rapidamente as imagens borradas de macacos quando anteriormente foram apresentadas imagens de homens negros. Quando as imagens eram de outros indivíduos não negros, tais como os orientais, o fenômeno não se repetia.
    Para o autor isso é um indício de que existe uma associação racista inconsciênte. Porém ele descarta completamente a possibilidade do fenômeno ser fruto apenas das cores das imagens!
    Ou seja, tantos as imagens de homens de cor negra quanto as dos macacos eram realmente negras. Logo, existia aí uma associação de cor e não racista. Não podemos afirmar de forma alguma, com base nesse primeiro experimento, que a associação era racista e não apenas uma identificação de cores.
    Note que o fato do ocorrido não se repetir com as imagens de orientais, só reforça a hipótese de ser realmente uma associação de cor e não étnica (racista).
    Para ilustrar melhor o que eu estou dizendo, é possível treinar um computador para achar similaridades entre imagens e é possível, dependendo da métrica utilizada (se a métrica forem as cores), agrupar todas as imagens cujo objeto principal tem a mesma cor. Note que neste caso a métrica não era étnica e sim apenas a cor da imagem.

    No quinto estudo a conclusão do autor me pareceu uma "forçada de barra". No estudo em questão ambos os que acharam que o espancado era negro ou branco associaram a palavra macaco!!! (Justamente um dado que serve como indício de que não há essa associação incosciente negro/macaco). Porém o autor afirma justamente o contrário, ao observar que a figura do felino não influenciava os que acreditavam que o espancado era negro.
    Não acho que dê para fazer essas conclusões apenas com esse tipo de experimento. Fico me perguntando em que revista essa pesquisa foi publicada, e quais foram os resultados dos testes estatísticos feitos para concluir que há diferença entre o julgamento no quinto experimento.

    Para concluir, eu gostaria de chamar a atenção para a afirmação da pesquisadora de que há um racismo incosciente na representação “A Marcha do Progresso”. Segundo ela: "pessoas de descendência africana estão mais próximas dos macacos do que pessoas de descendência europeia".

    Ora, essa representação termina com um homem europeu muito provavelmente porque foi feita por um. Se tivesse sido feita por um japonês terminaria com a representação do japonês. E isso não é necessariamente etnocentrismo, pode ser apenas a representação incosciente da evolução até chegar ao próprio autor.

    É importante lembrar que os estadunidenses sempre foram racistas desde o início até os dias atuais. Porém isso não significa que as conclusões da autora estejam corretas.

  • @AmBAr,

    Acho que o mais sério a ser considerado nessa pesquisa é que seu resultado já era previsto pelos pesquisadores, o que muito provelmente influenciou nos resultados.

    Concordo com a possibilidade de que os borrões escuros tenham levado os sujeitos da pesquisa a associar as imagens por causa da cor. Mas o outro estudo citado por você me parece mais contundente, pois os negros foram associados só aos macacos e não aos felinos.

    O fato é que, se olharmos bem, todo ser humano se parece com um macaco. Mas não podemos negar que a associação entre negros e macacos é muitíssimo mais forte do que a associação entre brancos e macacos. Pergunte às pessoas ao seu redor que digam com sinceridade quem elas acham mais parecido com um macaco: uma pessoa branca ou uma negra? Embora o método usado na pesquisa descrita na matéria seja um tanto controverso, ela trata de um fato presente em nossas vidas.

    Sobre a Marcha do Progresso, é claro que o branco no final dela se deve ao que você disse. A maior parte do conhecimento científico foi produzida por europeus e seus descendentes. Além disso, a própria colonização europeia mundo afora implica na representação do branco como o modelo de ser humano. Mas é justamente pelo fato de nunca se ter feito uma "marcha do progresso" diferente que a visão de que o branco é o cume da evolução humana se mantém. Aliado a isso, a desumanização de negros no período da escravidão africana fez com que os percebamos como ocupando um lugar evolutivo anterior ao branco, mais próximo dos primatas.

    Mas vou deixar essa discussão para o próximo post. Aguardem…

  • Eu pensei a mesma coisa sobre as cores.
    Hoje escutei um comentário no trabalho, de um colega, que quis chamar um homem de feio e disse "esse macaco feio". O homem era negro. Lembro de já ter escutado essa associação antes, em outras ocasiões. E de fato, não lembro de ter escutado o termo "macaco feio" para designar um homem feio que não fosse negro.
    A associação existe, mas até que ponto a pesquisa foi influenciada pelo lado emocional da pesquisadora?

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