Homossexuais ainda na mira da Inquisição

Nesta semana, foi aprovado na Câmara dos Deputados um projeto de lei que regulamenta a união estável. O ponto controverso é a exclusão das situações em que o casal é formado por dois homens ou duas mulheres. Um claro ato de homofobia que se expressa na construção das leis que devem reger este país.

A negação aos homossexuais de regularizarem sua situação conjugal foi uma intervenção do padre (e, por acaso, deputado) José Linhares (PP-CE), para cujas crenças a família é uma instituição formada basicamente por um homem e uma mulher (nesta ordem). Portanto, para ele, a Lei não deveria cobrir esses casos.

Dois marrecos machos

Analisando um discurso contraditório

Eis algumas frases do referido padre (e deputado), retiradas de uma matéria d’O Globo:

Quem tem direitos adquiridos não irá perdê-los. Um homem que vive com seu companheiro, por exemplo, poderá continuar e será respeitado. Mas eles ficam lá, não teriam legitimidade jurídica.

Essas relações não constituem a célula natural de uma família. O ser humano depende da presença afetiva de uma mulher e um homem. O pai e a mãe são figuras basilares da nossa existência. Não existe um pai mulher ou uma mãe homem.

José Linhares:padre ou deputado?
José Linhares: padre ou deputado?

Senão vejamos… dois homens que vivem juntos serão respeitdados em sua escolha, mas não terão o direito, assegurado a qualquer heterossexual, de se considerar casados. Ou seja, sua escolha sexual será motivo da exclusão de um direito. Portanto, essa lei é discriminatória. Conclusão: há desrespeito.

“Célula natural de uma família”… O modelo tradicional de família ocidental cristã é esse aí descrito pelo padre Linhares. Mas a Antropologia e a História nos têm mostrado que a família é uma constução social, cujo modelo muda de acordo com a sociedade e a cultura.

Para os trobriandeses do Pacífico, a família é baseada na mãe e no irmão dela, que assume a autoridade “paterna” do filho dela. Em muitas sociedades, a família é entendida como uma extensão que não se centra na figura de um simples casal. Para os Na, grupo étnico da China, não existe o papel de pai, só o de mãe. E há tantas culturas poligâmicas mundo afora, que consideram a família como algo maior do que 1 homem e 1 mulher (nas sociedades poligínicas, um homem pode ter várias esposas; nas poliândricas, uma mulher pode ter vários maridos).

Que história é essa de “célula natural”? A família não é natural, não se constrói pelos instintos, mas pelas regras sociais, que são passíveis de mudança segundo as necessidades de cada sociedade. Na natureza, vemos várias formas de organização social de acordo com a espécie, mas a noção de família é, até onde sabemos, uma exclusividade e uma invenção humana.

Da mesma forma, os papéis do homem e da mulher são construções sociais. O que numa sociedade é característica de homem, em outra, é traço de mulher. Homem e mulher formam um modelo basilar em nossa sociedade porque em nossa história a divisão sexual do trabalho assumiu uma certa configuração na qual o homem necessita de um certo trabalho que só a mulher faz e vice versa.

Além disso, a trajetória afetivo-familiar de cada pessoa, em nossa cultura, tende a repetir a dos pais, sendo que os meninos tendem a ser como os pais e a querer uma esposa como sua mãe, e as meninas buscam ser como esta e querer um marido como aquele.

Porém, não é preciso, como mostra a psicanálise contemporânea, que uma criança tenha literalmente um pai para seguir seu modelo. A masculinidade pode ser imitada de outras figuras masculinas. Pode ser apreendida até de certos aspectos da mãe! O filho de dois homens não será necessariamente homossexual, nem a filha de duas mulheres. Já é ponto batido o argumento de lembrar que a maioria dos homossexuais são filhos de um homem e de uma mulher.

No fundo, portanto, os argumentos do padre Linhares são preconceituosos e homofóbicos. Eles se desdobram em um discurso bem conhecido (e apresentado acima) que busca criminalizar a homossexualidade, considerando-a uma conduta réproba e desestabilizadora de uma suposta “ordem natural” e uma misteriosa “vontade de Deus”.

Direitos humanos

Uma TerraMas as pessoas não são feitas em fôrmas. Cada uma é moldada à mão. E há aqueles homens que preferem a companhia de mulheres loiras, aqueles que preferem mulheres negras e aqueles que preferem homens morenos. Assim, há casais que não são formados segundo o modelo homem-mulher. Entre esses casais, há os que querem se casar. Há os que querem ter filhos. Por que esses desejos não podem ser considerados tão legítimos quanto o desejo de um casal heterossexual de se casar e ter filhos?

Porque ainda há gente que acredita na impossibilidade de rever suas crenças em favor de uma ética universalista. E essa gente está em posição de poder. E o que esperar de um homem que acumula duas posições de poder, uma no campo religioso e outra no campo político? O padre (e deputado) Linhares está agindo como líder religioso e não como representante de um Estado democrático.

Lembremos da grande controvérsia causada por uma excomunhão realizada há alguns meses pelo então Arcebispo de Olinda. Amparado pela Igreja Católica, ele acusou a mãe e os médicos de uma menina de 9 anos de estare cometendo um pecado grave, por promoverem um aborto na dita menina, grávida do padrasto.

O arcebispo disse na ocasião que a lei de Deus é diferente da Lei do homem, o que é endossado pela sua Igreja. Como fica então a posição do padre Linhares, que usa argumentos da “lei de Deus” para interferir na “Lei dos homens”?

É preciso ressalvar aqui o fato de que duas pessoas, sejam homossexuais ou heterossexuais, quererem se casar (e/ou ter filhos) é um desejo de cosntituir um ideal até certo ponto conservador. Mas é um direito de qualquer pessoa, em sua liberdade individual. Tentar impedir que alguém exerça esses direitos por ter uma preferência pessoal que só implica em sua própria felicidade (e só incomoda aos preconceitos que deveriam ser abolidos) é tentar colocar um freio na tendência cada vez mais humanista da história humana.

19 comments

  • Acho que as coisas começam a se tornar confusas justamente quando a religião começa a influenciar no que é a lei dos homens, como vc mesmo disse.
    E essa influencia se torna muito negativa quando é encabeçada por fatores preconceituosos presentes em muitas religiões. Infelizmente a cabeça de certos líderes não chegou a um estado tal que esteja despida desses preconceitos e com isso uma grande parte da população também se deixa levar por esses preconceitos. Não estou dizendo aqui que não temos, ou que não tenho, nenhum preconceito, infelizmente os tenho sim, e pela maneira como fomos criados é uma tarefa dificil nos livrar de todos eles, o que eu acho importante é tentar fazer isso de todas as formas, o importante é saber viver, conviver, e acima de tudo respeitar pessoas diferentes (afinal de contas todos nós somos), culturas diferentes e visões diferentes… Não somos donos da verdade… e muito menos líderes Políticos/religiosos o são…

    Grande abraço Thiago
    Como sempre um ótimo texto pra ler e refletir

  • Quer saber? Eu tenho vergonha desse país, ou então, pra evitar limites territoriais, eu tenho vergonha do povo brasileiro, crescido nesta cultura.

    Tudo que é dito em nome do natural me dói a alma (ou como diria Pessoa, "me dói a inteligência")!

    Para esse padre, as ilhas Trobriand, os grupos Na, são apenas "células" do demônio na Terra, tentando semear seus "frutos". O discurso religioso é tão arredio que qualquer pensamento crítico já é visto como uma influência demoníaca na mente das pessoas.

    Eu sinto nojo disso, nojo de estar perto disso!

    O detalhe do "(nesta ordem)" foi ótimo! hauehauehaua Você escreveu de uma forma meio raivosa, e isso é muito bom! Me cansa os textos por demais corretos e imparciais.

    "A família não é natural" – essa frase é um soco na nuca desse povo acéfalo, mas por sua própria condição, não deve doer tanto… O mais triste, Thiago, é você tentar demonstrar isso pra alguém (como sempre faço quando necessário) e perceber as expressões de estranheza e repugnação. E não falo como quem quer converter consciência, falo como quem quer expandir a consciência de alguém, e só vejo coisas boas nisso. Dar esses exemplos e ouvir em resposta "isso é só filosofia", ou algo do tipo "isso é coisa de quem não tem o que fazer" me entristece profundamente, me calo e desisto.

    Eu detesto religião. E gosto de falar assim, sem razão nem por quê, como um simples mortal que detesta. Detesto qualquer religião!

    "Vontade de Deus"… isso é realmente misteriooooso!

    Terei pesadelos com esse sorriso falso dele na foto.

    Até!

  • Obrigado pelas excelentes contribuições, @Rodrigo!

    Infelizmente, esse discurso religioso não é aberto a críticas. Ele já possui respostas prontas a quaisquer argumentos. Se José Linhares lesse este texto, já saberia exatamente o que dizer em resposta.

    Para esse padre, as ilhas Trobriand, os grupos Na, são apenas “células” do demônio na Terra, tentando semear seus “frutos”. O discurso religioso é tão arredio que qualquer pensamento crítico já é visto como uma influência demoníaca na mente das pessoas.

    Eu não me arriscaria a afirmar algo sobre o que o padre pensa. Afinal, precisamos admitir que os padres são indivíduos humanos diferentes uns dos outros e é uma ilusão achar que pensam todos exatamente da mesma maneira sobre todos os assuntos. Mas é certo que a ideologia cristã ensina que o que não é cristão é diabólico e, portanto, mau.

    Quanto à "forma meio raivosa" de escrever, achei por bem mudar um pouco o estilo dos meus textos, para ver a reação dos leitores. 😉

    Não se engane, Rodrigo. O trabalho de reflexão e divulgação de ideias libertárias é hercúleo. Não é à toa que há quem termine o curso de Ciências Sociais ainda cheio dos preconceitos com os quais o iniciou. Só as pessoas que já têm uma disposição íntima para o abertismo e para a reflexão poderão aproveitar algo de uma conversa sobre "natureza vs. cultura".

    Mas continuamos tentando…

  • É, um texto claro e objetivo.
    Nessas horas q me pergunto, nenhum outro deputado não pensou em nenhum desses argumentos?
    =

    Só p constar, o número de famílias onde NÃO existe a figura do pai é astronômico. E nem por isso as crianças viram homosexuais…

    Outra, o reconhecimento civil da união homosexual, oficializa a possibilidade de adoção. Que tem alta demanda e pouca procura…

  • @Mr. T, sua última observação é muito pertinente.

    Mas, assim como o Cristianismo em geral prefere que uma criança de 9 anos morra no parto do filho concebido por estupro, provavelmente prefere que uma criança fique órfã e desamparada a vê-la adotada por um casal homossexual. E muitos orfanatos são dirigidos por religiosos…

  • Mas a família é formada por homem, mulher e as vezes filhos… não?

    Admito que possa haver outros tipos de união e que a lei deva assegurar os direitos dessas pessoas.

    Acho que o problema principal em se admitir a união Homossexual como sendo um tipo de família está relacionada aos filhos: no caso à adoção.

    sendo bem direto: se essas pessoas iriam abusar dos filhos ou se iriam convertê-los em homossexuais.

    provavelmente um mito, mas onde estão os estudos provando o contrário?
    (deve existir algo assim, mas não conheço [até porque nunca procurei])

    uma decisão tão séria deve levar em conta dados estatísticos que mostram o perfil psíquico desse grupo humano.

    É um tabu de nosso mundo, eu mesmo sou 75% contra homossexuais adotarem crianças por achar que essas devem crescer em um lar "padrão". (absurdo não? mas esse conceito está impregnado em mim, não sei se quero gastar tanta energia para retira-lo).

    Sendo ainda mais direto: Não sou contra os homossexuais, porém não gostaria de ter um filho assim.

    Acho que esse pensamento é o da maioria, então como estamos em uma democracia a coisa não foi tão absurda assim.

    Mais absurdo é a igreja ser contra a pesquisa com células tronco, ou ser contra a distribuição de preservativos na África.

  • Se a adoção de crianças por pais de sexos opostos prevenisse o abuso sexual daquelas pelos próprios pais, isso sim seria uma boa justificativa pra ser contra a adoção por companheiros de mesmo sexo. Acho que alguns legisladores chegariam ao cúmulo de limitar a adoção apenas de crianças fêmeas, no caso de serem os adotantes dois homens. O alvo do medo está totalmente desvirtuado por preconceitos: aquele velho "grupo de risco" da AIDS, preconceito somente diminuído com o avanço da doença em vários grupos heteros, se transforma agora em um "grupo de risco" da "homossexualização" das crianças adotadas ou do abuso delas. E isso chega a ser visto como um risco em si mesmo! O risco de perpetuar um risco!!! Nessa cegueira, ninguém percebe que o distúrbio social/psíquico (não necessariamente nesta ordem) que leva adultos a abusarem de crianças não tem inevitavelmente relação com a sexualidade do adulto: a origem pode ser de diversas ordens, e os indícios de que pais homossexuais fariam isso com mais frequência só têm força no próprio preconceito. Uma criança pode despertar homoafetividade por uma simples "brincadeira" entre garotos, enquanto outras podem se tornar sexualmente retraídas devido a abusos da mãe. As variáveis são enormes, os exemplos não têm fim.

    Acho que a preocupação dos pais quanto à sexualidade do filho deveria se converter numa preocupação com a felicidade do mesmo. A idéia de alguns, de que um filho homossexual vai sofrer muito com as restrições que a sociedade impõe, não fica muito longe de uma outra: o medo dos pais em não saber como lidar com um filho nessa condição e trazer sofrimento pra si mesmo. É até um tanto egoísta.

    A própria "preferência" por um filho hetero nos conduz a uns caminhos meio tortuosos: ou um biologismo genealógico na intenção de que o filho perpetue os ramos da árvore familiar (aqui, pouco importa a vontade do filho, ainda mais se reconhecermos que pais biológicos gays existem aos montes); ou um temor transcendental de que a conjunção carnal de mesmo sexo seja um pecado imperdoável (aqui, um medo do filho ser resultado de um "erro" educacional ou genético, no máximo "erro" de uma vida passada dos pais, e mais uma vez a preocupação não é com o filho); ou um receio moral (também egoísta) diante da imagem que os pais passariam a ter nos círculos sociais pelo fato de seu filho não ser evidentemente hetero (o que faz muitos deles levarem seus filhos a cabarés em tenra idade).

    O ponto central dessas polêmicas, portanto, não é o modelo de família a ser seguido (seja no sentido reprodutivo, seja no religioso); não é a preocupação com o futuro psíquico-afetivo das crianças adotadas; não é a confusão normativa de como adaptar as leis dos homens às evidências atuais; não é a indecisão bíblica de como casar dois homens ou duas mulheres no altar; não é o distanciamento do mundo civil diante de dogmas (particulares). Tudo isso é usado como justificativa (criminosa) pra disfarçar um fato real e só difícil de enxergar pelos desavizados: a vontade única de reproduzir um ideal religioso (influenciando mesmo aqueles que pensam "não ligar pra isso") sobre o comportamento geral da humanidade – se a lei não permite morte aos gays, como antes recomendava, que ao menos não se permita que a sociedade perceba a naturalidade da diversidade sexual humana. Esse é o objetivo final.

  • @AmBAr Amarelo, se o padre Linhares não veio responder a meu texto, pelo menos veio você. Obrigado pelas contribuições.

    @Rodrigo, você adiantou alguns pontos da resposta em forma de post que eu pretendo fazer ao comentário de AmBar Amarelo.

    É bom ver um texto meu se transformar num debate de ideias. 🙂

  • "sendo bem direto: se essas pessoas iriam abusar dos filhos ou se iriam convertê-los em homossexuais."

    Pois é, não conheço nenhum homosexual que pensaria em "doutrinar" um filho para que também vire homosexual.

    sobre os abusos, acho que vc está meio por fora das manchetes e estatísticas policiais, a maioria absoluta dos abusos sexuais em crianças ocorre DENTRO DE CASA, dessa família "tradicional" com mamãe e papai q conhecemos…

  • Mr. T, quanto ao seu questionamento:
    "É, um texto claro e objetivo.
    Nessas horas q me pergunto, nenhum outro deputado não pensou em nenhum desses argumentos?"

    Penso que a política é um ramo que deveria ser chamativo àqueles que tem intento de ajudar a administrar / melhorar sua comunidade. Entretanto vemos que são cargos de grande poder, status, remuneração e regalias, o que acaba por atrair pessoas mais (para não falar só) interessadas nestas consequências do que no ato administrativo em si.

    Outro detalhe que notamos é que a política é repleta de "politicagens". Quer dizer que a lógica, discernimento e o bom senso não atuam quando há interesses. Se eu devo favor a alguém eu não me oponho a ele. Se eu não me opuser a alguém eu lhe ganho como aliado.. por aí vai..

    Acredito que vários dos leitores deste blog já devem ter tido o anseio, mesmo que por um instante, de ser político para tentar fazer algo melhorar. Entretanto creio que tal idéia se esvai instantaneamente, visto o processo da máquina eleitoral (a quantia de dinheiro necessária para se ganhar uma eleição é absurda), somado à sensação de ser só 1 contra um mundo. E ainda de quebra talvez exista o medo de acabar "indo na maré".

    obs: falei aqui de política, mas isso acaba se estendendo para qualquer posição de poder. vemos isso até mesmo em empresas, hospitais e até em escolas.

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