O preço do direito

Desde que o Estado brasileiro aboliu o sistema econômico escravista com a Lei Áurea (uma lei de 2 artigos simplórios), a distribuição da propriedade da terra tem mantido um padrão: grandes e ricas propriedades concentradas em poucas mãos e uma grande massa de gente com pouca ou nenhuma terra, para morar nem de onde tirar sobrevivência.

A Reforma Agrária promovida pelo Estado foi um projeto que trouxe certa esperança de reverter esse quadro desumano. Parece muito justo repassar grandes montantes de terras ociosas para as enxadas de quem vive ruralmente e quer trabalhar e sobreviver. Mas há casos em que as populações despossuídas foram também desapossadas, perderam suas terras para quem pôde pagar pela lei, pois os direitos muitas vezes não são distribuídos de graça.

Má notícia

Trabalho no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, ou INCRA, como é mais conhecido. Se este é um órgão amplamente vilipendiado e incompreendido (ou mal compreendido, o que é bem diferente…) pela mídia hegemônica e por grande parte da elite ruralista do país, o serviço em que estou lotado é ainda mais obscuro e marginalizado: Regularização de Territórios Quilombolas.

Há algum tempo recebi a notícia de que o processo administrativo sob meus cuidados, referente à regularização do território da comunidade quilombola de Acauã, localizada no município de Poço Branco/RN, foi alvo de uma ação judicial movida por um dos opulentos proprietários cuja terra é visada pelo INCRA para desapropriação em favor do quilombo de Acauã, e que o Tribunal Regional Federal da 5ª Região lançou uma liminar impedindo qualquer atividade do INCRA nesse imóvel até o julgamento da ação. Deveríamos continuar com a desapropriação apenas de outros 5 imóveis.

O processo de regularização do território de Acauã foi aberto em setembro de 2004, mas o acompanho desde setembro de 2006, quando assumi meu cargo no INCRA. Desde então venho assistindo de perto a uma história de resistência, opressão e sacrifício.

O legado de Zé Acauã

Numa pesquisa feita pelo antropólogo Carlos Guilherme Octaviano do Valle, da UFRN, constatou-se que a história oral transmitida pelas antigas gerações de Acauã mostram que sua origem remonta a uma figura mítica chamada José Acauã ou Zé Acauã, a que os acauanenses se referem como um escravo que fugiu do cativeiro. Há outros relatos que explicam como as famílias foram se formando, mas toda essa história demonstra que a origem desse grupo remonta a escravos negros que construíram uma comunidade que hoje em dia conta com 57 núcleos familiares.

A vida da comunidade de Acauã, ou Cunhã, como eles também chamam, ia bem desde o século XIX. Muitas casas foram erigidas nas duas margens do Rio Ceará-Mirim, a terra era farta e fértil. Apesar das dificuldades de infraestrutura, a terra era deles e, mais importante, eles eram donos das próprias vidas.

Mas a construção da Barragem de Poço Branco no Rio Ceará-Mirim, na década de 1960, é lembrada com pesar pelos anciãos que acordaram à noite com a água ensopando suas camas e redes e viram o dia amanhecer sobre suas casas e pertences totalmente submersos.

As autoridades locais e os responsáveis pela Barragem não apresentaram nenhuma compensação pela perda, nenhuma indenização pelo enorme prejuízo material e simbólico sofrido pelos negros de Acauã. Tudo o que lhes foi oferecido em troca de seu desamparo foram míseros 4 hectares, onde foram erguidas 16 casas. Estas se reproduziram nas últimas décadas, e formam um conjunto de mais de 50 famílias.

Acauã deixou de ser uma comunidade livre para viver confinada num pequeno terreno que pode chamar de seu e que nem é suficiente para sua subsistência. Se antes eles trabalhavam para si, hoje eles são obrigados a plantar em terras alheias e pagar uma corveia atávica. A Cunhã Velha é hoje uma Atlântida perdida sob as águas do Ceará-Mirim.

Remanescentes das comunidades dos quilombos

A Constituição Federal Brasileira  de 1988 trouxe o seguinte artigo no seu Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT):

Art. 68 – Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

A legislação que regulamenta o Art. 68 do ADCT – CF/1988 (Decreto Nº 4.887/2003 e Instrução Normativa INCRA Nº 57/2009) foge do antigo conceito colonial de quilombo e prevê a desapropriação como forma de recompor o território étnico da comunidade quilombola:

Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

§ 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.

§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.

§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.

A estratégia de se ampliar o conceito de quilombo para os diversos casos de descendentes de escravos que ficaram marginalizados e despossuídos na sociedade e economia brasileiras foi um meio de atender a uma demanda fundiária muito maior do que a dos descendentes daqueles que escaparam do cativeiro. Muito do contingente da população rural miserável não é sem-terra, ou seja, não vive sem um chão para chamar de lar. Os quilombos representam as comunidades que têm chão e têm teto, mas não o suficiente para viver com dignidade, e muitas vezes a terra que consideram sua por direito, por ter pertencido a seus tataravós, está hoje esbulhada e usurpada por quem tem dinheiro para comprar direito.

A Política de Regularização de Territórios Quilombolas representou uma chance de os quilombolas de Acauã receberem a indenização que nunca tiveram. Ao se reconhecerem como remanescentes das comunidades dos quilombos, o Estado pôde atender a uma demanda por um direito que de outra forma eles não conseguiriam adquirir.

Também foi o início de um fervilhar de conflitos latentes sob a aparente harmonia social na qual Acauã está inserida. Por exemplo, alguns dos proprietários que  costumavam arrendar terras aos quilombolas (e cujos imóveis foram visados pelo INCRA para beneficiar a comunidade) impediram o uso de suas terras pelos trabalhadores acauanenses.

Um dos episódios mais traumáticos começou com um boato de que o MST pretendia ocupar a Fazenda Gamellare, vizinha do pequeno terreno onde moram os quilombolas. Com medo de que a referida fazenda fosse perdida para os sem-terra, alguns moradores de Acauã acamparam lá. No dia seguinte, um indivíduo que se identificou como advogado do proprietário chegou ao local acompanhado de homens armados. Atearam fogo no acampamento e ameaçaram passar um trator por cima.

Má notícia (continuação)

A ação movida na Justiça, que impediu o INCRA de desapropriar um dos imóveis levou o advogado da comunidade de Acauã, Luciano Ribeiro Falcão, a tentar conversar com o desembargador responsável pelo caso, em Recife. Ele foi ao INCRA e conseguimos um carro para a viagem. Dois representantes da comunidade foram conosco, Aleandro e Júnior. E praticamente não fomos atendidos, pois o desembargador só admitiu falar com o advogado e com um dos quilombolas. E mesmo assim só admitiu 5 minutos de audiência.

Dois quilombolas e um antropólogo do INCRA batendo na porta da Lei
Júnior e Aleandro, dois quilombolas, e um antropólogo do INCRA batendo na porta da Lei. Notem a imensidão do lugar e como ele faz qualquer um se sentir minúsculo

Recentemente recebi uma informação da procuradora-chefe do INCRA do RN de que todo o processo administrativo em questão deveria ficar suspenso atá o julgamento da supracitada ação… neste dia eu fiquei um pouco abatido e triste.

A decisão de se impedir o andamento da desapropriação da Fazenda Maringá foi baseada numa interpretação literal do marco legal que fundamenta toda a política de regularização de territórios quilombolas, o Art. 68 do ADCT. Ou seja, o juiz pretendeu ignorar qualquer coisa que fosse além da interpretação de que quilombo é apenas o reduto de escravos fugidos e que a regularização de seus territórios poderia prever a desapropriação com vistas à autonomia dessas comunidades.

Grandes controvérsias giram em torno dos fundamentos (tanto jurídicos quanto antropológicos) da política de regularização fundiária voltada para remanescentes das comunidades dos quilombos. Eu mesmo tive muitíssimas dúvidas quando comecei a trabalhar com isso, e sempre me perguntei se era mesmo válido e honesto ressemantizar o conceito de quilombo e, em alguns casos, propor a regularização de um território que não pertenceu realmente à comunidade, mas que atende suas necessidades de sobrevivência.

Um dos principais pontos de que discordo nessa política é a identificação das comunidades quilombolas por um critério “étnico-racial”, ou seja, sua atuação focada em comunidades “negras”. As comunidades quilombolas são heterogênas demais em termos dos problemas que enfrentam para serem classificadas de modo tão homogêneo. E há muitas comunidades não-negras que enfrentam problemas fundiários semelhantes. Em minha opinião, os critérios para esse tipo de regularização fundiária de comunidades rurais deveria considerar aspectos sócio-econômicos e não fenotípicos.

No entanto, mesmo com todas essas dúvidas e discordâncias, especialmente no caso de Acauã, eu senti fortemente a repercussão negativa de uma ação contrária. Por mais que eu pense que a regularização de territórios de comunidades rurais deveria ser um tanto diferente, ela é uma saída viável para problemas urgentes que de outra forma não seriam solucionados.

O quilombo de Acauã não teve a justa compensação pelas inúmeras privações, perdas e descasos que vem sofrendo em sua história. Se não podem se enquadrar no perfil de sem-terra, se as terras perto das quais moram não se enquadram nos requisitos para desapropriação nos moldes da Reforma Agrária… então a identidade quilombola, um meio de serem vistos pelo Estado, e a reconstrução de seu território, são meios legítimos de lhes oferecer oportunidades menos desiguais.

Não dá para não lembrar de Franz Kafka, no trecho fundamental de O Processo, um pequeno conto ditado por um padre a Josef K., no opressor e racional ambiente de uma catedral. No filme de Orson Welles, o conto vem na abertura:

Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo dirige-se a este porteiro e pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode entrar mais tarde. “É possível”, diz o porteiro, “mas agora não.” Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta, e o porteiro se põe de lado, o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando nota isso, o porteiro ri e diz: “Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu sou poderoso. Eu sou apenas o úlitmo dos porteiros. De sala para sala, porém, existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso suportar a visão do terceiro”. O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo e a longa barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para ser admitido, e cansa o porteiro com seus pedidos. Muitas vezes o porteiro submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua terra e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como as que costumam fazer os grandes senhores, e no final repete-lhe sempre que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado para a viagem com muitas coisas, lança mão de tudo, por mais valioso que seja, para subornar o porteiro. Este aceita tudo, mas sempre dizendo: “Eu só aceito para você não achar que deixou de fazer alguma coisa”. Durante todos esses anos, o homem observa o porteiro quase sem interrupção. Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo para a entrada na lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa em voz alta o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil, e uma vez que, por estudar o porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele, pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente, sua vista enfraquece e ele não sabe se de fato está escurecendo em volta ou se apenas os olhos o enganam. Contudo, agora reconhece no escuro um brilho que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências daquele tempo convergem na sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro. Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a diferença de altura mudou muito em detrimento do homem. “O que é que você ainda quer saber?”, pergunta o porteiro. “Você é insaciável.” “Todos aspiram à lei”, diz o homem. “Como se explica que, em tantos anos, ninguém além de mim pediu para entrar?” O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua audição em declínio, ele berra: “Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só a você. Agora eu vou embora e fecho-a”.

[Franz Kafka]

6 comments

  • É, meu caro Thiago, a Justiça só é cega para alguns poucos, exeto quando não lhe convém ser. Para todo o resto, aqueles que não fazem parte do seleto grupo dos "eleitos", há sempre um olho aberto _ e o outro só continua fechado para manter a fachada de aparente imparcialidade.

    Em São Paulo, a mesma justiça que, alegando a preservação do direito a propriedade privada, impede a milhares de Sem Terra o acesso a propriedade, resguarda o posse de milhares de quilômetros quadrados de terras devolutas no Pontal do Paranapanema, que pertencem ao Estado, a um punhado de famílias ricas que as ocupam ilegalmente a várias decadas sem serem importunadas. A mesma lei que serve para uns, não vale para outros.

    Outro exemplo, desta vez na Capital, foi a ocupação, ilegal, de um extenso terreno de propriedade do estado de S. Paulo, localizado na região da Berrine _ a mais valorizada da cidade _ pela Rede Globo. Apesar de público o terreno foi cercado e transformado em espaço de lazer exclusivo dos funcionários da emissora _ numa região carente de áreas de lazer. Enquanto isso centenas de famílias que viviam numa favela próxima desde o início dos anos 70 foram expulsos pela tropa de choque da polícia militar com bombas de efeito moral e balas de borracha antes que pudessem assistir suas humildes moradias serem derrubadas por tratores.

    No entanto nehuma das denuncias contra a ocupação pela Globo de um terreno público resultou em investigação ou chegou a oinião pública. Isso só foi acontecer graças a uma "briga" entre a Globo e a Rede Record. Para atacar a rede adversária, a Record explorou a ocupação do terreno. O resulgtado?

    O então governador José Serra, para evitar um desgaste maior, simplesmente reconheceu e oficializou a posse do terreno, que é público, pela Rede Globo, que em troca ofereceria uma parceria com o gov. do estado para a instalação, no local, de uma escola técnica voltada para a formação de tecnicos em televisão _ que depois de formados iriam trabalhar aonde?. O dinheiro para a construção da escola viria do estado, ficando a cargo da emissora a indicação de professores _ pagos pelo estado _ e do material didático. Um presentão!

    Só uma pergunta: Qual foi o resultado da conversa com o tal desembargador? O que ele falou ou como ele tratou os dois? Há outros recursos disponíveis? Só curiosidade…

    Espero que, apesar de tudo, esses descendentes quilombolas recebem a justa reparação a que têm direito.

    Um abraço!

  • Oi Thiago…muito infeliz a nossa história…viajar daqui para Recife e bater de cara na porta depois de tentarem nos fazer desistir…após pularmos alguns vários obstáculos somente tiveram acesso eu e o Aleandro (o nome dele precisa ser corrigido)para iniciarmos um monólogo com o DE(us)sembargador… A decisão dele, tanto na liminar quando no acórdão…bom nem merece comentários…
    Mas isso nos estimula a reforçar nossas energias, levantar a cabeça e fortalecer a luta, que é interminável…
    O pior de tudo é ter que enfrentar essa Procuradoria do INCRA…as Comunidades, que estão situadas na zona rural (ao menos a maioria) precisam saber da atuação dessa procuradoria e pensar estratégias de combate…a luta continua, porém, as armas são outras…Avante camarada!
    Parabéns pelo blog…saiba que podes contar sempre com o nosso apoio!

  • @Eduardo,

    Obrigado pelo encorajamento e pelo exemplo da falcatrua da Globo. Infelizmente, o Direito ainda herda da Idade Média seu caráter elitista. Ele surgiu para justificar a soberania do rei e parece ainda servir para isso…

    @Luciano,

    Mil desculpas a Aleandro pelo nome errado. Eu lembrava que era uma variação de Alexandre, e lembrei que já vi o nome "Elexandre" em algum lugar, então me confundi. Está corrigido, e incluí seu nome também.

    Vamos continuar nossa jornada por direitos iguais, por um mundo mais digno, que é o mesmo mundo em vivemos todos.

Deixe uma resposta