A princesa do poder de um novo tempo
Nos idos dos anos 1980, uma guerreira superpoderosa de um planeta distante chegava às telas da televisão lutando ao lado dos Rebeldes contra a odiosa Horda. Nesse saudoso desenho animado, a princesa Adora assumia seu alter-ego She-Ra e se tornava a mulher mais poderosa do universo, dotada de força e resistência descomunais, o dom da empatia e da cura, uma espada mágica que assumia a forma de qualquer utensílio de que necessitasse e uma montaria voadora que era a perfeita mistura de Pégaso e Unicórnio.
Pessoalmente eu adorava She-Ra: A Princesa do Poder, tanto ou mais do que He-Man, protagonizado por seu irmão gêmeo do planeta Eternia. Talvez essa provável preferência tivesse a ver com a aura de novidade que a série da princesa guerreira representava em relação à série anterior, da qual eu já manjava quando She-Ra estreou no Xou da Xuxa. Personagens novas, com novas habilidades, a sensação de que Etheria era um lugar mais repleto de conflito e tensão na constante guerra entre as forças da Rebelião e o exército da Horda, uma paleta de cores mais diversa e chamativa, um lugar mágico chamado Floresta dos Sussurros…
É bem possível (e tenho quase certeza disso) que o fato de She-Ra ter mais personagens femininas importantes do que He-Man fosse determinante, pois ao apresentar várias personagens mulheres e diversos aspectos normalmente associados a histórias “para meninas”, esta série dava um novo frescor aos já batidos temas “masculinos” de tantos desenhos animados comuns àquela época.
Os heróis de Eternia e Etheria se tornaram material “cult” para a geração que os acompanhava na infância, e esta pode ser uma das razões (uma das menos importantes, diga-se) para o desencadeamento de reações negativas ao anúncio de uma nova série, intitulada She-Ra e as Princesas do Poder, a estrear em setembro na Netflix, que a está produzindo. Como dito entre parênteses, essa onda de reclamações contra o anúncio, baseada somente em algumas imagens liberadas na internet, não vem de uma suposta nostalgia pelo programa antigo em si, mas tem tudo a ver com outra nostalgia, de viés conservador.
A diversidade dos corpos
De maneira geral, aqueles que não estão gostando do novo conceito visual se focam num ponto em comum: a nova She-Ra não tem, segundo eles, um corpo “feminino” como no desenho antigo. Uns dizem que a nova aparência da personagem é andrógina, outros que ela tem o corpo de um garoto, e lamentam que ela não esteja sendo propriamente representada como uma mulher. Essa ideia é simplesmente sexista e um bom exemplo da ideologia normativa de gênero, que separa os corpos em dois modelos ideais: um “masculino” e um “feminino”.
Felizmente, para muita gente já está claro o absurdo dessa ideologia. Para tantas outras, falta entender que aquilo que eles consideram como modelo de corpo feminino não é uma constante universal nem atemporal. De fato, se buscarmos na história do cinema os ideais visuais de feminilidade, vamos encontrar diversos tipos variando ao longo do tempo. Em certo contexto, esse modelo era um tipo de corpo muito parecido com o da She-Ra do novo desenho. Os corpos das grandes sex symbols da década de 1920, por exemplo (pense-se em Metrópolis e nos filmes de Charlie Chaplin), poderiam, segundo os critérios dessa normatividade atual sem consciência das mudanças históricas dos padrões estéticos, ser considerados “masculinos”.
Tanto a She-Ra original quanto He-Man representavam suas personagens por um padrão de corpo único, respectivamente, para mulheres e para homens, padrão que era uma regra estética adstrita àquela época. Todas as companheiras de luta de She-Ra, bem como todas as suas inimigas, só variavam nas roupas, nos cabelos e em pequenos detalhes dos rostos, e as personagens masculinas também. Arqueiro e os outros homens da série eram desenhados segundo o mesmo modelo de He-Man.
As exceções eram todas personagens com a função de alívio cômico, o que é um assunto à parte, mas que também diz muito sobre a ideologia normativista dos corpos sexuados. Nas novas produções televisivas, a diversidade de corpos não serve mais para marcar diferenças morais entre as personagens nem para desumanizá-las, e dá para antever que o mesmo será visto nas novas aventuras da princesa guerreira.
Uma das imagens divulgadas de She-Ra e as Princesas do Poder já nos adverte sobre sua inserção nesse espírito da época, mostrando Adora em seu traje à paisana, o Arqueiro como um rapaz negro (o original era branco) e uma personagem que parece ser a Cintilante, com um corpo bem diferente do da protagonista e do que ela tinha na série antiga.
O fato é que, atualmente, os corpos femininos e masculinos têm sido cada vez mais representados, em desenhos animados, quadrinhos e outras mídias, de forma bastante diversa, refletindo a diversidade de corpos do mundo real. Se ainda temos um modelo idealizado associado ao que entendemos como “corpo feminino”, já estamos rodeados de novas produções do entretenimento de massa que não se limitam a tais modelos quando apresentam suas personagens.
Não posso deixar de mencionar, como exemplo paradigmático dessa tendência, Steven Universo, sobre o qual já fiz um panorama em texto anterior. Mas também vale apontar para o trabalho da própria artista por trás do reboot de She-Ra.
Uma moral sem dicotomias
Essa diversidade na representação dos corpos femininos já tem precedente na obra de Noelle Stevenson, a criadora de She-Ra e as Princesas do Poder. Num trabalho em conjunto com outras quadrinistas, Stevenson criou a série Lumberjanes, sobre um grupo bastante diversificado de escoteiras, com diferentes tipos de corpo e de personalidade. Sozinha, a artista criou a linda e excelente Nimona, uma história que vai mais além de apenas relativizar os corpos das personagens: aqui, ela mostra um outro aspecto importante das novas tendências das mídias populares: a problematização, ou o esmaecimento, do maniqueísmo pautado na dicotomia bem/mal.
Em Nimona, a personagem-título é a capanga de um supervilão, que luta contra uma instituição de pesquisas científicas. Esta é defendida por um herói que é o arqui-inimigo dele. No decorrer da narrativa, aquilo que parecia ser “o Bem” e aquilo que pensávamos ser “o Mal” se tornam conceitos confusos e extremamente relativos. Noelle Stevenson tece uma trama genial sobre a construção e a desconstrução desses conceitos. Isso torna muito animadora a expectativa por She-Ra e as Princesas do Poder.
Se fizermos uma viagem para aquela antiga história de Adora, a princesa que foi criada desde pequena para ser uma das líderes da maligna Horda, percebemos que, nessa trama, a jovem iludida considera que seu papel é o de manter a ordem no mundo e combater uma força do caos chamada Rebelião. Porém, quando vê de perto a violência praticada sobre cidadãos indefesos pelas tropas sob seu comando, ela questiona a moralidade da Horda. A feiticeira Sombria, uma figura materna para ela, utiliza magia para mantê-la iludida.
No final, ela acaba se libertando e se torna uma das principais figuras da Rebelião. No final, as ações da Horda não podem ser relativizadas, é uma organização maligna que propaga ações prejudiciais para a população de Etheria, enquanto a Rebelião é indubitavelmente boa, pois luta contra a opressão de seus inimigos. No final, o que determina a tomada de posição nesse conflito é alguma característica intrínseca a cada indivíduo: aqueles que são naturalmente bons se tornam rebeldes, enquanto aqueles que são incorrigivelmente corruptos se associam à Horda.
Numa narrativa mais complexa e tridimensional, poder-se-ia explorar os discursos ideológicos que a Horda utiliza para justificar suas ações, fazendo parecer que eles realmente se importam com Etheria e que acham que a ordem trazida por eles é moralmente legítima, enquanto os rebeldes seriam representados como terroristas em sua propaganda política. Poderíamos ver como o apego de Adora às relações afetivas criadas com seus aliados da Horda poderiam dificultar sua mudança de posição no conflito.
Na imagem abaixo, vemos Felina e Adora numa bancada, e suas expressões e linguagem corporal sugerem muita coisa. Elas aparentam ser próximas mas ao mesmo tempo parecem estar desconfortáveis, provavelmente porque Adora começou a se desiludir com a Horda e Felina não sabe o que dizer a ela, pois também tem dúvidas. Se meus palpites tiverem um mínimo de lógica, já podemos esperar uma complexidade maior nas questões morais a ser tratadas pelo desenho. E é importante frisar que, se isso tudo parece complicado demais para aparecer em uma série animada para crianças, basta ver como Steven Universo faz isso de maneira sutil e genial.
Essa abordagem foi tratada de maneira muito inteligente em Star Wars: Estrelas Perdidas, romance de Claudia Gray. Nessa história, dois jovens apaixonados se veem separados pelas facções a que servem: uma é soldada do opressor Império Galático, o outro faz parte da Aliança Rebelde. Numa configuração política por demais parecida com a que vemos em She-Ra, acompanhamos os dilemas morais das personagens, cada uma justificando as ações da organização à qual serve. Ambas consideram que sua luta é justa e necessária para o bem da galáxia, e compreendemos que cada ser humano que participa desse descomunal conflito é extremamente complexo em seus motivos para tomar a posição que toma, não sendo suas razões nem malignas nem virtuosas em absoluto.
Se tudo der certo, se o inusitado encontro da genial Noelle Stevenson com o saudoso desenho animado da grande guerreira de Etheria for frutífero e acertado, espero que She-Ra e as Princesas do Poder seja uma história para fazer crianças e adultos pensarem sobre a relatividade de nossos conceitos sobre certo e errado, sobre feminino e masculino, adequado e inadequado. Espero que ela mostre como as pessoas podem cometer erros mesmo com boas intenções, e evidenciar que mesmo aquelas que consideramos más podem realizar atos de bondade.
E espero, enfim, encontrar o Geninho, e que ele traga reflexões como esta para todos nós.