A reinvenção de Dandara dos Palmares

Quando se fala na história da resistência negra contra a escravidão no Brasil, alguns dos nomes mais comuns a vir à tona são Zumbi e Palmares. Não é à toa, tendo em vista a força da nação, criada por africanos livres e seus descendentes, que se constituiu onde hoje é o estado de Alagoas e que a muito custo foi desbaratada pelo poder colonial escravista, e considerando, ademais, que os vencedores desse conflito tenham alardeado a decapitação de um de seus principais líderes, Zumbi, como símbolo da derrota (ou, do ponto de vista dos oprimidos, símbolo da resistência) do grande quilombo.

Porém, há vários outros nomes associados historicamente ao Quilombo dos Palmares, e entre eles a companheira de Zumbi. Falamos de Dandara dos Palmares, mulher negra e livre, de quem há pouquíssimos registros históricos. Nessa misteriosa lacuna de informações, mitos, lendas e fantasia se encarregam de elaborar narrativas inspiradoras sobre figuras históricas impactantes como a guerreira palmarina, e é o que fez Jarid Arraes com seu livro As Lendas de Dandara.

Jarid Arraes é jornalista e já escreveu a coluna Questão de Gênero, da Revista Fórum, onde discutia temas ligados ao feminismo e à diversidade. Também é escritora de cordel, sendo uma cearense herdeira de cordelistas. Ela marcou presença com um cordel de ficção científica na coletânea Universo Descontruído 2, publicado em 2015. Em 2016, publicou seu primeiro livro de ficção, recontando a trajetória de Dandara dos Palmares e provocando uma repercussão interessante no imaginário sobre a história dos negros no Brasil. Publicou em 2017 o livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis, trazendo visibilidade a figuras importantes como Carolina Maria de Jesus e Tereza de Benguela.

Uma narrativa afrocêntrica

DandaraLivroA primeira coisa que Arraes joga para o leitor em As Lendas de Dandara é um panorama da escravidão dos africanos pelos europeus, a partir do ponto de vista da própria África, representada antropomorficamente nas figuras dos orixás, divindades do panteão iorubá, com destaque para Iansã.

(Vale ressaltar que a ideia de África como a entendemos hoje não existia antes da colonização e exploração do continente pela Europa, e portanto essa África do livro é romantizada. Isso é importante no contexto da narrativa fantástica em questão, pois seu significado político tem impacto positivo no processo de empoderamento simbólico que emana da poderosa figura de Dandara, como veremos a seguir.)

Dessa forma, o primeiro capítulo, “O Nascimento de Dandara”, nos mostra uma origem mítica da protagonista, criada por Iansã em resposta à preocupação dos orixás, escandalizados com a escravização dos negros pelos brancos. O racismo não faz o menor sentido para os deuses, e Iansã se encarrega de dar à luz uma heroína com a missão de ajudar os africanos e seus descendentes que se encontram na América do Sul, seja na condição de escravizados, seja resistindo nos quilombos.

Dandara é apresentada como a filha de uma deusa, o que nos remete a diversos mitos heroicos, como Héracles (filho de Zeus) e mártires, como Jesus (filho de Javé). Estando destinada a grandes feitos, a bebê Dandara é deixada estrategicamente numa estrada, para ser encontrada por Bayô, uma mortal, que adota a criança. Nesse momento cria-se uma ligação simbólica e mágica entre as três figuras femininas, de forma semelhante ao que se vê em figuras míticas como o Cristo (que tem um pai espiritual e outro mortal, ou que é representado como parte de uma trindade sagrada). Essa trindade feminina e negra (Iansã/Dandara/Bayô) constitui o cerne do livro e marca a obra como um contraponto forte às milhares de histórias androcêntricas e eurocêntricas que pululam em nossa cultura literária.

A partir do segundo capítulo, embora o romance seja todo em terceira pessoa, a história é contada, na maior parte, do ponto de vista da própria heroína do título, e Dandara começa a demonstrar características que apontam para o seu destino. Seu espírito de liderança nata é antevisto em sua atitude comunitária de conhecer cada habitante e cada recanto do quilombo onde mora, o que lhe traz uma visão estratégica e cultiva um grande carisma.

Ela tem sonhos que a ensinam a fabricar suas armas e visões que a tornam uma curandeira habilidosa. Interessa-se pelas guerras e pela capoeira, a arte marcial dos quilombolas, e confronta as atribuições tradicionais dos papéis de gênero, preferindo se dedicar a aprender sobre as missões de resgate de escravos empreendidas pelos homens a ficar tediosamente cozinhando com sua mãe.

Após essa introdução à personagem principal do livro, seguem-se diversas aventuras em que Dandara vai cada vez mais amadurecendo em sua luta contra a escravidão. Através dela, nós nos conscientizamos da importância dessa luta:

– Se lutamos por liberdade, por que vamos manter a paz com as pessoas que fazem nossos irmãos de escravos? Ou todos são livres ou ninguém é […]. [ARRAES, p. 56]

Em sua trajetória, ela descobre sobre sua origem divina e a ligação entre as três figuras principais da história se torna mais significativa, com Iansã, deusa da tempestade, intercedendo por sua filha de temperamento tempestuoso e Bayô, sua mãe humana, servindo-lhe como porto seguro num mundo repleto de desafios para uma guerreira quilombola.

Já adulta, Dandara se torna uma guerreira do Quilombo dos Palmares e uma instrutora para as novas gerações, ensinando aos mais novos a necessidade de se cultivar o corpo e fortalecer a mente. Sua liderança é inspiradora para jovens mulheres palmarinas:

Pelo exemplo de Dandara, várias mulheres entraram para a defesa do quilombo e agora também faziam a guarda nas fronteiras. [idem, p 106-107]

É nesse contexto que somos apresentados a Zumbi, aquele que viria a ser seu companheiro e uma das principais lideranças de Palmares. Nessa narrativa, Dandara é construída como uma mulher que se relaciona amorosamente com um homem que não é mais importante do que ela, e neste sentido o livro contraria o velho androcentrismo que a imortalizou na história oficial como “esposa de Zumbi”.

Dandara é apresentada como uma mulher grande, forte e imponente, características que se acentuam nas ilustrações de Aline Valek. Em suas incursões nas senzalas para libertar mulheres e homens subjugados pelos colonos europeus, ela demonstra uma grande habilidade para lutar e para liderar, uma grande força para se impor sobre os escravizadores e uma grande sensibilidade, que se conecta com o leitor para gerar empatia. Ao se ver diante de diversas pessoas aprisionadas numa senzala, Dandara se condói profundamente:

Vendo aquele cenário, Dandara sentia em seu ventre uma cólica terrível, como a dor de uma mulher que perde o filho ainda no útero. Era a mesma dor de África, que sangrava há tanto tempo e via escorrer pelo oceano o seu furor de vida. [idem, p. 125]

Ela tem plena noção de seu papel e o de seus companheiros de luta. Em alguns momentos, ela sutilmente deixa clara a lição de que as mulheres e homens negros devem ter seu protagonismo na História. De fato, um dos principais temas do livro é o protagonismo negro e a necessidade de se mostrar personagens fortes e vivas nas narrativas históricas e ficcionais.

Preenchendo as lacunas da História

Ilustração de Aline Valek para “As Lendas de Dandara”

Jarid Arraes pega as pouquíssimas informações sobre a figura histórica de Dandara e constrói toda uma trajetória, inserindo elementos mitológicos iorubás para criar uma conexão identitária e explorando de maneira criativa sua relação com Zumbi e a forma pela qual terminou seus dias neste mundo. A autora elabora uma personagem que, embora vivendo no século XVII, incorpora um conjunto de preocupações atuais a respeito dos direitos da população negra e das mulheres em nossa sociedade.

Dandara tem plena consciência da condição livre dos seres humanos que foram trazidos à força para o “novo” continente, contrariando toda a ideologia escravista que os europeus construíram para justificar uma suposta inferioridade racial.

– Sua escrava insolente! – esbravejou o homem mais velho.

– Meu nome é Dandara, sou guerreira dos Palmares e sou uma mulher livre! [idem, p. 74]

O tom geral do livro nos remete ao real maravilhoso de O Reino deste Mundo, obra do escritor cubano Alejo Carpentier que reconta a história da Revolução Haitiana considerando a participação sobrenatural dos praticantes do Vodu, religião de matriz africana tradicional no Haiti. Neste sentido, vale ressaltar a importância, em Dandara, de uma narrativa que se faz a partir de uma cosmovisão afrocêntrica, e não mais da católica e europeia, que se pauta num misticismo de valores patriarcais e que tradicionalmente ajudou a justificar teologicamente a submissão de um povo por outro.

O Quilombo dos Palmares é retratado como um lugar cujo propósito é não apenas servir de refúgio aos africanos escravizados, mas também empreender investidas com o objetivo de libertar cativos. Dessa forma, a Palmares de Dandara é um foco de resistência que fala muito sobre a luta secular contra diversos tipos de opressão que sofre a população negra no Ocidente. Ela encarna bem a mulher negra ocidental que, num sistema sexista e racista, esteve sempre ciente de seu potencial para a resistência e a transformação, como aponta Angela Davis em Mulheres, Raça e Classe:

A consciência que tinham de sua capacidade ilimitada para o trabalho pesado pode ter dado a elas a confiança em sua habilidade para lutar por si mesmas, sua família e seu povo. [DAVIS, p. 24]

Uma preocupação recorrente das personagens é o medo de ser capturada de novo. Em alguns casos, expressa-se a preferência de tirar a própria vida, opção melhor do que perder novamente a liberdade ou ter a segurança do Quilombo comprometida. Pode-se pensar numa referência a Amada, romance de Toni Morrison que conta o terror de uma ex-escrava que se vê na iminência de perder sua filha pequena para o cativeiro. Ou no romance de ficção científica Kindred, de Octavia E. Butler, onde uma mulher negra da contemporaneidade vive o terror de, por seguidas vezes, viajar ao passado e ser tratada como escrava.

Porém, diferente das prosas mais próximas do cânone literário ocidental, Jarid envereda pelo fantástico, pelo gênero da aventura e da ação e cria um tom épico para essa curta e intensa narrativa. Em alguns momentos da leitura, imaginei como seria significativo um video game da franquia Assassin’s Creed, onde Dandara seria a protagonista, entrando sorrateiramente nos engenhos do Brasil colonial para boicotar planos de invasão aos quilombos e para libertar seus irmãos e irmãs, viajando até o litoral para sabotar navios negreiros, estrelando toda a cena da resistência quilombola daquela época.

Dandara é uma figura inspiradora que motiva as pessoas que se identificam com ela e desperta a empatia daquelas que precisam compreender a vivência de uma resistência que surgiu desde o momento em que o primeiro ser humano foi desumanizado com a subjugação à escravidão.

(A imagem em destaque é uma ilustração de Aline Valek para “As Lendas de Dandara”.)

Referências

  • ARRAES, Jarid. As lendas de Dandara. Porto Alegre: Liro, 2015.
  • BUTLER, Octavia E. Kindred: laços de sangue. São Paulo: Morro Branco, 2017.
  • DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • MORRISON, Toni. Amada. São Paulo: Círculo do Livro, 1987.

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