Oroboro

No filme A História sem Fim (The NeverEnding Story, 1984), de Wolfgang Petersen, o garoto Bastian encontra um livro cuja trama é afetada pela leitura de quem o tem em mãos. A terra de Fantasia, cenário da história lida por Bastian, está em declínio, e cabe a Bastian salvar a Imperatriz Menina, dando-lhe um nome e assegurando a continuidade das história de Fantasia.

Mas a obra de Michael Ende, Die Unendliche Geschichte (A História sem Fim), que inspirou o filme, tem um apelo maior (infelizmente ainda não o pude ler), pois na própria trama de A História sem Fim acompanhamos Bastian encontrar um livro com esse mesmo nome, e temos a impressão de que nossa própria leitura afeta a história na qual há um livro cuja leitura afeta uma outra história, que no final é a mesma.

Auryn, uma variação do Oroboro
Auryn, uma variação do Oroboro

Dessa forma, o símbolo ostentado pela capa do livro, o Auryn, uma variação do antigo Ouroboros ou Uroboro ou ainda Oroboro (mais condizente com o seu sentido, por ser um palíndromo), a serpente que morde a própria cauda, sinaliza o fato de que a leitura cria a história e a existência da história provoca a leitura.

Esse aspecto da autossustentação nos remete ao conceito de autopoiese, descrito por Humberto Maturana e Francisco Varela no livro A Árvore do Conhecimento. O paradoxo da vida, segundo os dois biólogos chilenos, é que o ser vivo consome a energia que capta do ambiente, transformando-a em e/ou mantendo uma estrutura capaz de transformar a energia do ambiente, que se constitui na composição de seu corpo… coisa meio enrolada. O que temos que (tentar) entender é que o corpo vivo é uma estrutura composta de energia e é ao mesmo tempo um sistema que processa a energia para se manter existente.

Ilustração de A Árvore do Conhecimento, de Maturana e Varela
Ilustração de A Árvore do Conhecimento, de Maturana e Varela

É como tentar entender quem veio primeiro, o ovo ou a galinha (se bem que, entendendo como se dá a evolução dos seres vivos neste planeta, certamente houve um ovo de outra espécie que gerou a primeira galinha). O ser vivo se automantém, ou seja, funciona para existir e existe para funcionar. Ora bolas, vejam a ilustração ao lado e entendam (ou não) o que eu acho que estou querendo dizer.

O ciclo interminável, o looping, a profecia autorrealizada e/ou autorrealizável, é tema de várias histórias desde a antiguidade. Quando Laio e Jocasta descobrem que o destino de seu filho Édipo é matar o pai e se casar com a mãe, todos os cuidados que eles têm para impedir que isso aconteça acabam realizando a profecia. Várias histórias da mitologia grega funcionam segundo esse mote.

No filme Em Algum Lugar do Passado (Somewhere in Time, 1980), uma mulher idosa dá um relógio de ouro a um homem, que volta ao passado para presenteá-lo à mesma mulher que lho deu, ainda jovem. Ele retorna ao presente por acidente e a mulher espera décadas até poder encontrar seu amado de novo e lhe dar o relógio, que é o ensejo para que ele volte no tempo… eu me pergunto se a passagem do tempo se aplica a esse relógio. O paradoxo é: a história do relógio é cíclica, ocorre num looping eterno em um determinado trecho da história do Universo. Mas enquanto o relógio existir por si mesmo, ele não estará sujeito a se estragar? Não chegará um “tempo” em que ele vai começar a apresentar marcas de uso, deixando de ser tão simbolicamente valioso, provocando uma degradação do referido looping e causando a desintegração de toda a história do Cosmos como a conhecemos?

Em Algum Lugar do Passado

Fuga do Planeta dos Macacos (1971)Quando Dra. Zira e Cornelius (O Planeta dos Macacos – Planet of the Apes, 1968; Fuga do Planeta dos Macacos – Escape from the Planet of the Apes, 1971))voltaram ao passado, utilizando a nave espacial dos humanos que pousaram na Terra futurista em que macacos dominam humanos, eles acabaram por dar à luz o indivíduo que iniciaria o processo de ascensão dos primatas e subjugação do Homo sapiens. A viagem de humanos ao futuro, que revelou que seu destino era inverter os papéis com gorilas, chimpanzés e orangotangos, permitiu que alguns chimpanzés voltassem no tempo e, acidentalmente, provocassem esse mesmo destino.

Algumas abordagens humorísticas sobre os paradoxos da viagem no tempo nos permitem experimentar com mais proximidade essa vertigem cíclica, que só se experimenta quando se compreendem minimamente esses ciclos. Pois há algumas pessoas que não conseguem entender nem as explicações do Dr. Brown na trilogia De Volta para o Futuro (Back to the Future, 1985).

Num episódio longo do cartoon O Laboratório de Dexter chamado A Viagem de Dexter (Dexter’s Laboratory: Ego Trip, 1999), o menino gênio viaja para o futuro para investigar como ele salvará o mundo, informação que ele recebe de robôs futuristas que vêm “destruir a pessoa que salvou o futuro”. Mais tarde, ele descobre que seria sua irmã Dee Dee a salvar o futuro, apertando um botão vermelho. Irado, Dexter e seus 3 alter-egos temporais (suas versões em 3 épocas diferentes do futuro, um jovem adulto franzino, um adulto musculoso e careca e um velhinho que usa peruca ruiva), constroem robôs programados para voltar ao “presente” e destruir Dee Dee. Quando os robôs chegam ao “presente”, Dexter os ouve dizer que vieram “destruir a pessoa que salvou o futuro” e… Oroboro!

Supremo: A Era ModernaNa série de quadrinhos Supremo, houve um arco de histórias escrito por Alan Moore, que tratou o personagem como um puro e simples plágio do Super-Homem, e fez ao mesmo tempo uma paródia e uma homenagem so super-heróis kryptoniano.

Em um dos episódios escritos por Moore, um personagem chamado Meteoro Mestre viaja ao passado para destruir o jovem Supremo, por vingança, e recebe ajuda do jovem Darius Dax (sátira de Lex Luthor) para realizar seu plano. Este dá errado, e ele vai para o futuro tentar destruir o Supremo adulto, recebendo ajuda do Dax maduro e falhando novamente. Como perdeu parte da memória, ele não lembra mais que já havia ido ao passado e e decide voltar no tempo para se vingar do jovem Supremo e… bem, de onde veio esse cara? Ele só existe nesse looping temporal eterno, e em nenhum outro lugar. É quase o mesmo problema do relógio de ouro do Super-Homem… digo, do personagem de Christopher Reeve em Somewhere in Time (título que, a propósito, é o mesmo de um dos melhores álbuns do Iron Maiden).

Sandman: Estação das BrumasEm Sandman: Estação das Brumas (Sandman: Season of Mists, 1990-1991), dois anjos são designados por Deus para tomar conta do Inferno, ordem que é questionada por eles, o que os torna automaticamente anjos caídos, incapazes de voltar ao Céu.

Esse é um dos problemas da crença teísta em desígnios divinos. Se Deus controla tudo, então é da vontade dele que haja pecadores, que estes ajam como agem, o que nos faz perguntar: então eles não têm escolha? Então ninguém tem escolha? Segundo o Êxodo, foi Deus quem fez o Faraó “endurecer o coração” e negar aos hebreus a saída do Egito, o que foi motivo da ira de Deus. É como se eu ensinasse uma criança a usar uma baladeira e a culpasse por matar um passarinho.

Toda essa divagação cíclica sobre o Oroboro, a serpente que morde o próprio rabo, tem a ver com a própria construção do ser humano e o desenvolvimento do conhecimento humano.São nossas capacidades psico-físicas que nos permitem apreender o mundo, e essa apreensão (palavra cognata de aprender e aprendizado) nos capacita a aprender mais, o que cria a espiral crescente da evolução humana.

Analogamente, os mitos e histórias fantásticas surgem de impulsos material-imaginativos, e sua acumulação cria um  repositório de imagens, símbolos, esquemas narrativos que servem de fonte para a manutenção desses impulsos material-imaginativos. Daí, a criação de ficções fantásticas em forma textual é alimentada pela necessidade cognitiva dos leitores, o que suscita a (re)criação dessas histórias sem fim.

Está difícil acompanhar esse raciocínio. O que é Oroboro mesmo?

5 comments

  • Oi, Thiago, gostei das reflexões. Agora, você sabia que o filme "Em Algum Lugar do Passado" foi baseado nos manuscritos do autor, encontrado morto no quarto do tal hotel? O irmão fez uma adaptação e publicou o livro. O que dá para deduzir, é que o autor realmente viveu o romance com a tal mulher na vida anterior, e ressomou a tempo de ainda encontra-la velhinha, que, o reconhecendo, indicou o hotel onde viveram o romance. No livro, ele senta-se num dos quartos do hotel e começa a se sugestionar de que está voltando no tempo, escrevendo em folhas de papel. Nos rodapés, o Editor destaca – "e esta frase se repete por 20 páginas…). Abraços, Clara.

  • @Clara,

    Que interessante, eu não sabia disso! Pensava até que a história era totalmente fictícia. Agora vejo que é um filme ainda mais rico do que eu pensava e nos ajuda a ter ideias sobre como proceder numa técnica de retrocognição. Obrigado por sua contribuição. 🙂

  • Em Algum Lugar do Passado é de Richard Mathison, o mesmo autor de Eu Sou a Lenda. Se ele morreu em 2013, como pode ter morrido no quarto do hotel e deixado um manuscrito de um filme, baseado no livro, que estreou em 1980? O roteiro, inclusive, é do próprio Mathison…

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