Da amizade – parte 2

Na primeira vez que li o ensaio Da Amizade, de Michel de Montaigne, na universidade, aos 20 e poucos anos de idade, não me surpreendi muito com sua descrição tão espetacular de uma relação de proximidade, intimidade, apoio, lealdade e compreensão mútua. Eu já tinha vivenciado e vivenciava uma relação desse tipo desde os 16 ou 17 anos, com um amigo que, acho, foi a primeira pessoa que, sem ser meu parente, não hesitei em chamar de irmão.

Hoje ele completa mais uma translação ao redor da estrela Sol, desde que chegou a esta dimensão pela última vez. Aproveitando este fato, combinado com minha vontade de continuar a série Da Amizade com uma resenha do referido ensaio de Montaigne, faço jus, espero, ao que a amizade de Rúbio representa para mim – e talvez para ele.

Segundo Montaigne:

Para construí-la [à amizade] são necessárias tantas circunstâncias que é muito se a fortuna o conseguir uma vez cada três séculos.

Não posso me enganar quanto a essa afirmação. Foi pouco tempo depois de conhecer o ora homenageado que ambos percebemos uma afinidade. Ela foi aflorando aos poucos, com o passar dos encontros no segundo grau do colégio. Mas ela não apareceu de imediato. Ao mesmo tempo, foi mais rápido do que eu poderia imaginar, e quando nos demos conta já éramos amigos milenares. E ambos não duvidamos que esse relacionamento realmente é milenar, vindo de algumas vidas passadas.

Afinal, não é o tipo de coisa que se construa, por exemplo, com a simples e intensa convivência familiar, que pode proporcionar laços firmes, mas não necessariamente uma amizade do tipo que aqui se discute, pois,

em geral, todas as [relações] que a volúpia ou o proveito, a necessidade pública ou privada engendram e alimentam são menos belas e nobres e menos amizades na medida em que misturam à amizade outra causa e objetivo e fruto que não ela mesma.

As relações sociais humanas se constroem a partir de instituições culturais, e nossa natureza gregária nos força a criar uma série de regras e preceitos morais e éticos para a vida em comum. No entanto, todas as conveniências de parentesco, de casamento e de coleguismo não chegam necessariamente ao ponto de constituir o sentimento e o relacionamento sublime (e também sublimado) que Montaigne chama de amizade.

Mesmo que aquelas coisas que fazemos juntos contribuam muito para a manutenção de um laço de amizade, quando esta está relativamente consolidada já é possível usufruir com grande prazer da mera companhia do outro. Aliás, não é uma mera companhia ou presença, mas um exercício de telepatia em que a conversa não para por causa do silêncio. E, por outro lado, quando a conversa é intensa, seja num debate, seja nos desabafos, ela ocorre como um monólogo, como se fosse apenas uma pessoa falando consigo mesma.

Segundo Montaigne, nenhum laço de parentesco é suficiente para construir esse tipo de amizade nobre e sublime. Não posso negar que há uma afeição especial por cada um de meus progenitores e por cada um de meus irmãos, e que posso contar com eles incondicionalmente em situações de necessidade, assim como eles podem contar comigo. Mas não chega a ser forçosamente a mesma coisa, pois sempre falta algo, os parentes raramente têm as convergências de personalidade e a vivência específica, necessárias para promover a amizade.

Montaigne também diferencia o amor, entendido como a relação afetivo-sexual, da amizade. Para ele, o amor é unilateral, acontece como uma relação entre caçador e presa, e não representa o compartilhamento dos mesmos sentimentos da amizade. Esta é uma troca bilateral, mais ligada à alma do que ao corpo.

(Mas temos que relativizar essa afirmação, considerando que Montaigne se referia aí ao relacionamento entre homem e mulher e que a ideologia de sua época era muito mais androcêntrica e machista do que atualmente em nossa sociedade, e que para o homem era inconcebível uma relação de amizade com uma mulher e entre estes poderia haver apenas uma relação sexual ou, no casamento, uma relação entre possuidor e posse. É possível, hoje em dia, com a crescente superação das rígidas regras de divisão sexual do trabalho, que um casal heterossexual forme um laço de amizade.)

De resto, o que costumamos chamar de amigos e amizades são apenas contactos e convivências entabulados devido a alguma circunstância ou conveniência por meio da qual nossas almas se mantêm juntas. Na amizade de que falo, elas se mesclam e se confundem uma na outra, numa fusão tão total que apagam e não mais encontram a costura que as uniu. Se me pressionarem para dizer porque o amava, sinto que isso só pode ser expresso respondendo: “Porque era ele; porque era eu.”

Há pessoas que banalizam de tal forma a palavra amizade que não se evadem de chamar de amigos quaisquer pessoas com quem convivam com um mínimo de civilidade. Não que o uso das palavras não mude com o passar do tempo, mas, desta forma, é difícil nomear, para diferenciar da Amizade (com A maiúsculo) a amizade banal que a maioria vive no dia-a-dia.

Percebo que há pessoas que, por causa da troca de um favor ou por causa de uma simples conversa em que compartilhou com alguém algo pessoal, já considera este seu amigo. Pior, há pessoas que colecionam “amigos”, seduzindo quem encontram no caminho, garantindo assim várias opções de refúgio quando estiverem em apuros. Geralmente são indivíduos que não conseguem estabelecer uma vida segura, vivendo também uma insegurança pessoal e íntima (o que não quer dizer, é claro, que eu trate mal os “amigos” ou sinta por eles o oposto do que sinto pelos Amigos; é preciso procurar conviver bem e, quanto possível, ter uma postura amigável e assistencial para com qualquer pessoa).

Com meus verdadeiros amigos não acontece assim. Seja em situação favorável ou em penúria (o que realmente nunca aconteceu drasticamente), cada uma de nossas casas sempre esteve aberta para o outro. Compartilhar e dividir nunca foram obrigação, mas sempre nos sentimos impelidos a fazê-lo, por livre arbítrio, por satisfação pessoal e mútua.

A fusão de que fala Montaigne causava episódios pitorescos. Era muito surpreendente (hoje em dia nem tanto) que as pessoas ao nosso redor nos confundissem um com o outro, chamando-me de Rúbio e chamando-o de Thiago, dizendo a ele que falasse com Rúbio ou me dizendo que desse um recado a Thiago. Fisicamente, nem somos tão parecidos, mas a amizade nos moldou a ambos.

Não está no poder de todos os argumentos do mundo afastar-me da certeza que tenho sobre as intenções e julgamentos de meu amigo. Nenhuma de suas ações me poderia ser apresentada, sob qualquer aparência, sem que eu descobrisse incontinenti seu motivo.

Não concordo totalmente com essa afirmação de Montaigne. Eu não poderia condescender com um ato que considero ilícito e/ou antiético, premeditado ou cometido por meu amigo. Não sem ameaçar nossa amizade. Se realmente me considero seu amigo, não posso aceitar que ele prejudique a si mesmo nem a outras pessoas. É claro que considerar algo certo ou errado é relativo, mas há algo que precisa ser dito sobre a relação entre amizade e Ética.

Retomando Montaigne, e desta vez concordando com ele, a amizade que ele propõe só se sustenta com um elevado senso de ética. Não quero dizer exatamente que isso implica numa compreensão do que é melhor ou pior por parte de cada um dos amigos, mas sim que eles têm, no mínimo, algumas noções e a predisposição para sempre acertar mais e sempre desenvolver sua ética infinitamente, da mesma forma que a Ciência busca eternamente compreender a realidade.

Duas pessoas que se relacionam numa amizade mas não têm esse senso ético não podem ser considerados verdadeiros amigos, pois a falta de noções éticas dificultará a confiança mútua, e eles tenderão a trair um ao outro, por desconfiança e medo, e poderão até abandonar o amigo quando estiver em situação melhor do que ele. Porém, uma amizade baseada na Ética fará com que ambos ajudem um ao outro a evoluir, trocando ideias e experiências que beneficiam aos dois (ou mais).

Assim, conhecendo-nos a fundo, eu e meu amigo compreenderemos porque o outro escolheu pensar e/ou agir (pensar é uma ação, agir é pensar com o corpo) de determinada forma, e deverá repreendê-lo se discordar. A discordância, no entanto, jamais será motivo de desavença, pois o que discorda sabe que tem, ele mesmo, aspectos que merecem reprovação do amigo, e sempre espero que ele esteja disposto a apontar se estou no caminho certo. O binômio admiração-discordância deve prevalecer em qualquer relação sadia de amizade, sempre na busca mútua pelo o desenvolvimento intelectual e emocional.

Essa amizade, enfim, é o que baseia qualquer tipo de relação, seja a dois, seja grupal ou mesmo universal. Se cada vez mais pessoas experimentarem esse ideal (estou falando, é claro, de um modelo idealizado, muito difícil de concretizar plenamente, mas possível de ser vislumbrado), mais e mais indivíduos vão se sentir impelidos a tratar qualquer pessoa como se fosse seu amigo, e talvez o mundo venha a ser um lugar melhor.

Referência

  • Montaigne, Michel de. “Da amizade”. In: Os ensaios: volume 1. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Crédito da foto

  • Maria Betânia Monteiro, minha amiga, namorada do meu amigo.

13 comments

  • Lindo texto…
    logo quando acordei mandei mensagem pra Rúbio.

    Rapaz, eu jamais havia lido a parte 1..
    Muito obrigado pelo que você escreveu na parte 1…
    puxa vida, pq meus óculos estão embaçados e não consigo mais escrever nada???

    Amo você, meu irmão. Sempre amei!

  • Muito bom thiagão!! excelente texto mesmo. Rubio rulez rsrs
    algumas considerações:
    1 – Sobre a amizade e amor: Considero ambos sentimentos muito próximos, quando retirada a conotação sexual. O que sinto por meus irmãos é muito similar ao que sinto por alguns amigos. e tem amigos onde este sentimento é mais coeso que para os irmãos. Por isso considero a verdadeira amizade um ensaio individual do maxifraternismo (amor ágape).
    2 – sobre a ética: Imagino aqueles casos de amizade criadas na guerra, retratadas em filmes, quer perduram toda a vida. Minha posição sobre o soldado em guerra é que ele sempre é antiético, pois atenta contra a vida de outros. isso independente dele estar seguindo ordens, pois, eu, se escalado para uma guerra preferiria ser preso a matar alguém.
    desta forma não vejo a ética pessoal como peça fundamental em TODAS as amizades. Certamente há de se haver interconfiança mas acho o conceito de ética é complexo demais para ser aplicado aqui. apesar de defender o ponto de vista contrário ao seu, eu compartilho da necessidade de ética em minhas amizades, portanto falo mais por abstração mental (generalização) do que por experiência própria.
    3 – Sobre as afinidades: seria então necessário aos amigos valores ou objetivos comuns? isso explicaria sua mensão à ética, pois vc tem como prioridade a amplificação de sua ética constantemente, logo se afinizaria com quem tem prioridade similar… seria a ética um caso particular nosso? Talvez o ponto todo, a "cola", sejam as afinidades, não?
    4 – extensão de si: Quando li "…Eu não poderia condescender com um ato que considero ilícito e/ou antiético, premeditado ou cometido por meu amigo…" tive a sensação que consideramos os amigos como uma extensão de nós mesmos. HÁ uma cobrança. Se A PESSOA nao agir de acordo com MEUS preceitos a amizade será balanceada, evidenciando que a amizade é sim condicional. isso se contrapõe a minha hipótese do amor ágape (consideração 1) ser amizade expandida.
    5 – banalização da palavra amigo: Tem uma pessoa que admiro muito q fala umas 2 horas por dia na net e trata todo mundo por "meu amigo". Quando ele fala parece q ele é amigo do mundo todo, pq direto ele cita algo como: "Aquele meu amigo lá fez tal coisa". e as vezes ele está falando de um cara q ele leu um livro e nunca viu pessoalmente..
    Tal confusão acontece com todas as palavras subjetivas, e elas passam a ser usadas em muitos contextos. veja a confusão com a palavra amor. Creio ser pq não existe como mensurarmos intensidade corretamente pelas palavras. Muito, demais, bastante, pouco, pra cacilda… tudo relativo demais para se entender o que a pessoa quer passar.
    ahh mas eu amo sorvete eu amo 😛

  • @Tiago,

    Nunca é demais repisar algumas coisas, até porque esse assunto é tão complexo e subjetivo que ele tem vários aspectos contraditórios e paradoxais.

    1) Amizade e amor são realmente mumito próximos. Como disse na parte 1, a amizade não pode prescindir do amor. Além disso, o amor citado por Montaigne é uma relação afetivo-sexual entre homem e mulher; ele nem usa, em seu ensaio, a palavra amor quando descreve a amizade. Sobre o amor ágape, concordo com você, e é isso o que quis dizer no final da crônica.

    2) Ética é um conceito complicado. Realmente me arrisquei demais ao não considerar o exemplo dos soldados amigos. Mas, veja bem, não posso dizer que eu e meu amigo somos perfeitamente éticos, apenas temos uma compreensão de que a Ética deve ser aprimorada. Dois soldados podem ser pessoas éticas, mas têm uma ética limitada, impregnada da ideia de que lutam contra um grupo que não merece viver; sua ética se aplica só a eles mesmos. Matar outras pessoas é uma ação anticosmoética, concordo (e eu me recusaria, como você, a participar de uma guerra)… vamos deixar essa discussão para depois. Só acrescento que talvez a melhor forma de conciliar a ideia que expressei com a que você expressou seja dizer que a Amizade (essa amizade nobre de que falo, proposta por Montaigne) só é possível a partir de um certo nível de ética.

    3) Afinidades são importantes, sim, e talvez a ética seja mesmo um caso particular de afinidade. Mas, com base no que disse acima, tendo a acreditar que a Amizade só acontece a partir de um determinado ponto do desenvolvimento ético (ponto do qual não temos ideia), mas não a "amizade", que pode acontecer motivada por qualquer coisinha afim.

    4) A extensão de si eu considero realmente um ponto importante nessa ideia de Amizade. De certa forma, há mesmo uma cobrança mútua, mas que não chega a abalar o binômio admiração-discordância, quando este está bem consolidado. Aliás, acho positiva essa cobrança, e se os dois ou mais amigos começam a ter valores que os afastam demais um do outro, a tendência é a dissolução do laço. Acho que a Amizade tem muito a ver com esclarecimento, enquanto a "amizade" tem mais a ver com consolação.

    5) A banalização das palavras amigo e amizade foi um assunto levantado no texto justamente por causa dessa confusão. Como fiz mais ou menos uma resenha de um texto de outro autor, decidi abordar o tema segundo os termos dele. Eu deveria, como estou tentando fazer neste comentário, ter diferenciado graficamente os dois conceitos: Amizade (com maiúscula) e "amizade" (entre aspas). Mas aí também seria preciso diferenciar vários tipos de intensidade de amizade. Há, é claro, palavras como camaradagem e coleguismo, mas o repertório ainda é muito pobre. Podemos discutir essa nomenclatura em uma ocasião do futuro.

    Vamos marcar, meu amigo, uma ida à sorveteria e resolver essas questões sob a mais civilizada admiração-discordância. 🙂

  • O ensaio de Montaigne sobre a amizade sempre me tocou profundamente. Mas ao ler seu texto, fiquei emocionado com a expressao de afeto sincero e honesto que você cultiva pelo seu amigo Rúbio. Um hino da amizade e do que ela deve representar de fato em nossas vidas pessoais.

    Abracao Thiago!

  • Amiguinho. Ao lado de Rúbio li o post e tenho certeza, que Amizade como a de vocês, nunca tive o prazer de desfrutar. Talvez este cuidado mútuo, dispensado sem vínculos familiares, seja a chave para todo o resto: equivalência ética (conquistada), mutualismo (persistente e quase involuntário) e revolução íntima positiva. (Além de tantos outros atributos). Não que duas pessoas, ao se encontrarem, precisem desejar ser o pajem um do outro para se tornarem grandes Amigos. Acredito que o desejo de cuidar, não nasce de uma vontade forjada.
    Outra coisa, Rúbio está aqui do meu lado. Todo encolhido. Sem saber o que fazer, com tantas ideias e sentimentos encharcando o seu corpo. Sei não…
    Vocês me inspiram!

  • "Somos amigos, na vida é tão bom ter amigos, a gente precisa de amigos do peito, amigos de fé, amigos irmãos e iguais a eu e você, aaamiiigggooooos" hehehe

    Parabéns a Rúbio e a Thiago pela amizade declarada aqui 🙂 Nesse mundo em que vivemos acabamos nos esquecendo que o ser humano é capaz de sentimentos elevados como o da amizade.

    Thiago não me faltam provérbios bíblicos sobre amizade em minha memória agora, mas não vou coloca-los pq já virei provocador demais neste blog heheheheh

  • Acho que só posso falar pela minha experiência…
    A amizade (com todos os filtros para conceituá-la – ou sem nenhum) tem sido uma forma de descobrir e construir o amor, de descobrir rios imensos de afeto, companheirismo, aprendizado…

    Eu não sei bem se o meu entendimento chega perto da compreensão da citação que aqui vai, mas acho que vale trazer para cá: "Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou — amigo — é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é" [Rosa, Guimarães].

    Abraço, Querido.

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